A Dama da Névoa escrita por Karina Saori


Capítulo 1
Um sorriso largo demais para ser normal


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura c:



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Prólogo

O frio daquela manhã era especialmente intenso na pequena cidade, que mais parecia uma vila, com seus 826 habitantes. Naquele lugar, ouvia-se apenas o soprar do vento rasgando o ar gélido e congelante das sete horas da manhã, apesar dos poucos comércios abrirem às seis e meia. Ao longe, de modo abafado, algo quebrava o silêncio. Algo que parecia com uma voz chorosa, se debatendo na cama e acordando ensopada de suor, mesmo com o frio de 3ºC.

— Minha filha, você está bem? — os cabelos castanhos da menina estavam emaranhados, com alguns fios grudados em seu rosto por causa do suor. Ela deitou novamente, cobrindo-se, e apertou os lábios carnudos com os dentes separados.

— Estou. Não sei o que aconteceu, mas estou bem. Obrigada, tia, pode voltar a dormir... Desculpa se te assustei de novo.

Aquela senhora alta e rechonchuda fechou a porta com a dobradiça barulhenta e voltou ao seu quarto, ainda preocupada com a sua sobrinha que, de uns tempos para cá, grita durante os sonhos e acorda pingando suor. Tudo isso desde a chegada daquela mulher na cidade, há três dias. Mas o mais estranho é que apenas a menina conseguia enxergá-la.

—__________________________________________________________

1996

Nunca tinha algo pra fazer naquela cidade minúscula. Eu já conhecia todas as pessoas, todos os lugares de Sandbolt. Desde que parei de brincar de boneca, passava o tempo lendo, olhando para o céu ou contemplando a rua praticamente vazia, apenas com as mesmas pessoas que sempre me cumprimentavam quando me viam na varanda. Não importa como eu olhasse, tudo era tão chato. Perdi as contas de quantas vezes li o livro "Crime e Castigo", que deixou de ser meu preferido quando o li pela quarta vez. Já li quase todos os livros da loja que chamam de biblioteca, já que tem entorno de apenas 120 livros. Mas naquele dia, algo de diferente aconteceu. Depois disso, nunca senti tanta falta do monótono.

.

3 dias atrás

Naquela época do ano, o clima era estagnado aos 15ºC, sempre com o céu aberto, mostrando o seu azul acinzentado. Mas hoje o amanhecer chegou congelante. Dobrei o número de agasalhos e saí na varanda, como todos os dias.

— Pelo amor de Deus, que frio é esse — juntei as minhas mãos e aproximei da boca em uma tentativa inútil de esquentá-las. Já passara das seis e meia e não havia sequer uma pessoa na rua. Nem mesmo aquela senhora que levantava junto com o Sol para comprar pão.

— Lina, melhor você entrar! Do jeito que está frio, você vai acabar pegando um resfriado! — minha tia berrava da cozinha enquanto preparava o café da manhã.

— Já vou! Mais uns dez minutinhos! — a garganta ardeu ao gritar em resposta.

Sentei-me na cadeira de balanço e soquei minhas mãos entre as pernas. Apesar dessa luta na tentativa de me esquentar, eu amava o frio, o tempo nublado e a bruma baixa. Do jeito que está frio, há uma grande possibilidade de nevar, por isso quero esperar mais um pouquinho.

A névoa começou a ficar densa e eu mal conseguia enxergar a casa da frente. Já tinha dado sete e meia, mas não havia sequer um barulho na rua.

Em meio àquela cortina branca, ouvi passos lentos vindos da entrada da cidade, próximo da minha casa. Eles se aproximaram, mas eu ainda não conseguia enxergar quase nada. Passaram em minha frente e, quando ouvi seguindo a diante, a névoa enfraqueceu. Forçando a vista, vi a silhueta de uma mulher de cabelos negros feito jabuticaba. Parecia ser uma amiga minha, Carolina. Chamei-a, mas me ignorou e continuou andando.

Saí correndo em sua direção, até que virou à direita. Mas não tinha praticamente nada lá, era só um beco que usávamos para jogar os sacos de lixo. Continuei gritando o seu nome, mas ela não respondia e sequer olhava para trás. Virei no beco e...

— Será que confundi por causa dessa névoa? Não tem ninguém aqui. Melhor voltar, parece que a temperatura está caindo... — dei de ombros e virei de costas.

Assim que virei, dei de cara com alguém. Quando me afastei para olhar seu rosto, percebi que era a mulher que eu achava que era a Carolina.

— Olá, mocinha. Você pode me ajudar? Estou perdida.

Tive uma sensação estranha quando ouvi a sua voz enferrujada e arenosa. Estava usando um vestido de alça fina, apesar de estar um frio absurdo. Cinza e dançante com o vento, batia em seus joelhos magros e pálidos. Os pés estavam descalços.

— Onde você quer ir? — quando olhei para o seu rosto, senti uma pontada no estômago. Ela era muito bonita, com o cabelo encaracolado em um tom de preto bem escuro. Mas seus olhos... Meu Deus, tinha algo de errado naqueles olhos. Eram extremamente pretos e opacos, como se a pupila tivesse tomado conta de toda a íris.

Seus lábios sorriram maliciosamente para mim, pintados com uma cor sem vida. Um sorriso largo demais para ser normal.

— Para o centro.

— É só virar duas direitas. — tomei sua frente, saindo do beco para apontar a direção. A névoa estava ainda mais forte, parecendo que nos seguia — Qual é o seu nome? — quando virei, ela não estava mais lá.

Um frio cobriu o meu estômago. Ela deve ter voltado... Isso, ela deve ter voltado, deve ter acontecido algo urgente. Melhor eu voltar pra casa.

A rua ainda estava completamente vazia, mas a névoa havia passado; parecia que ela estava caminhando para dentro da cidade. Quando cheguei em casa, minha tia estava na varanda.

— Onde você foi, Lina? O café já está pronto!

— Desculpe, tia... Confundi uma forasteira com a Carolina, aí acabei indo atrás.

— Ora, ora, forasteira? Faz anos que não temos visitantes. Mas então, o que ela faz nesse fim de mundo?

— Sei lá, não perguntei... Ela só quis ir para o centro.

Minha tia deu de ombros e entrou, fazendo um gesto para que eu entrasse também.

Peguei uma xícara de chá fumegante e subi para o meu quarto. Parei em frente à janela e observei a rua mal movimentada. Não conseguia afastar o rosto daquela mulher da minha cabeça. Do frio na barriga que senti apenas por ouvir a sua voz ou da pontada no estômago ao ver o seu rosto incomum. E o mais estranho: ela não piscou sequer uma vez.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler c: