Não consigo falar. Minha garganta trava e minha voz falha. O silêncio vai caindo sobre a mesa mais rápido do que Haymitch acabaria com uma garrafa de licor branco. Haymitch. Quase posso ouvir sua risada roufenha e o comentário presunçoso senão levemente exasperado "Bem... O que você esperava,lindinha? São seus filhos."

É verdade. O que mais eu devia esperar? São meus filhos. Meus filhos. Meus filhos com autorização para desafiar os Gamemakers. Eu não deveria esperar nada diferente.

E de repente,sei que se Haymitch estivesse aqui estaria rindo agora. Todos sempre disseram que éramos parecidos e acabei descobrindo que é verdade. Somos - éramos - parecidos,mesmo que eu não percebesse isso na época. Agora eu percebo.

Então faço uma daquelas coisas que só fazem comprovar nossas semelhanças. Inesperadamente começo a gargalhar. Presumo que não estou agindo sensivelmente dada toda a situação,mas o riso me faz sentir mais leve e a leveza não é mal-vinda.
Bem...o foi feito já foi e o que podemos fazer sobre isso? Nada.
Todos na mesa me encaram. A perplexidade estampada nos rostos.

"Katniss ,você enlouqueceu?" pergunta Effie,massageando suas têmporas,como se estivesse tentando criar mais paciência para lidar comigo "Você tem noção do que seus filhos acabaram de fazer?"

"Sim" digo " E achei incrível"

Posso ter realmente enlouquecido de vez ,mas achei mesmo. Imprudente e incrível.

"O quê?"pergunta minha mãe,atônita"Está querendo dizer que aprova uma tentativa de suicídio e o disfarce de uma mártir,apesar de tudo?"

"Quem é você para me dizer o que devo ou não aprovar?" digo eu,levantando, de repente cheia de raiva pela intromissão desnecessária" Meus filhos estão indo competir até morte,então realmente não importa o que aconteceu! A vida deles já será um inferno naquela maldita arena!"

"Mãe" diz Lira, quietamente "Desculpe...desculpe se tornamos as coisas piores."

"Não" digo "Se dependesse de mim vocês nem estariam aqui, indo para a arena. Vocês não tornaram as coisas piores, apenas aumentaram a faísca!"

"Não...não foi de propósito" diz Klaus

Repentinamente lembro outra vez de Snow, de seu discurso sobre eu ser a faísca que destrói Panem. Sinto meus joelhos enfraqueceram e caio pesadamente na cadeira. Me ocorre que meus filhos são Projetos de Mockingjays, e não sei se isso é bom ou mau,nem o que fazer à respeito.
Eu enterro meu rosto nas minhas mãos,não para chorar,mas para pensar no meu próximo passo.

Finalmente compreendo o que Haymitch deve ter sentido durante o Quell,quando Peeta e eu acabamos tornando seu plano de nos resgatar da arena mais difícil pela nossa atitude nas sessões privadas.

Peeta gentilmente me pega pelos ombros e sussurra em meu ouvido "Está tudo bem,vamos ver as notas."
Ele me dá um beijo e me guia até a sala.

Como sempre altas pontuações para os Carreiristas e de baixa a média para os demais. Descubro que a garota do 11 se chama Ixia. Ela tirou 9. Uma nota excelente para alguém tão pequena. Me lembro de Rue com seu 7, e de pensar que ela merecia pelo menos um 10. Não sei o que Ixia fez,mas ela é tão pequena que deve ter sido tão impressionante quanto o que Rue fez.
Quando chega a vez do distrito 12 vejo Lira colocar as unhas nas bochechas e Klaus corar em tom de beterraba.

"Tentaram nos copiar,né?" diz Peeta, e posso ouvir o sorriso na sua voz.

Olho para a tela e tão claramente quanto eu posso ver a lua pela janela, vejo um 12 piscando. Pelo comentário de Peeta posso perceber que ambos os nossos filhos tiraram a pontuação máxima.

"Isso não faz sentido!" diz Lira "Porque eles fariam uma coisa dessas ? Não fizemos nada demais, não merecíamos um doze!"

" Nem sempre força física ou habilidade é que dão as maiores notas." digo eu, lembrando das minhas duas avaliações anteriores.
Ouço alguns muxoxos em concordância.

"Sua mãe e seu pai são a prova viva de que os Gamemakers gostam de jogadores esquentadinhos." diz Effie,com um sorrisinho abafado.

"Para quem teve um ataque agora a pouco você está muito tranquila,Effie" digo eu,mas não posso evitar rir também.

Peeta ri,dá boa noite a todos, me pega pela mão e vamos para o quarto. Passamos a noite abraçados e pegamos no sono muitas horas depois. Acordamos cedo,sabendo que seria necessário que já estivéssemos prontos quando as crianças acordassem. Hoje é o dia de treinarmos para as entrevistas.

Estou mais preocupada com elas do que estive com o desfile e o treinamento, pois é nas entrevistas que o mentor mostra realmente do que é capaz, pois é seu dever montar algum ângulo para o seu tributo. Não sei se sou capaz de fazer isso,sou podre em atuação, mas Peeta não é. Ele é capaz de mover uma multidão apenas com suas palavras,se quiser. Porém não posso deixar que ele fale por nós dois desta vez. Se quero vingança é melhor começar a fazer as coisas em meus próprios termos.

Meu estômago se contorce de nervos. Posso prejudicar seriamente as chances de sobrevivência das crianças, se não fizer certo hoje. Tenho fome então coloco um robe e vou para sala de jantar.
Estou no meio do segundo prato de panquecas quando Klaus e Lira e juntam a mim.

" Então... estaremos treinando as entrevistas hoje,não?" pergunta Lira, se servindo de bacon.

"Sim" respondo, engolindo rápido

"E como vai funcionar?" pergunta.

"Vai durar oito horas"digo " Quatro horas com a Effie para apresentação e quatro conosco para conteúdo. Você começa com a Effie,filha."

Não acrescento que meu treinamento para a entrevista foi um inferno. Saltos e comentários sarcáticos. Ugh,não posso nem lembrar.

Terminamos a refeição em silêncio,Peeta e Effie se juntam a nós,mas não fazem comentários.
Depois do café volto ao quarto para tomar um banho,coloco um vestido amarelo e sapatos brancos.

Peeta e Klaus já me aguardam na sala de estar. Me sento,pronta para começar o que,com certeza,será uma rodada perturbadora de perguntas e respostas quando alguém bate à porta.
Peeta e eu nos entreolhamos,a própria perplexidade estampada nos olhos do outro.

"Acho que o conceito de "prisão domiciliar" ficou obsoleto depois da Guerra." digo eu,exasperada.

Peeta concorda quietamente. Eu levanto para atender a porta quando a batida se torna mais insistente.
Eu giro a maçaneta e estou olhando para os olhos extremamente azuis da nossa presidente.
Indo contra meu impulso de fechar a porta na cara dela eu introduzo Debra em nossa cobertura com um aceno.

" Katniss quem é?" pergunta minha mãe da sala de jantar, claramente de boca cheia.
Eu não respondo. Sou incapaz de falar agora, mesmo que fosse para salvar minha vida ou a vida daqueles que amo.

O que ela quer aqui? O que ela deveria querer aqui? Minha cabeça trabalha freneticamente,tentando arranjar um motivo para a presença de nossa presidente em meus aposentos. Nada vem à mim. Mas uma coisa é certa. Não é nada que possa ajudar meus filhos. E se é assim é melhor eu pensar num plano de ação rapidamente.

" Então, Katniss, posso me sentar?" pergunta Debra, docemente.

"Claro"digo eu,seca.

A presidente me segue até a sala de estar,onde Peeta e Klaus nos aguardam,paralisados.

"Oh! E aí está! A torradinha mais crocante da Capital!" diz Debra alegremente.

Torrada? Torrada? Isso é sério? Esse é o apelido dos meus filhos na Capital? Torradas? Os filhos da Garota em Chamas com o Garoto com o Pão? Torradas? Ridículo!

Afinal o que essa mulher desprezível está fazendo aqui? O que ela quer?

"Bem...bem...torradinha eu gostaria.de falar com sua mãe à sós,ok?" diz Debra,olhando para Klaus com uma expressão faminta.

Sem palavras Klaus se levanta e sai. Peeta fica estático.

" Não,vá com ele." digo.

"Mas..."ele começa

" Não" eu corto "ele precisa treinar. Vá com ele. Ajudá-lo."

Assim Peeta deixa a sala. Fico sozinha com nossa presidente.

"O que você quer aqui?" pergunto,mais,corajosa do que estou realmente.

A presidente me estuda por um momento então diz.

"Percebo que mesuras e preâmbulos não lhe agradam,então melhor irmos direto ao assunto"

Eu engulo em seco e ela continua,balançando seus longos e sedosos cachos loiros. Quando ela se movimenta sinto um cheiro suave de rosas. Isso embrulha meu estômago.

"Bom... Katniss...eu vim aqui para avisar. Suas atitudes incitantes não passaram despercebidas. Os distritos estão inquietos. Nem a Capital está tão calma quanto parece."

Permaneço muda. As palavras de Debra somente confirmam que estou tendo sucesso em minha vingança.

"Você deve parar. A guerra acabou. As pessoas não precisam mais de um mockingay. Não precisam mais de você."

Concordo. Depois da Guerra me tornei descartável. Percebo que Debra pode facilmente me matar agora. Ela seria capaz de matar também os meus filhos? E Peeta?

"Mas não vou matá-la. Não agora,pelo menos. A sua participação e de seus filhos nesses Games torna as coisas mais...Interessantes." diz Debra trançando as pontas de seus cabelos cheirando a rosas. "Apenas saiba que tudo o que você fizer acabará caindo contra o Gamemaker Chefe"
"Que me importa o Gamemaker Chefe?" pergunto,finalmente recuperando a habilidade de fala "Eu já matei um,não foi? Seneca Crane."

"Oh" diz a presidente,sorrindo "Acho que você se importará desta vez. Afinal o Gamemaker Chefe é..."

Uma batida forte na porta a interrompe. Um homem grande de terno preto entra.

"Senhora"diz,olhando para Debra "temos que ir agora."

Nossa presidente sai,levando o cheiro de rosas com ela.