Meaningless escrita por Leh-chan


Capítulo 1
Como descobri o natal




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    Mais uma vez, estávamos dentro de um carro quente e apertado. É estranho pensar que aqui sempre é quente.


            Enquanto meu pai e madrasta conversavam animadamente em um português rápido que eu não era capaz de entender, eu observava o litoral passar pela janela. Papai havia dito algo sobre o litoral “Cariouka” há um tempo, mas eu não prestei muita atenção. Estava mais preocupada com o fato de estar sendo levada a uma festa que eu nem ao menos gostaria de ir.


            O Natal pra mim, sempre foi o dia em que eu e a mamãe trocávamos presentes e íamos brincar na neve o dia todo. Meu pai estava sempre “viajando a negócios” e não podia ficar conosco. Agora, eu não tinha nem a mãe e nem a neve. Não tinha mais Natal.


            A superfície aplainada do oceano apontava a falta de vento. Naquele dia o clima estava completamente diferente, mas a água me remetia com clareza os momentos de desespero. Há um ano, estávamos celebrando tranquilamente nosso feriado particular. Patinávamos em um lago congelado perto de casa, mas a superfície se rompeu. Como estávamos sozinhas, eu não fui capaz de salvá-la. Meu pai estava no Brasil, aproveitando o Natal em uma “viagem de negócios”. Seis meses depois, ele já estava se casando com minha atual madrasta, Beatriz.


            Desde então, viemos viver aqui no Brasil, mais precisamente, Rio de Janeiro: um inferno de tão quente, se comparado ao Canadá. Agora estávamos a caminho de uma festa natalina na casa de algum amigo de meu pai. Pela agitação de Beatriz, algo me dizia que estávamos chegando.


            – Vai ser uma noite e tanto! Você vai adorar, a casa deles é enorme... – Mexia incansavelmente no cabelo artificialmente alisado enquanto falava. Meu pai apenas concordou com a cabeça, a mente vagando por outro lugar distante que não a estrada, onde devia manter a atenção. Alguns segundos depois, se pronunciou:


            – E a Emily? O que vai ficar fazendo enquanto nós...?


            – Ah, não se preocupe... Paulo tem uma menina que deve ter uns quatorze anos e um garoto da idade dela... Eles vão todos se dar bem, o menino é bem... Inteligente, aquele... Hum, Edward, ou algo assim. Esqueça isso... Pense só em toda a diversão! Faz tanto tempo que não fazemos nada excitante!


            Revirei os olhos involuntariamente. Eu e meu pai, Joshua, nunca nos demos muito bem. Não me importava. Enquanto ele não fizesse mal à mamãe, nossa relação era aturável. Depois que vim viver com ele e Beatriz, entretanto, as coisas não têm melhorado. Mas no fim, o que uma garota de dez anos poderia fazer?


            Subitamente, a velocidade do carro começou a diminuir. Estávamos próximos a uma enorme casa, realmente gigante. Em sua frente havia um vasto jardim de grama verdinha sendo esmagada por todos os carros luxuosos que chegavam, sem que ninguém ligasse para isso.


            Dos carros coloridos e blindados, homens altivos saiam acompanhados de mulheres bonitas e de roupas curtas. No nosso caso não foi diferente: meu pai abriu a porta para Beatriz, que nem se importou em ajeitar a saia ao levantar-se. Saí do carro sozinha e esperei o som das travas automáticas para seguir meus “responsáveis”.


            No caminho, várias pessoas cumprimentaram-nos com gírias que, novamente, não fui capaz de compreender. O sotaque dos “Carioukas” era engraçado, mas não mais que o meu; que segundo todos que conheci ultimamente, é carregado por um francês afilado. Não que eu tenha descoberto o que eles quiseram dizer com “afilado”. Acho que nem mesmo eles sabiam.


            Numa permissão muda para que eu fizesse o que bem entendesse, e que fosse longe; Beatriz puxou Joshua para apresentar a um homem bem vestido e com um divertido cabelo branco. Continuei o caminho em linha reta.


            De vez em quando, uma pessoa ou outra olhava para mim; mas ninguém que realmente chamasse minha atenção. Mudei a rota para um corredor extenso à minha direita, cheio de portas abertas. Em várias delas, pessoas dançavam animadamente ao som de músicas variadas. Em uma das entradas vi passar senhor com chapéu coco junto a duas loiras mais altas que si. Curiosa, segui-o.


            Lá dentro, todos, exceto o homem do chapéu, usavam roupas bastante curtas; o que era compreensível, levando em conta o calor que fazia ali. A música nessa sala tinha uma batida forte. As garotas dançavam na frente dos homens de um jeito esquisito. Além disso, não entendi uma palavra sequer do que a música dizia. Foi pensando em quão limitado era meu português que eu passei para a próxima sala no corredor.


            Desta vez, uma música conhecida me chamou a atenção. A letra ressonava em minha mente, lembrando-me de várias ocasiões onde a ouvi antes.


            “You were my strength when I was weak... You were my voice when I couldn’t speak...”... Celine Dion. A música familiar me fez sentir bem. As pessoas aqui dançavam coladas, no ritmo lento imposto. Isso era uma dança com a qual eu estou acostumada. Ao menos acostumada a assistir...


            Adentrei a sala timidamente. No canto, uma mesa com algumas garrafas de Pepsi. Ao avistá-las, não contive o ímpeto de me aproximar... Afinal, as adoro. Entretanto, eu não conseguia alcançar a garrafa na ponta oposta da mesa e coloquei-me nas pontas dos pés para tentar, ainda sem sucesso. Já estava pronta para desistir quando um rapaz de pele queimada e sorriso gentil pegou um copo descartável e facilmente o encheu com o líquido que eu almejava, entregando-me.


            – Muito obrigada, senhor. – Sorri verdadeiramente para a única pessoa que até agora havia sido gentil comigo. Talvez eu conhecesse mais gente legal durante a noite.


            – Não há de quê, pequena... Erm... Qual seu nome?


            – Emily. E o seu? – Observei-o ajeitando o cabelo para trás da orelha antes de responder.


            – Daniel. – E alargou o sorriso, fazendo uma breve mesura e voltando para a “pista de dança”, onde uma ruiva baixinha o esperava. Ainda os observei dançar enquanto bebericava minha Pepsi, mas logo resolvi ir ver o que tinha na sala ao lado. Fiquei surpresa ao notar que já estava no fim do corredor, e que a última porta entreaberta dava pra um cômodo mal iluminado.


            Pode parecer idiota e estranho, e qualquer pessoa com juízo, vejo agora, não teria entrado em uma sala escura com a porta quase fechada na casa de um estranho. Mas eu estava perdida e entediada, então empurrei a porta sutilmente com o pé.


            Lá dentro, a única luz vinha de uma lâmpada que estava ligada por fios... A uma laranja. Certa vez fiz um trabalho que consistia em um despertador movido à batata, mas isso era estranho. Pior que isso era a grande quantidade de laranjas que havia dentro daquela sala. Eu diria cinco dúzias delas. E no meio de tantas frutas, um garoto estava sentado, tentando fazer uma torre com as laranjas, ou algo assim. Como estava virado de frente para a porta, pude vê-lo franzindo o cenho e cerrando os olhos por trás das lentes grossas de seus óculos quando mais luz adentrou.


            – FECHE A PORTA! – Gritou ele, e eu, assustada, imediatamente bati a porta atrás de mim. – As laranjas não gostam de luz artificial, idiota!


            – Ah... M-me desculpe. – Pedi baixo, as mãos ainda tremendo e fazendo o líquido dentro de meu copo oscilar em pequenas ondinhas. Só alguns segundos depois que fui notar que a frase do garoto... Ela não fazia sentido algum.


            E apesar de eu ter continuado ali, depois que fechei a porta, ele não parecia nem notar minha presença. Ser ignorada não era agradável... Acho que preferi quando ele gritou comigo. Resolvi arriscar falar com ele, em tom moderadamente baixo:


            – Erm... Qual é seu nome?


            – Eduardo. – Respondeu, sem demonstrar interesse algum novamente. Agora que meus olhos se acostumavam à iluminação, comecei a notar que estava em um quarto, e a cama estava do lado oposto.


            Dei alguns passos para me aproximar de uma mesa, e ao ver que o aparente dono do recinto não se importou, continuei caminhando. Em cima do móvel, vários papéis rabiscados em uma caligrafia corrida que, julgava eu, nenhuma criança poderia ter. Mas daquela criança eu não iria duvidar.


            Fui percorrendo a superfície com os olhos quando, ao não achar nada interessante, uma pergunta me veio em mente.


            – Hum... O que você está fazendo?


            A resposta demorou alguns segundos e veio em tom indiferente.


            – Um castelo para minhas borboletas. – Ao dizer isso, fez um amplo gesto indicando as paredes, finalmente mostrando com os olhos algo diferente de indiferença: um certo orgulho, eu diria.


            Curiosa, virei-me para ver o que havia ali e me deparei com algo que não esperava: várias borboletas empalhadas - acho que é assim que chamam - penduradas por preguinhos em quadros de veludo azul. Elas eram de todas as cores e tamanhos. Aquilo me espantou de tal forma que recuei lentamente até a porta, vendo um sorriso formar-se nos lábios infantis de Eduardo.


            – Eu não tenho certeza... Mas você, que parece uma menina inteligente... Sabe me dizer se borboletas preferem laranjas ou lichias?


            – Acho que laranjas, sabe... Laranjas são muito gostosas. – Tentei esconder o nervosismo e o fato de nem saber o que era uma lixixia. – Bem, eu... Eu vou saindo, ok? Até mais, Eduardo.


            Então saí rapidamente pela porta, tendo tempo apenas de vê-lo arrumar seus óculos de aros grossos enquanto sorria, satisfeito. E, parando para pensar... Ele havia me elogiado. Ou pelo menos disse que pareço inteligente, acho que isso foi bom.


            Agora mais calma, beberiquei meu copo de refrigerante enquanto atravessava o corredor, até achar um outro corredor meio escondido onde ainda não tinha ido. Outra vez, entrei pelo primeiro portal que vi.


            Era uma sala que não tinha mais ninguém além de uma mulher rechonchuda que parecia com uma “tia simpática”. A música de fundo era uma canção natalina, e, mais atrás, havia algo que realmente chamou minha atenção: uma árvore de natal. Era um pinheiro sintético com bolas de várias texturas, porém, todas eram prata. Ironicamente, havia vários enfeites com flocos de neve cheios de glitter, também prata, espalhados pela árvore falsa. Aquilo me pareceu engraçado em um país tropical; ridículo, na verdade.


            Mas o conjunto da árvore em si era bonito de se ver. Não era como as árvores coloridas e exageradas que costumava encontrar em casas canadenses... Era sutil. Ainda assim, achei os pedaços de plástico que deviam ser folhas muito bobas e infantis.


            Quando ia me virar para ir embora ver a próxima sala, sem querer, tropecei em uma dobra do extenso tapete que, até agora, nem tinha notado. Isso certamente resultou em algo pouco agradável. O copo de Pepsi que eu segurava acabou por escorregar de minhas mãos, sujando o tapete e meu vestido florido. Isso para não falar na dor alucinante que senti em meu joelho direito. Ou seria esquerdo...? Isso não importava muito.


            – Menininha... Ai meu Deus, menininha, você está bem? – Ergui sutilmente o rosto para ver que aquela moça rechonchuda veio me ajudar a levantar. Aceitei a ajuda e coloquei-me em pé, meio desconfortável. Logo ela tentava arrumar meu vestido e me “desamassar”.


            – Me desculpa... Por sujar tudo e...


            – Não se preocupe com isso. – Me interrompeu. – Se machucou?


            – N-não... – Menti, para não incomodá-la mais. Segundos depois ela terminou de me arrumar e sorriu.


            – Mas o que você estava fazendo sozinha? Não achou ninguém para brincar com você?


            – Na verdade... Não achei, não. – Sem querer, soltei um longo suspiro.


            Aparentemente, a moça ficou incomodada com minha tristeza, e seu olhar vagou até a porta. Então, algo chamou sua atenção e seus olhos “reviveram”. Não demorou para que eu descobrisse o que ela viu.


            – JÉSSICA! Jéssica, querida... Venha aqui por um momento.


            Falando isso, uma garota alta e muito bonita adentrou a sala da árvore. Não devia ter mais que dezesseis anos, e algo nela me lembrava muito Eduardo. Talvez fossem os olhos verdes perspicazes ou os cabelos castanho-escuros e ondulados.


            – Sim, mamãe?


            – Esta garota está sozinha... Se não estiver fazendo nada, vocês podem brincar juntas.


            Vi-a sorrir infantilmente.


            – Claro, vai ser um prazer... Eu já estava ficando entediada, mesmo.


            Dito isso, a mãe de Jéssica (e provavelmente de Eduardo também) meneou a cabeça simpaticamente e deixou-nos sozinhas.


            – Hm... É um prazer conhecê-la, Jéssica. – Disse, tentando parecer agradável. O nome dela, Jéssica, me deixava confortável. Era um nome muito popular em minha cidade natal: só na minha sala de aula, havia três Jessicas.


            – Qual é seu nome?


            – Emily.


            – Então, Emily... Você quer brincar comigo? – Algo no tom dela me incomodou um pouco, mas achei que fosse só impressão minha.


            – Claro! De quê vamos brincar?


            – Hm... Eu vou te ensinar uma brincadeira nova. – Ao dizer isso, fitou-me, parecendo mais animada. Sorri.


            Jéssica colocou a mão em um bolso largo de sua calça; pensei que fosse retirar dali algum brinquedo. Mas o objeto que dali saiu me fez ficar petrificada.


            Algum tipo de instinto que eu nem sabia ter me disse para sair de lá, mas o corpo não obedecia. A única coisa que parecia funcionar eram meu olhos que viam a menina retirar um revólver cano curto de seis tiros das vestes. Nem sei como reconheci com tanta precisão aquela arma, mas o fiz.


            Logo depois, ela pegou apenas uma bala e colocou em uma das seis câmaras do revólver, antes de girar o tambor e fechá-lo. Não deve ter demorado nem um segundo para que ela apontasse a pistola para minha cabeça e engatilhasse, com um som de “clique” que me fez acordar.


            – Vamos brincar de roleta russa?


            Assim, meu primeiro ímpeto foi correr. Mesmo com a dor no meu joelho me impedindo de ir mais rápido e, mesmo sabendo que se ela quisesse podia me pegar... Eu fui em disparada pela porta e saí pelo corredor, tentando entrar em qualquer uma das outras portas dali para me esconder. Para minha desgraça total, todas elas pareciam estar trancadas.


            Pensando que voltar pelo corredor seria suicídio, continuei arriscando nas portas, até que uma delas estava apenas encostada. Sem pensar duas vezes, a abri para entrar. Mas quando vi o que tinha lá dentro, resolvi que era melhor não.


            Quatro homens estavam sentados em uma mesa jogando baralho, rodeados por mais de uma dúzia de mulheres seminuas, que os acariciavam, faziam massagem ou sentavam em seus colos, assoprando-lhes coisas aos ouvidos. Havia muito dinheiro e armas na mesa.


            Incrivelmente, essa não foi a visão que me assustou mais. Um dos homens nessa mesa, que ostentava um olhar opaco e segurava uma taça com bebida era Joshua. E Beatriz também estava lá, sentada apenas com as roupas de baixo em cima de um homem que nem me dei ao trabalho de pensar em quem podia ser. Saí correndo da sala antes que pudesse pensar em qualquer coisa; até a dor em meu joelho já era irrelevante.


            Não importando se Jéssica me seguia, atravessei o corredor onde estava e mais alguns outros cegamente, até finalmente, por um golpe de sorte, chegar à entrada da casa. Continuei correndo, chocando-me com um ar agradavelmente gelado do lado de fora. Só fui parar quando já não tinha mais ninguém perto de mim. Não saibia onde estava, mas sentia-me melhor por não ver ninguém.


            Sentei-me na grama e observei os arredores enquanto enchia os pulmões. Havia algumas flores iguais às que vi quando cheguei, o que indicava que eu ainda estava dentro da propriedade, provavelmente em seu jardim. O lugar era rodeado por algumas árvores e eu estava sentada na margem de um laguinho mínimo, que, apesar do tamanho, era muito bonito.


            Não sabia se meus pais iam me encontrar na hora de ir embora. Na verdade, nem sei mesmo se eu queria ir com eles.


            Cogitei, mesmo que brevemente, ir para o carro e ficar escondida atrás dele... Mas a ideia me pareceu idiota. Talvez eu fosse lá ver de vez em quando se aparecia alguém. Porém, algo me dizia que aquela festa de natal não ia acabar tão cedo.


            Acabei ficando imersa nos pensamentos enquanto observava minha imagem no laguinho de água plana quando ouvi um farfalhar nas folhas. Achei a frase “farfalhar nas folhas” uma aliteração engraçada, mas isso logo foi apagado da minha mente pelo medo. A vontade de levantar foi grande, mas alguma força não me deixava. Estremeci ao pensar que Jéssica podia ter me achado e que eu nem ia poder fugir por falta de forças.


            Já estava preparando minhas últimas palavras quando notei que a pessoa que se sentava ao meu lado era pequenininha. Criei coragem para olhar.


            – Olá... Sabe, eu nem perguntei seu nome. – Disse Eduardo, calmamente. Seus olhos estavam perdidos em algo que eu era incapaz de ver.


            – Erm... E-Emily. – Respondi, ainda me recuperando do pequeno susto. Olhando melhor o garoto, ele estava vestindo uma capa estranha que eu não o vi vestir mais cedo. Achei melhor nem perguntar.


            – Hm, Emily... Bonito. ‘Tá quente hoje. Você quer uma laranja?


            – É... Desculpa... Não estou com fome. – Mais uma vez, ele me surpreendeu com frases que, por mais que eu pensasse, não entendia. Ele tirou uma laranja de dentro da capa e a estendeu para mim.


            – Não é para comer, boba. É pra você usar pra limpar o refrigerante de cola que caiu no seu vestido bonito.


            Sorri involuntariamente. Ele falava coisas sem sentido, resolvi entrar no jogo para ver se funcionava.


            – Acho que as “lixixias” são melhores pra limpar refrigerante de cola...


            – É verdade, como não pensei nisso? Borboletas gostam de laranja e lichia limpa cola. Erro amador esse meu... E, aliás... Vous devriez dire Li-chí-a.


            Não pude evitar abrir os lábios em sinal de surpresa. Eduardo acabava de me ensinar a falar o nome da fruta estranha em francês.  “Você deveria dizer lichia”. Mesmo sendo um francês capenga, fui capaz de entender. Sorri mais largamente.


            – Lichia... – Repeti. – Merci.


            – N'a pas de quoi. Só uma pequena troca de favores. – Terminando de dizer isso, deixou a laranja ao lado da minha perna.


            Depois disso, ficamos em silêncio; e ele parecia ter voltado a me ignorar. Fiquei surpresa ao ouvi-lo falar enquanto fitava o nada:


            – O que está te deixando assustada?


            Ele era... Perceptivo. Ainda assim, fiquei em silêncio. Não sabia o que contar, nem se devia contar. Sua voz, entretanto, cortou meus pensamentos indecisos:


            – Ah, não me diz que foi minha irmã, a Jéssica... O que ela te fez?


            Mais uma vez... Certo.


            – Ela... Queria brincar de roleta russa comigo. – Respondi, tentando fazer isso parecer “normal”.


            – Ai, ai...  Eu não devia ter ensinado esse jogo pra ela, sacrebleau. – No primeiro momento, fiquei assustada. Mas então Eduardo começou a fazer um som meio nasalado que reconheci como uma risada. Ele estava... Brincando.


            Ri junto, sentindo-me bem mais “leve” do que sentira até agora. O dia parecia estar melhorando.


            – Sabe... Minha irmã é doida. Não liga... Ela não faria mal a uma mosca sequer. – Pensei que ela com certeza faria mal a muitas moscas... E que ele não podia falar nada sobre a insanidade da irmã, já que não era um bom exemplo de normalidade. Pelo menos era um doidinho que não tentou me matar; é um bom começo.


            Conversamos mais um pouco e descobri que ele soube de minha nacionalidade assim que me viu: tanto pelos cabelos e olhos claros quanto pelo sotaque meio “francês ou inglês ao mesmo tempo”. E descobri que ele gostava disso.


            Descobri também que o fato de ele me encontrar naquele local foi só uma coincidência e que ele gostava muito dali. Logo, o assunto virou “Natal”.


            – Eu não gosto do natal. É um dia normal onde meus pais enchem a casa de gente barulhenta que eu nem conheço... Algumas até atrapalham meus “projetos”.


            – Hum... Me desculpe. – Repliquei, envergonhada.


            – Ah, não... Você foi uma visita agradável.


            – Mas... Eu não assustei as laranjas por causa da luz?


            – Elas te perdoaram. Gostaram de você... Mas... O que você faz aqui? Sempre comemora o natal na casa de estranhos?


            – Na verdade, não. Acho esse um jeito estranho de comemorar.


            – Nem sei pra que serve o natal além de as pessoas sujarem minha casa... Tsk. O que você acha?


            – Sobre... Sujar a casa? – Questionei, confusa.


            – Não... Sobre o natal. O que é o natal?


            – Bem... Acho que é dia que as pessoas trocam presentes. – Falei simplesmente a primeira coisa que veio em mente. Ninguém nunca me perguntara isso antes.


            – Ah nãããão... Então a Emily não está tendo um natal! Isso é inaceitável, un... Espere um pouco. – De repente, ele enfiou o rosto para dentro de sua capa e começou a mexer lá dentro. Daí do nada, retirou um novelo de lã verde e o estendeu para mim.


            – O quê...?


            – Feliz Natal, Emily! – E sorriu, empurrando-me a lã. Um presente... Sorri sinceramente de volta.


            – Obrigada! Hm... – Queria dar a ele um presente também, mas não tinha nada legal. Se bem que... Pelo jeito, ele via utilidade nas coisas mais banais. Passei a mão por meus cabelos enquanto pensava quando lembrei que eles estavam presos por um laço de fita roxo. Soltei minhas madeixas e o estendi a fita.


            – Feliz Natal, Eduardo...


            Ele ficou admirando a fita, enrolando-a em seus dedos pequenos.


            – Isso é... PERFEITO! Era o que estava faltando para deixar minhas laranjas felizes... – Então ele se levantou, e já ia sair correndo quando olhou para trás. – Ei... Você quer me ajudar a terminar minha casinha de borboletas?


            Acho que ele não teria oferecido essa oportunidade a mais ninguém. Senti-me importante... E feliz.


            – Quero sim!


            – Então... Vamos? – Falando isso, estendeu a palma para me ajudar a levantar. Com uma mão peguei a laranja e o novelo, e com a outra peguei a mão dele, que me ajudou amigavelmente a colocar-me de pé. Logo, já estávamos correndo para seu quarto; meu joelho já não mais me incomodava.


            Um natal sem neve, no meio do verão, em um país estrangeiro e na casa de estranhos. Estranhos realmente estranhos... Mas... No fim das contas, foi um ótimo natal. E aprendi que o que eu gostava nos natais que passei com mamãe e neste... Era, acima de tudo, a boa companhia. Isso sim deveria ser o verdadeiro motivo do natal.


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Notas finais do capítulo

~

— A música citada que Emily ouviu na 2ª sala onde entrou chama-se “Because You Loved Me”, de Celine Dion. Celine é canadense e é muito famosa tanto no país natal quanto fora dele, sendo amplamente conhecida principalmente por sua música “My Heart Will Go On”, música tema do filme Titanic. (8)YOOOOOOU'RE HEEEREEEE... THERE'S NOOOTHING I FEAR!(8) *apanha*

— Lichia é uma frutinha interessante que eu mesma não conhecia até conhecer a colheita feliz. CLIQUE AQUI para conhecer a lichia.

— Roleta Russa é um jogo que consiste em que os participantes coloquem uma bala — tipicamente apenas uma — em uma das câmaras de um revólver. O tambor do revólver é girado e fechado, de modo que a localização da bala é desconhecida. Os participantes apontam a arma para suas cabeças e atiram, correndo o risco da provável morte caso a bala esteja na câmara engatilhada. Assim, há uma chance de 1/6 de você ser morto e "ganhar" o jogo. Não tentem isso em casa.

— Usei umas frases em francês... Coisas básicas que pesquisando no google achei. Respectivamente, uma tentativa falha de "Você deveria dizer lichia"; "Obrigada"; "Não há de quê" e uma exclamação do tipo "Ai meu Deus", ou algo assim.

~

N/A: Boa noite, leitores!

Bem... Que dizer? Acho que essa foi a pior história de natal EVER. Mas... O que eu queria dizer com isso... É que o natal tem diferentes formas para diferentes pessoas. Emily era uma criança canadense jogada em uma realidade que não a pertencia. Ficou confusa. Notem que tudo o que ela disse ali, disse por si só, ok? Não vamos confundir opiniões da autora com as da personagem.

Espero que tenham gostado e talvez aprendido algo com esse meu devaneio. Espero que tenham um feliz natal e um 2010 interessante e proveitoso. (^_^)/

PS: O título da história se deve à overdose de Loveless. Oitenta capítulos em dois dias foi demais pra mim...