Elemento escrita por Grind
Notas iniciais do capítulo
Primeiro capítulo de "Elemento D". Boa leitura!
A Carta
Durante todo o meu ensino fundamental e o ensino médio, eu fui obrigada a aguentar o "Elemento D", que recebe esse nome em razão da minha roda de amigos. Quando queremos nos referir a alguém que não gostamos, usamos um apelido, — falar o nome em voz alta é extremamente perigoso — pois descobrimos que essas pessoas têm amigos em todos os lugares. Então nós os chamamos de Elemento juntamente com a primeira letra do nome, não usávamos Elemento pra todos pois as vezes era muito fácil decifrar, mas caçoando ele um dia a palavra 'Elemento' surgiu e foi perfeito.
Elemento D é um garoto da minha antiga sala que se achava o máximo em tudo, simplesmente tudo. Como alguém que de classe média, o mais baixo entre os moleques, tinha a capacidade de erguer tanto o nariz, mostrar seu lado mais do que machista e se achar o 'fodão' por fazer box e achar que tinha tudo pra virar policial? E isso sempre me irritou profundamente, eis que nos últimos meses o grêmio estudantil da escola promoveu uma espécie de "gincana" — mais especificamente para os formandos, no entanto todos podiam participar — em que você compra um envelope por dez centavos e escreve uma carta, colocando nas urnas espalhadas pela escola logo em seguida. Elas ficavam a disposição durante o mês inteiro, no primeiro dia do mês as cartas eram distribuídas. No inicio até me pareceu algo legal, mas eu logo enjoei.
E como já era de se esperar, havia os clichês com seus admiradores secretos, que não eram tão secretos assim já que todo mundo conhecia a letra de todo mundo; os retardados, que enviavam xingamentos uns para os outros e aqueles que escreviam para si mesmos.
A mania pegou e as cartas viraram rotina, uma febre.
Eu nunca cheguei a receber uma carta - não que eu me preocupasse com isso - mas depois de ver o comportamento ridículo do Elemento D no baile de formatura, eu resolvi pedir dez centavos a minha mãe. Foi um tanto quanto humilhante, já que uma moeda de dez centavos dá para achar no chão, mas eu realmente não tinha um tostão furado.
Depois de explicar a ela que era por uma boa causa, ela achou uma moeda de cinquenta centavos em sua bolsa que não parecia ter fim, e enfim a oportunidade surgiu.
Meus amigos se animaram com a ideia, mas eu tinha que colocar minhas próprias ideias no papel, tudo aquilo que eu sempre tive vontade de jogar em sua cara, então eu comprei cinco envelopes, guardei quatro e comecei a escrever.
Então, faltavam quinze dias para o fim das aulas, quinze dias para serem distribuídas as ultimas cartas para a minha turma e cada um seguir seu rumo na vida, e foi então que eu escrevi seu nome pela primeira vez de forma legível e sem ódio e coloquei discretamente a carta na urna no fim do corredor, eu sabia que ele reconheceria minha letra, sabia que ele rasgaria a carta com ódio e a jogaria fora, sabia que se ele pudesse viria tirar justificativas cara a cara e falar uma porção de besteiras como ele fez a vida toda, mas valeria a pena já que não teria uma “manhã seguinte” para tirar satisfações.
Aquilo me fez sorrir. Quinze dias se passaram em um piscar de olhos, e todos estavam muito animados por ser o último dia de aula assim como estavam tristes por precisarem se despedir. No fim da aula a caixa já com as cartas separadas com apenas da nossa sala chegou, e todos de repente estavam alvoroçados.
Elemento D recebia uma ou duas cartas no máximo, mas quando a terceira em papel e envelope azul chegou ele franziu o cenho, cheguei a receber uma – que guardei na mochila e se quer cheguei a abrir - estava entretida demais em ver qual seria sua reação.
Mas, como uma lêndea precisando cumprir o titulo, ele abriu as outras duas primeiro, riu, socou o braço do Elemento A, e do Elemento F e quando voltou para a carta azul o sinal bateu. Eu senti minhas mãos formigarem, a minha ansiedade era grande demais para vê-lo jogar seu olhar de fúria uma última vez sobre mim.
A gritaria foi tão alta que eu se quer conseguia escutar meus próprios pensamentos, no entanto sua expressão de abalo vai ficar eternizada em minha mente. Escutei o barulho da buzina do carro de meu pai e soube que já deveria ter saído, mas não havia como, o corredor estava lotado e os poucos alunos que restaram na sala já faziam um sacrifício, voltei minha atenção ao Elemento D.
Ele não parecia acreditar, leu e releu outras duas vezes, no entanto permanecia com o cenho franzido. Levantou a cabeça perdido e viu que seus amigos ‘bad boys’ já haviam o abandonado, voltou sua atenção a carta e colocou em um gesto automático a mochila que estava em cima da mesa, nos ombros – ou pelo menos uma alça – permanecendo com os olhos fixos na carta, como se procurasse algo que dizia ser uma pegadinha de mal gosto ou que seu olhar tivesse a capacidade de fazer o papel em sua mão se desintegrar.
Olhei em direção ao corredor, que apesar de ainda estar um tanto quanto movimentado estava melhor do que antes, meu pai buzinou outra vez e eu soube que se ele precisasse fazer outra vez entraria na escola – o que não seria nem um pouco agradável - E eu hesitei uma última, se eu esperasse mais um pouco eu poderia barra-lo na portaria se corresse.
Quando voltei minha atenção ao Elemento D ele já olhava para mim, não o mesmo olhar de superioridade da qual eu estava acostumada - e vê-lo com outro olhar sobre mim foi meio até que surpreendente - mas como se quisesse ver minha alma e perguntar a ela se aquilo era sério, seu olhar caiu sobre o envelope e o papel azul e os meus também, como se pudéssemos ler as perguntas um do outro estampadas em nossos rostos - quando nossos olhos voltaram a se cruzar eu não consegui segurar um sorriso maldoso, eu podia sentir a alegria em ver sua confusão me subir o peito. E os olhos dele se arregalaram, confirmando suas suspeitas. Quando ele estufou o peito e deu um passo a frente eu me enfiei no meio da multidão da porta e me misturei junto aos outro no corredor. Seu olhar de ódio seria eterno.
“Prezado elemento D,
Gostaria de começar essa carta dizendo que você é um arrogante, estúpido, hipócrita, banal influenciado pelos seus amiguinhos machistas.
Primeiro que, do time você é o pior, metido e arrogante, você é um projeto de homem que se orgulha da possibilidade de no futuro, você estiver ocupado bebendo em um bar, criando barriga enquanto a sua mulher sofrida tem cinco bocas para alimentar. Todavia você não parece se importar de ser preso porque sabe que na cadeia pelo menos tem comida e bebida de graça.
Meu conselho é que você abaixe um pouco mais a bola e se enxergue, que você não é tudo isso que pensa, no entanto se por acaso no futuro você se torne alguém de respeito e digna para que eu olhe na cara, talvez e apenas talvez, tenhamos uma conversa civilizada e possivelmente sejamos amigos.
Desde já agradeço – principalmente se manter distância de pelo menos cem metros até o fim do ano letivo – com amor,
Elemento G”
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!