Diana escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo um




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A construção de uma capela dentro do QG da Liga da Justiça foi muito discutida por todos os super-heróis. Kal-El, que deu a ideia em primeiro lugar, insistiu durante todo o tempo dizendo que seria um espaço vital para a convivência.

Todos sabiam muito bem que aquele tipo de apego religioso comum aos terráqueos era fruto dos fortes laços que Kal-El ainda tinha com seus pais adotivos e todos acabaram cedendo — exceto Aquaman, que ainda batia o pé dizendo que poderiam muito bem usar o espaço para levantar um aquário de água salgada—, mesmo porque aturar a superteimosia do líder não era tarefa fácil.

Após a muito cuidadosa e permanentemente vigiada construção do lugar, para que ficasse exatamente igual às capelinhas das cidades do interior dos Estados Unidos, eram poucas as vezes que qualquer um dos super-heróis fazia uso dela.

As velas eram constantemente acesas e trocadas e tudo recebia uma frequente e asseada espanação para livrar-se da poeira por alguém anônimo que todos suspeitavam ser o líder. Porém, fora isso, todos os bancos de madeira viviam solitários sem que qualquer um nunca aparecesse para lhes fazer uso. Ou, quase nunca.

Prostrada de frente para o grande altar coberto por curiosas velas rechonchudas já semiderretidas, Diana se alimentava do silêncio da capela. Era muito grata pela impopularidade daquele cômodo, mesmo que ela própria não entendesse exatamente a sua função. A religião das amazonas funcionava de maneira muito distinta à dos terráqueos e não parecia fazer sentido a veneração de um Deus escondida dentro de um quarto à meia-luz, como se fosse um vergonhoso ritual secreto.

À sua frente, vitrais coloridos formavam a imagem de uma mulher coberta por um véu branco e com o rosto numa expressão de eterna benevolência materna. Diana gostava da imagem, da forma como seus braços pendiam sempre abertos, prontos para receber quem precisasse do seu consolo, embora não conseguisse lembrar o nome dela com certeza. Durante o planejamento da sala, Barry sugerira uma decoração mais impactante cheia de crucifixos e diabinhos de dentes afiados, mas Kal-El vetara definitivamente a ideia, dizendo que a capela deveria ser um local para meditação e conforto e que se quisesse esculturas de gnomos chifrudos que os colocasse no seu próprio quarto.

Diana observava a chama trêmula da pequena vela que acabara de acender.Concentrava-se nisso tentando limpar a mente de todas suas outras perturbações, por mais persistentes que fossem. Transpirou profundamente, procurando encher-se com o cheiro amadeirado dos bancos e do altar ou com a fragrância doce do que quer que fosse que Kal-El usava para limpar as janelas, mas o que acabou por captar foi o cheiro amargo de fuligem que se impregnara na sua pele e nas suas roupas.

A busca por paz interior parecia especialmente difícil dessa vez. Por mais que se esforçasse, sua cabeça acabava voltando à missão que atendera apenas algumas horas mais cedo, quando um chamado veio de uma pequena cidade ao leste de Michigan, onde um hospital estava pegando fogo.

Ela prontamente atendera ao pedido de socorro e voara o mais rápido que podia até lá. O fogo já havia avançado bastante no momento em que avistou o grande sinal faiscante que era o hospital. Chamas de cinco metros engoliam o prédio de dois andares, avançando com ferocidade, os gritos desesperados dos civis enchendo o ar tanto quanto a fumaça negra sufocante.

Bastou um olhar para que ela soubesse que o fogo já consumira demais e tudo sem dúvidas iria desabar. Diana se incumbiu, então, de resgatar todos os que ainda estivessem lá dentro. Desbloqueou as saídas, retirando todos os escombros, e orientou os que pareciam fisicamente bem a ajudarem os mais machucados a se locomoverem. Avistou um senhor de jaleco chamuscado, com os bigodes pretos como carvão pela fumaça, que olhava abismado para o lugar em chamas, muito longe do grupo de refugiados que estava se formando.

Ao se aproximar, Diana percebeu que ele mal se movia e certamente estava em estado de choque.

— Senhor, quantas pessoas ainda estão lá dentro? — Apesar da sua pergunta em tom autoritário, o homem não prestara atenção nela. Diana tentou novamente. — Senhor, isso é muito importante, quantas pessoas ainda estão lá dentro?

— Cerca de treze. — Ele respondeu, em um fiapo de voz, e lágrimas rolaram de seus olhos. — Isso é uma desgraça... Oh Deus, uma desgraça...

— O senhor tem certeza? — Diana perguntou, para se assegurar. O homem confirmou com um gesto quase imperceptível com a cabeça. — Sabe dizer em que ala essas pessoas estão?

— Lá. — O dedo trêmulo do homem apontou para o segundo andar, completamente coberto por chamas flamejantes. — Todos eles estão... Oh, Deus...

Houve um estrondo com o barulho das janelas se partindo devido ao calor e o homem soluçou, chorando copiosamente. Diana o segurou firmemente por um dos ombros e declarou, decidida:

— Eu vou traze-los de volta, senhor. Por favor, fique junto dos outros.

Dito isso, voou para dentro do prédio. Pretendia fazer jus às suas palavras, como uma boa guerreira, por mais que soubesse que a situação era complicada. Contornou todas as portas até a escada que levava ao segundo andar, o que deixava o caminho mais longo, mas derrubar paredes ou abrir um buraco no teto para encurtar caminho poderia atingir o limite da construção e fazer com que tudo desabasse.

Diana voou pelos corredores, atenta à qualquer pedido de socorro, sem assustadoramente ouvir qualquer coisa além das vigas de sustentação estalando pela ação destrutiva do fogo. Entrando em outro corredor, avistou de longe o que parecia ser uma sala miraculosamente intacta embora as labaredas subissem a parede até o teto. Diana enfrentou o fogo e constatou que aquela parede sobrevivera apenas porque se tratava de uma janela coberta não por vidro, mas por plástico. Apesar de tudo, não estava realmente preparada para o que encontrara lá dentro.

Não foi um ruído que a trouxe da lembrança, colocando sua mente de volta para a capela simplória, mas a sutil percepção de outra presença no mesmo cômodo que ela. Não precisou perturbar-se a virar o rosto para saber quem era, estava tão acostumada à ele que o reconheceria de qualquer forma.

— Silencioso como sempre, Bruce — comentou, de olhos baixos.

— Velhos hábitos são difíceis de perder — respondeu o cavalheiro das trevas, ao seu lado.

O silêncio recaiu sobre os dois dentro da capela. Bruce sabia como ninguém a arte de ser sutil, mas Diana sabia muito bem com que finalidade ele viera até ela. Estava perfeitamente consciente também de que já praticamente arfava porque se sentia sufocada pelo cheiro de queimado do seu próprio corpo.

— Soube que houve problemas na maternidade de Michigan hoje — ele diz, por fim.

Agora, dentro da atmosfera calmante da capela, Diana se sentia estúpida por não ter percebido antes que o hospital em chamas se tratava de uma maternidade.

Quando, no meio do fogo impiedoso que consumia qualquer coisa que tocasse, avistou aquelas fileiras e fileiras de pequenos seres humanos, perfeitamente embolotados em cobertores azuis ou cor-de-rosa, Diana sentiu um frio lhe percorrer a espinha. Bebês. Mantidos intactos apenas por um acaso misericordioso do destino, totalmente absortos do inferno que se desenrolava ao redor. Não podia destruir a janela protetora, já que era a única coisa que os mantinha protegidos do fogo e da fumaça, e a porta de acesso estava bloqueada por um pedaço de reboco caído do teto. Não havia outra saída senão destruir uma das paredes e, mesmo assim, precisava agir rápido ou a fumaça iria contaminar o quarto e sufocar os pequenos. Diana calculou sua força e lançou um soco contra a parede.

Todo o prédio tremeu com o golpe. Diana voou através da nuvem de poeira que levantou, guiada pelo choro dos bebês que, desfeito o isolamento da sala, já era capaz de ouvir. Dezenas de cabecinhas carecas e rosadas estavam enfileiradas exatamente onde o teto cheio de rachaduras ameaçava desabar em qualquer segundo, dependendo dela. Diana acomodou quatro nos seus braços, o cimento da fundação caindo como goteiras. Não teve a mesma paciência de fazer o longo caminho de volta, nem poderia tentar passar o fogo levando os bebês. Usou o corpo como escudo, então, e atravessou uma das janelas, estilhaçando o resto dos cacos que o fogo não destruíra.

— Começou por problemas na caldeira, foi o que ouvi — ela diz, ainda sem levantar os olhos para o amigo. — Os civis deveriam ter mais cuidado com essas coisas... Não temos caldeira aqui, temos?

Diana se esfregara com esponjas e o que mais havia nos banheiros e mesmo assim o angustiante cheiro de destruição continuava encarnado na sua pele. Duvidava que um dia fosse capaz de cheirar de outro jeito e imaginou se aquilo era capaz de incomodar tanto a Bruce também.

Fizera três viagens, no total, confiando as crianças para as enfermeiras reunidas do lado de fora. Assim que confiou os bebês para outras mãos cuidadosas, voou urgente para uma das enfermeiras livres.

— Falta uma! Trouxe todos os que encontrei na maternidade, mas são apenas doze! Falta uma! Onde ele está? Você sabe, não sabe?

— E-eu não sei! — A enfermeira gaguejou, assustada com tudo que estava acontecendo e principalmente com a autoridade intimidadora da heroína. Seu peito subia e descia em arfadas doloridas, mas tentava conter o latejante desejo de chorar, porque queria ser útil. — O doutor, o doutor sabe! O doutor Jones é chefe do departamento! Ele sabe sobre todas as crianças!

— Onde está o doutor agora? — Diana girou em volta de si mesma, procurando ao redor por qualquer um que tivesse aparência de médico.

— Ele estava por alí... oh! — A enfermeira apontou para o campo aberto, o lugar onde minutos antes Diana conversara com um senhor de bigodes e jaleco, mas que agora encontrava-se vazio. — Estava logo alí, juro que estava!

Diana não precisou de mais um instante sequer para entender a situação. Voou para dentro do prédio e encontrou o médico caído debaixo dos escombros da escada.

— Não se mova, eu vou tirá-lo daqui! — Ela gritou, autoritária, começando a retirar os escombros carbonizados de cima do homem.

— Me deixe aqui! — O médico, preso em uma tentativa brava e estúpida de salvamento, se esforçou para fazer sua voz soar por cima do estalar das chamas, a garganta seca infectada com a fumaça tóxica. Chorava copiosamente. — O garotinho está no segundo andar, do outro lado do prédio! Você precisa encontrá-lo! Salve-o, me deixe aqui!

Diana ouviu os ruídos do prédio começando a ruir. Ela chegou a levantar vôo, mas o que viu foi o teto da ala oposta desabando, sem que absolutamente nada pudesse fazer. Retirou os últimos pedaços de escombro de cima do homem e o jogou sobre o ombro sob protestos.

Exatamente no momento em que saíram, o prédio inteiro desabou, com um enorme estrondo e levantando poeira que levaria duas horas para baixar.

A mulher maravilha sentiu uma mão pesada recair sobre o seu ombro, no mesmo lugar em que estava o peso do médico quando assistiu o hospital cair e enterrar junto uma pobre criança.

— Não deve ficar se culpando, Diana — Bruce disse. Ela sabia o quanto lhe eram desagradáveis contatos físicos e sabia o quão antagônico à sua imagem era o que o homem morcego fazia naquele instante, por ela.

Diana inevitavelmente pousou as mãos sobre o ventre vazio. O fracasso como super-herói significava a perda da vida de pessoas inocentes e, dessa vez, o seu fracasso a atingiu em velhas e amargas feridas.

A criança que deixou morrer trouxe de volta à sua mente todas as outras que matou dentro do seu corpo, porque seu poder magnificente as considerava uma doença e as rejeitava.

Sequer o fruto de um alienígena fora capaz de sobreviver dentro da sua casca podre.

— Eu nem mesmo cheguei a vê-lo ou escutá-lo — Diana disse, e, talvez, se fosse um pouco mais fraca, um pouco mais humana, lágrimas salgadas estariam marejando seus olhos. No fundo, não era realmente capaz de dizer se estava se referindo ao garotinho que perdeu essa noite ou aos que perdera durante a vida inteira.

— Não podemos salvar a todos, Diana. — A voz de Bruce era grave e severa, como quem conhecia essa dor e aprendera a lhe disciplinar. — Sequer podemos salvar a nós mesmos.

— É terrivelmente injusto. — Ela abraçou os próprios braços.

— A vida é injusta. Com poderes ou sem.

Diana lançou um longo olhar ao amigo. Não havia mais porque prolongar seu sofrimento. Bruce também sabia disso e, com perfeito timing, ofereceu, com um mal-humor forçado para lembrá-la da sua rotina acolhedora dentro da Liga.

— Venha, vamos sair daqui. O cheiro do lustra-móveis do Superman está realmente me deixando enjoado.

A mulher maravilha sorriu, profundamente agradecida pelos esforços do homem morcego de confortá-la. Não era qualquer um que teria a sorte de receber essa graça, ela sabia. Acompanhou-o descendo a nave da capela, mas, antes de sair, deteve-se e olhou para trás, procurando no altar a mais recente vela acesa. A chama jovem queimava em homenagem ao pequeno que, por falha sua, foi enviado aos céus antes do que deveria.

Diana murmurou um adeus, desejando ao seu espírito que a perdoasse e descansasse bem, junto ao de todas as outras crianças que ela jamais poderia ter.


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Notas finais do capítulo

Eu conheço muitíssimo pouco sobre o Universo DC - só mesmo o que eu assistia na Liga da Justiça quando era pequena, e nem era um dos meus desenhos favoritos - mas vi uma tirinha por aí sobre a depressão dos super-heróis e o da mulher maravilha era sobre como ela queria ter filhos e nunca poderia. Eu fiquei com uma ideia me cutucando pra escrever, mas tive que pesquisar bastante sobre a história da própria Diana, pra entender porque era teria essa limitação. E isso foi o que saiu. Espero não ter erros muito grotescos no enredo. Foi feito na mais pura e boa vontade de deixar vocês deprimidos com a Mulher Maravilha fracassada por jamais poder ser uma mamãe ♥



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