Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 12
Na Floresta Proibida




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– Entre - a voz de Quíron ribombou através da pesada porta que separava sua sala do corredor. Adentrei o cômodo com passos tímidos.

O centauro sentava-se em sua cadeira de rodas enfeitiçada por trás de uma grande mesa de mármore, apinhada de livros, penas e pergaminhos. Ele indicou a cadeira vazia a frente, onde me sentei.

– Como está, senhorita?

– Bem melhor, senhor.

– Imagino que já saiba que possui o Dom da Cura, não?

Assenti com a cabeça. – Mas... não sei como foi que consegui usá-lo. Não me lembro muito bem.

– Entendo - Quíron respondeu. - É um dom que exige energia, força e poder, muito poder. Será difícil, Cecília, mas você deve aprender a controlá-lo.

Apertei as mãos sob meu colo, perguntando-me se conseguiria fazer aquilo de novo.

– O senhor sabia que eu possuía o Dom?

– Suspeitava. Você já deve saber que foi eu quem te levou para o orfanato. Quando cheguei em sua casa naquela noite, havia sangue espalhado pelo chão e você, com uma grande cicatriz no ombro, já estava curada. Eu sabia que havia algo de muito especial em você, porque nunca vi um deus lançar essa proteção sobre seus filhos.

– Então como uma fúria conseguiu atacar minha casa e matar minha mãe?

Quíron abaixou os olhos, suspirando, antes de responder.

– Não era uma fúria qualquer. Alguém a enviou. E não acredito que pararam de tentar chegar até você, Cecília. E chamará mais atenção agora que todo mundo sabe. Deve aprimorar suas habilidades para conseguir se defender.

Assenti com a cabeça, esperando que ele dissesse mais alguma coisa. Não disse.

– A escola inteira está em perigo agora, não está?

Seu olhar triste gritava que sim. Permanecemos em silêncio por alguns minutos e, quando pensei em me retirar, ele falou:

– Nós vamos aumentar o treinamento de vocês.

***

O sol já se punha quando Liz, Emily e eu cruzamos os jardins em direção à Floresta Proibida. Vários alunos já estavam por ali. Lee conversava animadamente com nossos irmãos da Lufa-Lufa, e vi Logan de cara fechada em meio a um grupo de alunos da Sonserina. Finn e John nos alcançaram quando Dumbledore, de pé na orla da floresta ao lado de Quíron e alguns professores, começou a falar.

– Boa noite a todos. Como alguns de vocês já desconfiavam, mudaremos a estratégia de treinamento, visando a interação entre semideuses e bruxos. Vocês precisam e irão aprender a trabalhar juntos. Começaremos hoje com um treino coletivo. A Floresta Proibida esconde perigos em cada canto, e mais alguns foram adicionados pelos professores. Contudo, em algum lugar na floresta, três ovos de dragão estão escondidos. Vocês devem trazê-los para nós em segurança. Os professores estarão a postos caso algum de vocês encontre problemas, basta mandar um sinal. E lembrem-se: nunca fiquem sozinhos em meio à floresta.

A escola se dividiu em grupinhos mistos antes de começarmos. As meninas e eu nos juntamos com os irmãos Reed e Lee. Pelo canto do olho e sem muita surpresa, vi Becky arrastando Logan para um grupo de alunos da Corvinal.

Adentramos a floresta após vestirmos semi-armaduras e pegarmos armas. Meu arco e a aljava de flechas repousavam nas costas e, para emergências, levava uma adaga pequena na cintura. A lua já começava a brilhar na noite recém-chegada, e a floresta parecia mais escura que o normal. Lee, à frente do grupo com Emily, carregava uma espada além de seu arco longo. Emily carregava uma foice comprida e abafava risadinhas enquanto caminhava. Liz seguia ao meu lado com a varinha em mãos, meio distraída. Ela e Finn andavam se desentendendo nos últimos dias, motivo pelo qual os Reed cobriam a retaguarda do grupo.

Cada grupo foi mandado para uma direção, e nós vasculhávamos o sudeste da floresta. A trilha começava a se ramificar a medida que adentrávamos a mata.

– Devíamos nos dividir - disse Finn, a certa altura. - Se formos todos juntos pelo mesmo caminho não vamos encontrar um ovo tão cedo.

– Pode crer - Emily falou com um sorrisinho. - Bora formar casais! Ops, duplas.

Desde que Elizabeth começara a sair com Finn, o clima entre minhas duas amigas descera abaixo de zero. Liz estremeceu ao meu lado e, se Finn não a tivesse segurado pelo braço, ela teria voado no pescoço de Emily.

– Você não precisa ir comigo - Finn falou baixo e firmemente, - vá você e a Cice. Talvez seja melhor…

– Não - John o interrompeu. - Não. Eu vou com a Cice. Vai ser uma boa oportunidade pra vocês se entenderem…

– Vamos logo com isso - disse Liz, desvencilhando-se irritada e indo em direção à um dos caminhos que saiam da trilha principal. Finn a seguiu.

Lancei para Emily um olhar de reprovação. – Você não precisava provocar.

– Ah - ela encolheu os ombros, - eu ainda não tô de boa com ela. Não tô. Foi muita crocodilagem o que ela fez comigo, Cice. Ela sabia que eu era meio gamada no Finn, e mesmo assim foi lá bordejar com ele. Mas agora, oh, tô nem aí. Porque ninguém é mais massa que um cara que pinta o cabelo de azul.

Ri daquilo, pensando que aquela era a mais pura verdade. Emily lançou um sorriso à Lee que fez sua bochechas corarem e o puxou para outra das trilhas menores. John e eu ficamos sozinhos.

– Queria que o Finn e a Liz se entendessem.

John encolheu os ombros enquanto recomeçávamos a andar.

– É sempre assim. Ele não é muito do tipo que se apaixona.

Antes que eu pudesse responder, porém, vi algo brilhando em meio as árvores, ao longe. O ovo!, pensei, enquanto saía correndo naquela direção. Percebi tarde demais que aquele brilho amarelado pertencia não a um ovo, mas à um par de olhos grandes e sinistros na copa de um salgueiro. A fúria soltou um berro ensurdecedor e pulou da árvore, batendo as asas com força. Caí ao chão, o coração enchendo-se de pânico. Aquele monstro horrível era igualzinho àquele dos meus pesadelos. Foi aquela fúria que matou minha mãe.

Enquanto eu estava congelada no chão, ela urrou mais uma vez e mergulhou em minha direção. De repente, uma luz brilhou passando rápido por cima de minha cabeça e atingiu a fúria, lançando-a para trás. Ela caiu ao chão há alguns metros de distância, parecendo se transformar em outra coisa, e saiu correndo floresta adentro.

– Você está bem, Cice? - John curvou-se sobre mim, com a testa franzida por baixo do cabelo loiro, e me ajudou a levantar.

– Sim, mas como você…?

– Não era uma fúria, era só um bicho-papão. Não ia te machucar de verdade. Não acredito que é isso que Dumbledore quis dizer com perigos de verdade… De qualquer jeito, não saia mais correndo assim.

Assenti, meio envergonhada. Andamos mais um pouco, tomando o cuidado de não seguir o caminho do bicho-papão, e encontramos Lee e Emily em uma pequena clareira.

– Parece que algumas daquelas ramificações terminam aqui.

– Nada? - Lee perguntou, ignorando o comentário de John.

– Nada - confirmei.

Não tardou nem dois minutos depois de chegarmos à clareira para que outros bichos voadores encontrassem a gente. Gastei quase ⅓ das flechas que me restavam abatendo os pássaros sinistros antes que grandes bestas marrons viessem correndo em nossa direção, espantando-os. Os “animais” de, no mínimo, um metro e meio de altura pareciam uma mistura mal feita de pit bulls com lobos gigantes. A besta da frente ignorou uma flechada no olho e continuou a correr até mim. Não pensei duas vezes antes de sair correndo também, ouvindo a besta aproximando-se cada vez mais. Precisava matá-la.

Não podia armar o arco enquanto estivesse correndo, então teria que parar de algum jeito e atirar. Subir numa das árvores parecia uma boa ideia, mas eu não conseguia distinguir as árvores que passavam embaçadas por mim, e minha visão piorava muito durante a noite. Com a respiração já ofegante, senti minha pernas fraquejarem. Tinha que fazer logo. Diminuí a corrida quando uma árvore no meio do caminho entrou em foco, e pulei ao me aproximar dela. Agarrei-me num dos troncos mais baixos, mas enquanto fazia força para erguer o corpo, a besta me alcançou. Tentei chutá-la, mas ela foi mais esperta e abocanhou minha perna direita, que ainda estava pendurada. Caí ao chão com um baque, sentindo a dor crescer onde a criatura havia cravado os dentes.

Ela agora rosnava acima de mim, com as patas grandes cada uma de um lado do meu corpo, a flecha enfiada quase até a metade em um de seus olhos escuros. Puxei a adaga pequena e a finquei rapidamente na barriga da besta. Ela mal sentiu. Era como se fosse vazia por dentro, sem nenhuma gota de sangue. Ficou claro que era algum animal feito por magia, mas sua mordida na minha perna fora bem real. A besta rosnou mais uma vez, mostrando grandes presas, agora mais perto do meu rosto. Perguntei-me o que iria me acontecer. Não podia mandar nenhum sinal para pedir socorro. Caí desconfortavelmente em cima do arco e, mesmo se conseguisse pegá-lo, as flechas estavam espalhadas pelo chão.

A besta parecia esperar que eu fizesse alguma coisa, se não já teria me matado. Esse pensamento me trouxe um pouco de calma, calma o suficiente para perceber uma mancha na pelagem marrom-sólida do bicho, bem no meio da testa. Ergui a adaga novamente e, com força, finquei-a até o cabo naquela marca escura. A besta parou de rosnar, seus olhos perderam o brilho e ela tombou de lado, rígida.

Sentei-me na grama e sequei o suor da testa, tremendo. Minha perna sangrava onde a criatura mordera. Ótimo. Hora de curar isso, Cice, pensei, mas não sabia como. Ainda não controlava o Dom da Cura e, se eu o usasse, provavelmente desmaiaria ali e seria uma presa fácil. Olhei em volta com um suspiro cansado. A escuridão era quase total, rompida apenas por alguns raios de luar opacos que transpassavam a mata densa. Levantei-me e manquei alguns passos, quebrando o estranho silêncio da floresta.

Estou perdida. Ótimo.

Decidi que iria tentar subir na árvore de novo, onde eu poderia ao menos usar meu arco composto. Recolhi as flechas espalhadas pelo chão, retirei a adaga da cabeça da besta e fiz força para subir na árvore mais uma vez, sufocando um grito de dor. Parei no segundo galho e decidi que sentaria ali mesmo. Atirei uma flecha para o céu, em sinal para alguém vir me tirar dali, e esperei. A flecha fez curva no ar e caiu ao lado da árvore, indefesa.

Rasguei uma tira da blusa que usava por baixo da semi-armadura e amarrei sob a mordida para estancar o sangue. Depois do que pareceu uma eternidade, nada aconteceu.

Droga, vou ter que me virar e sair dessa sozinha.

.

Quando fiz menção de descer da árvore, porém, um brilho azulado inconfundível brilhou não muito longe dali. Era um raio. Pulei no chão com uma pontada de dor na perna e fui andando naquela direção, o mais rápido que conseguia sem fazer muito barulho. Após poucos minutos, distingui uma forma escura e grande sobrevoando o céu. Outra criatura vinha rapidamente, e se eu continuasse andando nos encontraríamos logo a frente. Posicionei duas flechas no arco e atirei. As flechas rasgaram o ar e acertaram a criatura na mesma hora em que um raio azul a atingiu também. Manquei na direção de onde o raio tinha vindo, e pelo farfalhar da mata à frente, alguém vinha em minha direção também. Vi seus olhos azuis claríssimos se aproximarem.

– Logan! - Gritei, ainda tentando correr, e seu rosto pálido surgiu em meio às árvores. - Logan! Graças aos deuses!

Abracei-o fortemente, respirando de alívio.

– O que aconteceu com você? - Ele perguntou, enquanto eu ainda o abraçava.

– Uma besta me mordeu. Eu quero sair daqui, Logan, por favor. Vamos voltar pro castelo.

Ele me soltou e avaliou a mordida em minha canela sob a faixa rasgada da blusa.

– Cure isso.

– Eu ainda não sei controlar, esqueceu? E ficaria muito fraca se conseguisse.

– Não quero saber. Não fiz uma pergunta.

Estreitei os olhos pra ele. Você não manda em mim era o que eu queria responder, por mais infantil que fosse. Ao invés disso, falei:

– Se eu apagar aqui você vai fazer o quê? Me carregar até o castelo? Nós nem sabemos onde estamos!

Ele bufou enquanto passava as mãos pelo cabelo escuro.

– Alguém deve ter visto o raio. Vamos pra onde o corpo daquela criatura caiu, você cura isso e nós esperamos alguém aparecer. O quê que aquele babaca do Reed estava pensando quando te deixou sozinha?

– Fui eu que me perdi dele - respondi, impaciente - quando tentei fugir da besta. E você não pode falar nada, deixou a idiota da sua sombra sozinha também.

Mais uma vez ele conteve a raiva, e eu soube que levaria um choque se tocasse nele.

– Eu não a deixei sozinha - Log falou entre dentes, - ela está com mais três pessoas levando um dos ovos para o castelo.

Claro que a miss perfeição tinha que achar um ovo, pensei, e fiquei feliz de ter contido a língua. Ele já ia adentrando a floresta de novo, e eu o segui mancando.

– Por que você saiu de perto deles, então?

– Vi sua flecha.

Encolhi os ombros e fingi um orgulho que não sentia.

– Eu não precisava ser salva.

– Ah, não? - E repentinamente, Logan me pegou no colo. - Andando devagar desse jeito você está pedindo para ser morta. Nem todas as criaturas aqui são feitiços de professores. Alguns te matariam antes que percebesse a presença deles.

Engoli em seco e não respondi. Ficamos em silêncio por algum tempo, eu com as mãos em volta do pescoço dele enquanto ele me levava sem esforço nos braços musculosos. Alguns sons agora eram audíveis ao longe, e não eram sons de batalha ou de pessoas conversando. Brilhos alaranjados iluminavam a floresta logo à frente, mas Logan não parecia se importar.

– É fogo - eu disse num sussurro. - Não podemos ir por aí, Logan, tá pegando fogo.

– Não. Não está pegando fogo.

Mas eu podia sentir a temperatura aumentar a medida em que nos aproximávamos. Ele colocou-me no chão e fez sinal para que o seguisse por entre algumas árvores muito próximas umas das outras. Realmente, a floresta não estava pegando fogo.

Eram dragões.

***

Estávamos em uma grande clareira cercada, circular, onde dois dragões cuspiam fogo numa carcaça grande e um terceiro dormia na extremidade oposta. Meu queixo caiu.

– Pelos… deuses!

– Aquilo é a criatura que nós abatemos - ele apontou para a carcaça carbonizada.

– Eu não sabia que Hogwarts tinha dragões de estimação.

Logan deu uma leve risada.

– Eles podem ser tudo, menos dragões de estimação.

Manquei para mais perto da cerca, fascinada. – Eles são lindos. Você sabia que eles estariam aqui?

– Desconfiava.

Comecei a andar ao redor da cerca, em direção ao dragão adormecido.

– Onde fica a porta?

– Porta?

– É, a porta da cerca.

Logan segurou meu braço com força. – Tá pensando que vai entrar aí?

– Eu só quero vê-los mais de perto - desvencilhei-me de suas mãos. - Aquele ali está dormindo, eu não vou fazer barulho.

Perguntei-me se alguém teria pensado que aquela cerquinha seguraria um dragão que podia voar antes de perceber que eles tinham correntes de ferro em volta do pescoço. Abafando mais um grito de dor, pulei a cerca.

– Vem - falei para Logan. Suas mãos estavam cerradas em punhos.

– Você está tentando se matar, Cecília?

– Vem logo. Não precisa ter medo.

Eu mesma teria me perguntando se estava no meu juízo perfeito se não estivesse tão fascinada pelos dragões. O maior dos três possuía escamas cinza-metálicas, olhos vermelhos e garras enormes rasgando a carcaça, enquanto o dragão de escamas verdes, facilmente reconhecível como um Verde-Galês, soltava labaredas de fogo em jorros finos no que restava da criatura morta. Entretidos com a carcaça, nem notaram nossa presença. Nenhum dos três parecia adulto, mas aquele que estava mais próximo da cerca era o menor e dormia a sono solto. Ouvi Logan se aproximar.

– Se eu morrer aqui - ele sussurrou, - eu volto do submundo e te mato.

Ri baixinho enquanto chegávamos cada vez mais perto do dragão, a dor na minha perna esquecida. Era o mais belo dos três com as escamas azul-escuras e o peito dourado, as faíscas azul-brilhantes saindo das narinas daquele Focinho-Curto Sueco enquanto ele dormia.

Estávamos a menos de dois metros dele quando eu amarelei.

– Vai logo - Logan sussurrou em minha orelha, rindo.

– N-Não… tá bom aqui…

Ele suspirou impaciente e começou a resmungar.

– E ainda por cima ficou na Grifinória. Pelos deuses! Eu não cheguei até aqui atoa.

E, com passos decididos, Log passou por mim e chegou perto do Focinho-Curto, com a mão estendida. Mordi o lábio quando ele o tocou. O dragão nem se mexeu.

Logan olhou para mim por cima do ombro, com um sorriso cínico.

– Vem logo. Não precisa ter medo.

Mais uma vez estreitei os olhos, dando um sorriso a contragosto. Fui até ele e, com a mão trêmula. No momento em que toquei as escamas azuis e duras do dragão, seus olhos dourados se abriram e olharam pra mim.


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