Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 8
8 - As Coisas Que Não Mudam


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas!
Primeiramente,eu gostaria de agradecer à todos que acompanharam e favoritaram a história nesses aproximadamente quinze dias de intervalo entre os capítulos. Sei que demorei para atualizar, mas a escola está de volta e meu ritmo de atualizações deve diminuir um pouco... Faz parte, espero que entendam!
Segundamente, obrigada pelos comentários lindos e desculpem-me também pela demora em respondê-los. Não é vácuo, gente, é só lerdeza da minha parte mesmo. :v
Aqui está o oito.
Hope you like it!



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Domingo, 03 de agosto de 2014, casa de Matheus

“Davi e Guilherme, em uma época em que ainda dividiam o mesmo quarto, cada um deitado em sua própria cama. Estava chovendo lá fora, uma típica chuva de novembro, e o clima no cômodo era, ao mesmo tempo, triste e cheio de esperanças — dentro da época mais confusa da vida de Davi, ele se lembrava de se sentir assim praticamente todo o tempo.

— Você está preocupado com nada. — disse Guilherme, talvez pela milésima vez naquela tarde. — Se é assim que as coisas são, não é muito mais fácil aceitar e aprender a lidar com isso do que tentar ser outra pessoa?

— Você coloca as coisas de modo muito simples. — Davi retrucou. — Meus pais vão me odiar. Meu pai nunca vai aceitar. Talvez minha mãe até aceite, mas... Eu vivo para agradar meu pai. Faço tudo o que ele quer. Não posso simplesmente chegar em casa e dizer: ‘oi, pai, jóia? Queria dizer pra você que a partir de hoje eu também gosto de garotos. Vou ali tomar banho. Tchau.’

Mas é claro que não, porque não é assim que as coisas funcionam. Davi não podia vê-lo, mas sabia que o amigo tinha revirado os olhos. A coisa é a seguinte, Davi: você vai ter que lidar com seus pais, vai ter que lidar com o preconceito e vai ter que lidar com um monte de outras coisas, mas a verdade é que...”

— Você não pode mudar quem você é. — Davi repetiu em voz baixa, piscando e afastando a memória. Talvez porque ela tivesse sido o farol de seus piores dias ou apenas porque era uma frase realmente boa, o garoto nunca a esquecera. E de fato, eu não mudei. Só me tornei o tipo que não dorme à noite porque socou um amigo demente e depois vai visitar esse mesmo amigo, porque masoquismo pouco é bobagem, não acha, Guilherme?

O pensamento era deprimente demais para Davi levá-lo adiante e, com certo esforço, o garoto o afastou. Tinha outras preocupações no momento, como estar há dez minutos na frente da porta da casa de Matheus e ainda não ter tocado a campainha, fosse por puro medo ou apenas por preguiça — ele não sabia. De tanto divagar nos detalhes da porta enquanto se decidia, acabou entrando em um delírio nostálgico, e agora a frase que Guilherme falara para Davi anos antes se e repetia sem parar em sua cabeça, deixando-o ao mesmo tempo culpado e feliz. Realmente, algumas coisas nunca mudavam: ele tinha se sentido da mesma forma quando escutara a maldita citação da primeira vez.

“Você não pode mudar quem é”. Mas é claro que eu não posso! Isso quer dizer que eu não posso ajudar Matheus, não é? Isso é um esforço inútil, claro. Se ele é um idiota, ele vai continuar sendo, com ou sem a minha ajuda. Davi virou as costas para a porta e começou a caminhar em direção ao portão. Mas... Eu era um idiota e o Guilherme realmente me ajudou a não ser mais um idiota. Isso quer dizer que eu posso ajudá-lo. Mas isso também quer dizer que ele pode mudar quem é... Ele suspirou e voltou-se novamente para a porta, encarando a campainha com desespero. Guilherme, você ainda me paga por essa maldita crise paradoxal. Toco a merda da campainha? Não toco a merda da campainha? Ok, vou tocá-la. Nem que seja para sair correndo. Isso sempre foi engraçado.

No fim, a discussão mental não foi necessária; no exato momento em que o Davi levou a mão à campainha, a porta se abriu com um estalo, fazendo o garoto pular de surpresa.

— Moleque? — Irene o encarou com curiosidade, segurando um saco de lixo na mão. — O que você está fazendo aqui com essa mão levantada?

Davi praguejou baixo; definitivamente, simpatia não era com ela.

— Eu estava indo apertar a campainha. — Davi explicou, sentindo-se bastante ridículo. — Eu... Vim visitar Matheus. Ver como ele está. Posso?

— Matheus está com dor de cabeça e reclamando como um velho. — ela o informou, a voz seca. — Eu se fosse vocênão estragaria seu dia; é domingo. Vá ter um almoço com a sua família, dar uma volta no parque, sei lá.

— Senhora...

— Irene. Detesto que me chamem de senhora.

— Irene. — ele se corrigiu. — Eu saí de casa às oito e meia da manhã para vir aqui visitar Matheus. Se eu fiz isso, você deve adivinhar que eu não tenho almoço de família em mente, nem estou com vontade de dar uma volta no parque; por enquanto, eu apenas quero ver Matheus. Posso?

Irene pendeu a cabeça para o lado como se estivesse pensando, analisando-o com uma estranheza satisfeita; era quase como se Davi estivesse passando por algum tipo de teste, no qual os resultados estivessem sendo inesperadamente bons.

— Eu não sei se disse isso hoje de madrugada... — ela disse enfim, em tom mais agradável. — Mas o Matheus não tem muitos amigos. Não muitos amigos que saem de casa às oito e meia da manhã para vir aqui visitá-lo depois de um porre... Você disse que vocês dois são da mesma sala, é isso, senhor...?

Ela está desconfiada. Davi constatou, encarando o sorriso pequeno da mulher. Não vou ganhar nada mantendo a mentira que contei ontem.

— Davi Montecruz. Não estamos na mesma sala da grade escolar, mas estudamos juntos no Clube de Xadrez. Eu, inclusive, estou jogando com Matheus para deixá-lo em dia para o campeonato no final do ano. Você sabe sobre o campeonato, não sabe?

Ao escutar as palavras, a postura da mulher mudou imediatamente.

— Montecruz? Você joga xadrez? — perguntou, a voz perigosamente macia. Davi confirmou com a cabeça. — Ah... Isso é interessante. É por isso que se tornaram amigos?

— Sim. Matheus é bastante competitivo, mas nós conversamos o suficiente para eu saber o que pode animá-lo. Estou preocupado com ele, sinceramente... Eu me sinto um pouco responsável, já que fui eu quem o convenci a ir à festa ontem.

Irene ficou calada por um minuto, pensativa, até finalmente dar espaço para o garoto passar.

— Você sabe onde ele está. Acho que consegue chegar lá, não consegue? Pois bem. — ela sorriu para ele, simpática pela primeira vez. — Cuidado. Eu já disse, ele está com dor de cabeça e reclamando horrores. Além disso, está quase cuspindo espinhos também.

Davi sorriu para ela enquanto entrava.

— E esse não é o Matheus de todos os dias?

Irene gargalhou.

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Matheus estava deitado na cama e sua aparência não era nada boa: ele tinha a expressão desanimada, um enorme inchaço no lado direito do rosto e profundas olheiras abaixo dos olhos. Ele não notou Davi imediatamente após a entrada do garoto e, assim que o fez, observou o terceiranista com olhos enfastiados, como se estivesse cansado demais para brigar com ele.

— O que você está fazendo aqui, Davi? — disse com a voz pastosa. — Não tem nada aqui para você.

— Vim ver como você está. — Davi caminhou pelo cômodo. Era surpreendentemente branco e limpo, despido das tradicionais decorações esperadas de um quarto de um adolescente. — Estava preocupado com você.

Até deixei de dormir, inclusive, ele quis completar, mas não parecia algo sábio a se dizer; ao invés disso, sentou-se na ponta da cama de Matheus, observando-o com seriedade.

— Não tem nada para se preocupar. Estou com a cara inchada — por sua causa — e sentindo uma dor de cabeça infernal. Pronto. A porta é a serventia da casa.

Cuspindo espinhos? Eufemismo seu, Irene. Eufemismo.

— Não vim aqui só para ver como você está. Eu quero... — Davi respirou fundo. — Quero falar sobre o que você fez ontem.

— Eu sabia que era isso. — Matheus murmurou com tristeza. — Não quero falar sobre isso com você, Davi. Não quero falar sobre isso com ninguém. Eu prefiro fingir que ontem não existiu. Eu já disse que a porta é a serventia da casa?

— Disse. Não que eu pretenda sair, claro. — Davi suspirou. — Há quanto tempo você sabe que é gay, Matheus?

A frase pareceu acertar o segundanista como um tapa na cara; ele fechou os olhos e respirou fundo, o rosto se contorcendo em uma expressão de dor.

— Davi... Não. Só cale a boca.

— Não adianta você dizer que não. Eu vi tudo, ok? Eu estava lá desde o começo!

— Não, pare com isso! — Matheus, já tão branco, empalideceu quase ao ponto da transparência. — Cale a boca! Eu não quero escutar isso! Sai daqui!

— Matheus, vai ser muito mais fácil se você simplesmente aceitar as coisas do jeito que elas são!

— DAVI, CALA A DROGA DA SUA BOCA! — o segundanista finalmente berrou, sentando-se na cama com uma expressão de angústia. — Se você veio aqui para me lembrar de coisas que eu estou há anos tentando esquecer, então SOME! Não preciso da droga da sua ajuda, ok? Você não entende!

As palavras ecoaram no silêncio do quarto, ondulando de forma desconfortável entre os dois. Matheus encarou Davi com raiva antes de deixar a cabeça cair novamente no travesseiro, parecendo esgotado, e o terceiranista suspirou com melancolia. Não era assim que tinha planejado a conversa, mas Matheus parecia ter certa birra por fazer as coisas do jeito que Davi queria.

E eu tenho que admitir que não fui muito sutil. Davi reconheceu para si mesmo. Quer dizer, deu para ver ontem como isso o afeta e eu chego alegremente hoje jogando a coisa na cara dele. Não foi muito inteligente.

— Ontem — ele tentou novamente, depois de um longo silêncio, a suavidade da própria voz o deixando surpreso —, eu fiquei assustado pela sua explosão. Você é uma pessoa muito irritadiça, Matheus, mas nunca pareceu um tipo furioso... Muito menos violento. Você disse que queria matar o pobre Arthur, e eu tenho certeza de que, se eu não o tivesse parado, isso realmente teria acontecido.

— Eu o teria matado. E não teria me arrependido disso.

— Eu sei. Foi por isso que eu o parei, e não me arrependo de ter parado você. Sim, me senti culpado igual ao diabo por causa desse soco... — Davi apontou para a parte arroxeada e inchada do rosto de Matheus. — E nem dormi por causa disso, se quer saber. Mas esse não é o ponto. O ponto é que, enquanto eu estava levando você embora, eu sinceramente pensei em nunca mais chegar perto de você de novo. Você sabe que eu poderia e que você não teria como me chantagear... Um cenário sem você me pareceu bem tentador. Contudo, eu não só te trouxe em casa como estou aqui agora. Você pode me dizer por que, Matheus?

Claramente, Matheus não esperava por essa pergunta: ele encarou Davi com estranheza por um minuto muito longo, as sobrancelhas franzidas. Era quase possível ver a mente do garoto maquinando, procurando qualquer armadilha na pergunta, qualquer pegadinha escondida, qualquer coisa que denunciasse más intenções na fala de Davi.

Rá! Pensou o garoto, com uma mistura estranha de contrariedade e satisfação. Não vai achar nada, bestão. Eu estou sendo sincero aqui, mesmo que isso não me deixe nem um pouco feliz.

— Ah, não sei! Não sei mesmo. — a desistência do segundanista veio acompanhada por uma leve exasperação. — Por que, Davi?

— Simples. Porque nós somos amigos. E você pode confiar em mim.

Matheus não disse nada e Davi até chegou a achar que o garoto ou não o escutara, ou estava sendo, como sempre, muito rude. Curioso, Davi se inclinou na direção do outro, esquadrinhando seu rosto à procura de alguma coisa, sentindo uma pontada de presunção ao perceber do que se tratava. Sim, ele tinha sido ouvido. Não, ele não estava sendo ignorado; Matheus estava apenas chocado demais para falar, o rosto contraído em uma máscara perfeita de confusão.

Que legal! Peguei você de surpresa três vezes em cinco minutos. Meu recorde pessoal. Talvez essa situação não seja necessariamente ruim.

— Eu... Não entendo. — Matheus balbuciou enfim. — Cara, a única coisa que eu não fiz com você esse ano foi ser simpático. Não tem porque você dizer isso.

— Mas é claro que tem por quê. Caso não tenha percebido, você é presença constante na minha linda vida há quase dois meses, sem contar a odisséia que você fez para me convencer a jogar com você. Tudo bem, você foi detestável no começo, mas eu sou do contra.

— Você não sabe nada sobre mim e muito menos eu sei alguma coisa sobre você. — o segundanista resistiu. — Não dá para dizer que somos amigos.

— Eu poderia discorrer aqui sobre seus gostos musicais estranhos, sobre como você gosta de Yanni, Katherine Jenkins e mais uma penca de artista de música clássica (você me falou isso em uma conversa), sobre como você odeia o Vespasiano com todas as suas forças ou talvez sobre sua fobia injustificada de palhaços, mas para quê? — Davi não pôde evitar o sorriso irônico; ele surgiu sem sua permissão. — Você pode acreditar no que quiser. Não muda o fato de que somos amigos e pronto. Pare de reclamar, não é todo dia que alguém chega na sua casa para declarar amizade, sabia? Não seja mala.

— Ok, somos amigos. — Matheus admitiu e suspirou, erguendo as mãos para o alto em um gesto de derrota.

— E agora? Eu tenho que te abraçar?

— Não! Fique bem aí. — Davi apontou enfaticamente para os travesseiros. — Agora é a parte em que você confia em mim e me conta o que está acontecendo.

O segundanista tombou a cabeça para o lado e o encarou com espanto; era possível ver que Davi o pegara em um momento de fragilidade e que ele não sabia exatamente o que fazer. Durante alguns segundos, Matheus não disse nada, encarando um ponto indefinido no quarto, até que ele finalmente abriu a boca, respirou fundo e começou a falar:

— O que está acontecendo é o que você acha que está acontecendo. — ele disse, soando bastante amargo. — Eu sou... Quer dizer, eu nem sei se sou... Gay. — Matheus proferiu a palavra como se ela fosse alguma espécie de maldição. — Na verdade, eu não sou, não quero ser, não posso ser! Fico procurando uma solução para isso, mas não me vem nada.

— Talvez não tenha solução?

Até porque isso não é um problema, Davi quis concluir, mas novamente, não parecia algo sensato a se dizer.

— Não é assim que funciona. Eu... Você tem ideia de como isso acabaria com a minha vida? Eu tenho planos, as pessoas têm planos para mim. Não é como se eu pudesse simplesmente me virar e ir contra tudo isso. Minha vida está toda planejada, Davi; eu sei para qual universidade vou, qual curso vou fazer, com o que vou trabalhar... Isso é simplesmente acabar com tudo. — Matheus o encarou com desafio, como se estivesse esperando por uma resposta esperta, mas Davi não falou nada; lembrava-se de ter dito palavras muito parecidas, anos antes, e da resposta que Guilherme lhe dera: silêncio. — Isso se eu realmente for... Gay. Eu não sei. EU NÃO SEI DE MERDA NENHUMA!

— É por isso que você ficou daquele jeito ontem?

— Foi como se aquele garoto fosse algum tipo de castigo... Eu o odiei tanto, mesmo que a culpa não fosse dele. Eu me lembro de Rebecca falando que eu nunca parecia estar lá quando nós namorávamos, que eu parecia estar voando e que aquilo a deixava chateada, mas eu nunca consegui, de fato, sentir algo. Eu sempre disse a mim mesmo que era porque eu a conhecia havia tanto tempo, desde quando éramos crianças, e por isso, estar com ela era estranho, mas... E se não for? Eu fico pensando nisso, todo o tempo.

Tão parecido comigo, mas tão diferente. Davi pensou com certa tristeza. As mesmas dúvidas... Mas eu não sou o Guilherme; não fui feito para ser gentil.

— Talvez você não seja gay. Pare de dizer essa palavra como se ela fosse um tabu, não adianta. — ele disse, pensativo. — Talvez esteja passando por uma fase, tive colegas que passaram por isso. — a maioria, eu incluso, descobriu que era bissexual depois. Mas ele nunca falaria isso. — Contudo, você não pode ignorar a hipótese contrária: e se você for?

Matheus respirou fundo, os olhos frios de repente.

— Eu prefiro morrer.

Davi não disse nada; conseguia notar a angústia do garoto chegando a um ponto limite e percebeu que era melhor parar de pressioná-lo, pelo menos no momento. Sentindo-se inesperadamente corajoso, o terceiranista sentou-se ao lado de Matheus na cama, analisando suas feições inchadas com um sentimento próximo de simpatia.

— Por que morrer? — perguntou, sem perceber a gentileza que estava aplicando à própria voz. — Você não tem planos? Não tem sua vida todinha pronta? Isso não te define... É só uma parte de quem você é. — outra frase do Guilherme. Daqui a pouco, vou estar jogando RPG virtual e usando camisetas escrotas também. — E você não pode deixar de ser quem é.

Matheus lançou-lhe um sorriso de soslaio, embora os ombros, antes tensos, indicassem que ele estava aliviado de certa forma.

— Nossa, Sócrates. Mais filósofo que você, só meu cachorro que morreu quando eu tinha doze anos.

— Era um cachorro inteligente. — Davi piscou com presunção. — É difícil ser mais filósofo que eu.

— Você é impossível. — e sorriu.

Davi arregalou os olhos. Já tinha visto Matheus dar um monte de sorrisos antes; sorrisos irônicos, sorrisos mordazes, sorrisos maldosos... Mas aquele era do tipo aberto e sincero; fazia suas feições parecerem ingênuas e, de certa forma, cálidas.

Todo o seu rosto muda quando ele ri. Assim, ele fica quase... Acessível.

— Impossível é o que eu acabei de ver.

— E o que você acabou de ver?

— Você rindo. Você é meio “gênio do mal” na maior parte do tempo.

Matheus sorriu novamente.

— Tenho meus motivos e agora você sabe quais são. Vamos dizer que estamos, os dois, ao contrário hoje: você acordou gente boa e eu acordei com ressaca demais para ligar. — Matheus se ajeitou na cama, fechando os olhos. — Agora, se não se importa, eu vou dormir. Você me estressou e eu preciso me recuperar.

— Ai, duas facadas de uma vez só. Além de chato, eu sou um pentelho. É isso?

— Isso mesmo. Cala a boca, Davi.

Ninguém disse mais nada. Davi ficou ali, sentado e calado, os pensamentos voando, enquanto Matheus relaxava e aos poucos começava a ressonar. Mesmo com a face inchada, as transformações que o sono do garoto causava em sua expressão eram visíveis: a frieza que normalmente caracterizava suas feições deu lugar a algo diferente, quase inofensivo. A franja, uma meia dúzia de fios de cabelo negros como piche, estava caída sobre seus olhos e, sem perceber, Davi os escovou para fora com dedos muito suaves.

O que exatamente eu estou fazendo? Ele recolheu a mão, como se tivesse levado um choque. Hora de ir. Meu trabalho já está feito aqui. A Irene vai perguntar alguma coisa... Bem, sempre posso falar que o deixei com sono de tanto falar. Não deixa de ser verdade.

Davi se levantou com cuidado, não querendo fazer nenhum barulho, olhou para Matheus uma última vez e foi embora.

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Segunda-feira, 04 de agosto de 2014, 06h25min, Vespasiano

O Vespasiano, mesmo sendo o pior tipo de prisão disfarçada que Davi já conhecera, tinha a seu favor uma coisa interessante: não importava quanto tempo você passasse longe dele, o colégio era sempre o mesmo. Continuava tendo cheiro de mato e sendo alguns graus mais frio que a cidade. Continuava a parecer estranhamente cinzento e continuava a assemelhar-se à única casa que o garoto de fato aceitava e reconhecia como sua. Voltar para lá era como reencontrar um velho amigo depois de muitos anos: familiar e estranho ao mesmo tempo.

Davi caminhou pelos corredores do prédio de dormitórios sem pressa, arrastando uma pequena mala consigo, até chegar ao próprio quarto. Após constatar, sem nenhuma surpresa, que Tiago não estava lá, o garoto preocupou-se em se estabelecer novamente, dobrando cuidadosamente suas roupas antes colocá-las no guarda-roupa, organizando seus poucos e adorados livros no pequeno criado-mudo e se deitando na cama, apenas para sentir o cheiro enjoativo do sabão em pó usado pela lavanderia da escola.

— Estou em casa. — disse para ninguém em particular. Ainda era muito cedo para fazer qualquer coisa, então ele se ajeitou na cama, pretendendo dar um cochilo até a hora do café. — Estou em casa com esse maravilhoso cheiro de lavanda e vou dormir. Só ficaria melhor se não houvesse aulas hoje.

O cochilo foi tranquilo e durou até o momento em que o despertador tocou, faltando quinze minutos para a hora do café, tornando oficial o início do segundo semestre letivo no Vespasiano. As atividades do clube de xadrez só começavam no dia seguinte, mas Davi havia deixado trabalhos pendentes antes de sair de férias e pretendia terminá-los naquela manhã, o que significava ficar horas e horas trancado na biblioteca fazendo pesquisa.

Um programa muito divertido para um início de semestre divertido. Davi pensou enquanto se levantava da cama em passos de lesma e vestia o blazer azul-marinho, fazendo o nó da gravata de qualquer jeito. Tem dias que eu nem acredito que já estou no terceiro ano.

Ele se encarou no espelho: uma aparência horrível para um dia terrível. Sentindo-se malevolamente satisfeito com o próprio reflexo, o garoto caminhou lentamente até o refeitório, sentindo-se ao mesmo tempo nostálgico e feliz: só faltavam cinco meses para ele estar completamente livre do Vespasiano e ele não podia dizer que hesitaria no momento de ir embora. Quando começara o ensino médio, Davi chegou a acreditar que aqueles seriam três anos divertidos, mas a realidade se diferiu o suficiente do que ele estava esperando para fazê-lo acordar; aquela era a vida, e ele mal podia esperar para ser livre.

Assim que ele entrou no refeitório, a primeira coisa que Davi registrou foi a característica falação, o ruído familiar de várias conversas ocorrendo ao mesmo tempo; a segunda era que estava com uma fome inacreditável. Sentindo-se mais guloso que o normal, o garoto encheu a bandeja com todos os alimentos que lhe pareceram agradáveis, equilibrando-os com dificuldade enquanto caminhava até a mesa onde Guilherme estava sentado.

Ao vê-lo se aproximar, o amigo arregalou os olhos para ele.

— Davi do céu... — Guilherme engasgou, olhando assustado para a pilha de comida que Davi tinha em mãos. — Quando foi a última vez que você comeu?

— Ontem à noite.

— Parece que tem dois anos que você não come!

— Dois anos, doze horas, qual a diferença? A fome é a mesma. — Davi ofereceu um pãozinho para o amigo, dando de ombros quando ele recusou. — Ei, você terminou o trabalho do Juliano sobre bases nitrogenadas? É para entregar semana que vem e eu me esqueci completamente dele nas férias.

Se o Guilherme tivesse terminado o trabalho, ele não precisaria passar a manhã na biblioteca; era só fazer uma versão deliberadamente baseada na pesquisa do amigo.

— Eu terminei o trabalho, cara, mas... — Guilherme deu uma olhadela nervosa para o celular. — Meu trabalho não foi sobre bases nitrogenadas. Acho que o Juliano finalmente percebeu que todo mundo cola e deu trabalhos diferentes... O tema do meu foi sobre mitose e meiose. — outra olhadela. — Lamento.

Bem... Biblioteca, aí vamos nós.

— Maldito Juliano — Davi resmungou, mordendo uma broa. — E maldito eu, também. Fiquei em casa um mês e não fiz essa droga, agora vou ter que pesquisar na biblioteca. Detesto fazer pesquisas lá.

Guilherme riu.

— Ninguém mandou lerdar. Eu fiz o meu na primeira semana em casa, obrigado. — mais uma olhadela furtiva para o celular e, dessa vez, Davi notou, franzindo as sobrancelhas ao fazê-lo. — Em compensação, deixei meu trabalho de literatura para última hora porque você sabe que eu detesto ler. Sei que ele sempre dá livros diferentes, mas não custa perguntar: o Hugo mandou você ler Memórias de Um Sargento de Milícias?

Davi passou geleia em uma torrada de maneira preguiçosa.

— Não, meu trabalho foi sobre Uma Aprendizagem Ou O Livro dos Prazeres... Dei sorte de novo, mané. — Os trabalhos de literatura eram parte do currículo escolar, mas a maioria dos alunos, com exceção de Davi, os odiavam. Ironicamente, era sempre ele quem pegava os melhores livros para dissertar sobre. — Agora, esquece os trabalhos. O que está acontecendo, Guilherme? Você está encarando seu celular como se ele fosse explodir a qualquer momento. Algum problema?

— Sou tão transparente assim?

— Depois de onze anos de amizade com alguém, você fica obrigado a adquirir alguns super-poderes. Vai me contar ou não? Se não quiser contar, eu agradeço. Tenho que ir lá pesquisar sobre bases nitrogenadas e eu não sei nada sobre isso. Matéria mais chata, meu Deus...

— Não! — Guilherme deu um tapa na mesa, fazendo-a tremer, e começou a falar muito depressa. — Estou preocupado com a Tábata. Quer dizer, ela teve uma crise de enjoo ontem e quando eu liguei pra ela para perguntar o que estava acontecendo, ela me disse que ia desligar porque estava com enxaqueca. Eu não sei o que é enxaqueca, mas... Davi... — ele encarou o amigo com olhos angustiados. — Enxaqueca é sintoma de gravidez? Eu não quero ser pai! O pai da Tábata vai me matar se descobrir que ela está grávida! Eu não posso sustentar uma família!

Davi olhou para o amigo com estranheza, como quem diz: é sério? E ao ver que a dúvida era séria, começou a rir; primeiramente, um riso normal, depois, uma gargalhada histérica, que ecoou pelo refeitório calando todas as conversas. Um silêncio estranho se estabeleceu em volta da mesa onde estava sentado e Davi tinha plena consciência de que algumas dezenas de olhos o observavam, mas não conseguia parar; aquela era a coisa mais engraçada que tinha escutado há tempos.

— Guilherme... Eu... — ele ofegou alguns minutos depois, a risada começando a morrer. — Eu... Não acredito que você disse isso! Meu filho... Era você quem me passava as colas no sétimo ano... Você deve se lembrar das aulas de reprodução.

— Eu copiava as colas do livro! — Guilherme parecia sinceramente irritado pela risada do amigo e olhou de forma glacial para a plateia que os observava, suspirando satisfeito quando todos voltaram às suas próprias conversas. — Não me lembro de nada daquilo e eu te fiz uma pergunta séria!

— Uma pergunta seriamente tosca, seu imbecil! Mas é claro que não, enxaqueca é uma doença! Ainda estou tentando acreditar que pegava colas de você, estrupício.

— Isso ofende, sabia? — ele tentou forçar um tom de voz ressentido, mas sua expressão deixava claro que estava bastante aliviado. — Ainda não sei como nós dois passamos de ano. Eu não fazia a menor ideia do que estava colocando naquelas colas.

— É. Agora eu sei. — Davi respirou fundo, totalmente recuperado da crise de riso. Só sobrara um copo de leite em sua bandeja e ele o bebeu de um gole só, limpando a boca com as costas da mão e se levantando preguiçosamente da cadeira. — Ainda bem que eu tenho o Marcelo para me passar colas agora. Ele é inteligente para caramba, aquele moleque... Eu tenho certeza que ele não se dá motivos para se preocupar com uma gravidez da namorada. —ele observou com satisfação o rosto do amigo corar em um pálido tom de rosa. — Tome cuidado, Guilherme... A Tábata é poderosa, ela mata você. E eu não vou te ajudar, porque vou estar na biblioteca fazendo minha pesquisa sobre bases nitrogenadas. Até a hora do almoço.

Guilherme resmungou uma resposta mal criada, mas Davi não a escutou; já tinha feito seus passos para fora do refeitório, calmamente caminhando pelas mesas e pensando que não havia modo melhor de começar o ano do que trancar-se na biblioteca para fazer um trabalho chato sobre uma matéria mais chata aindade química.

Fazer o quê... Pelo menos, só faltam cinco meses. Ele recitou o pensamento como uma oração. Apenas cinco meses.

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A biblioteca tinha um cheiro inalterável de mofo; o bolor se acumulava nos espaços entre os livros, as enormes estantes cobertas por uma permanente camada de poeira. Apesar de ser alérgico e sempre ficar com o nariz coçando quando se sentava lá, Davi gostava dali, de se sentar entre as centenas de livros e pegar um ou outro que mais lhe interessasse para lê-lo pelo tempo que tivesse vontade. Ele havia sido um dos poucos alunos que ficara feliz com a abertura da sessão três da biblioteca e já fora ali várias vezes para pegar os livros de “literatura adulta” disponíveis, mas não adiantava: quando se tratava de fazer pesquisas, a biblioteca parecia o lugar mais desagradável do mundo.

Ele chegou ao grande prédio com o ânimo equivalente ao de um cadáver, os pés se arrastando no chão e os olhos caídos. O bibliotecário, um cara antipático de sessenta anos que parecia um pergaminho velho, observou-o rigorosamente enquanto Davi explicava os livros dos quais precisava e deu as coordenadas com a voz apática, dispensando-o com um aceno de mão distraído logo depois. Em seu desânimo, Davi quase agradeceu de forma petulante pela “simpatia”, mas decidiu no último segundo que não valia a pena e caminhou de forma abatida para as estantes que o funcionário lhe indicara.

Os livros dos quais precisava aparentavam não ter sido abertos havia décadas; no momento em que Davi os abriu, uma nuvem de ácaros bateu em seu rosto, fazendo-o espirrar nervosamente por vários minutos antes de se sentar e começar o trabalho. A pesquisa era chata; trinta perguntas cujas respostas estavam espalhadas por diferentes pontos das enciclopédias que pegara, e durante as horas seguintes, ele não fez nada senão ler e escrever, absorto na matéria. Era algo chato e trabalhoso, mas quando Davi finalmente endireitou a postura, espreguiçando-se, sentiu-se satisfeito. E também surpreso: Matheus estava em pé à sua frente, encarando-o com olhos curiosos, segurando um livro tão velho que a capa estava quase se desmanchando.

— Está fazendo o que aqui, Davi?

— Pesquisa de química. Bases nitrogenadas. Torça para quando o Juliano te der esse trabalho, você pegar mitose e meiose... A matéria é muito chata! — Davi apertou os olhos para o livro nas mãos do outro, mas não conseguiu ler o título e apontou para o objeto com dúvida. — Trabalho de literatura do Hugo?

— Ah... — Matheus olhou para o livro como se tivesse acabado de notar que ele estava ali. — Sim. O Guarani. Eu deveria ter feito o trabalho nas férias, eu sei, mas livros me dão alergia; eu os detesto! Vou ter que ler o livro às pressas para fazer a dissertação.

— O Guarani é um saco: qual é a graça de um livro que, além de não prestar para nada, ainda descreve o índio como se ele fosse um europeu? Você deu azar, colega. Tudo bem, poderia ser uma coletânea do Olavo Bilac, mas mesmo assim... — Davi sorriu. — Eu peguei Dom Casmurro para esse trabalho e adorei o livro, mas sempre dou sorte nos trabalhos de literatura.

Matheus puxou uma cadeira e se sentou, estendendo o livro para o terceiranista.

— O Hugo poderia ter dado um trabalho sobre a revistinha da Turma Da Mônica, eu acharia chato do mesmo jeito. Não gosto de ler, não adianta.

— Você, com essa carinha de nerd, não gosta de ler? — Davi sabia que tinha falado de maneira insolente, mas não conseguiu evitar. Com dedos distraídos, ele abriu o livro que Matheus lhe estendera, espirrando audivelmente ao fazê-lo. — Só falta você me dizer que é um bom esportista.

— Sou um ótimo esportista. — Matheus retrucou de maneira desafiadora. — Costumava ganhar todos os campeonatos que o meu antigo colégio fazia; sou goleiro de handebol, goleiro de futebol e me arrisco como levantador de vôlei também. E não é só porque eu uso óculos que eu preciso gostar de ler, seu nerd encubado.

— Eu não sou nerd; só tenho mania de organização e gosto de ler. Poderia ser pior, como o Guilherme, por exemplo, que joga RPG virtual e usa camisetas que dizem coisas escrotas como “o que não me mata aumenta meu HP” ou “keep calm e suba de nível’”.

Matheus riu baixo.

— E depois você olha torto para mim quando eu falo que ele não serve para a Tábata. Minha prima merece uma coisa melhor, sinceramente! — o rosto do garoto se iluminou, como se ele tivesse acabado de se lembrar de algo. — E falando no Guilherme: aconteceu alguma coisa com ele? Eu o cumprimentei quando cheguei ao refeitório hoje, mas ele parecia estar com dor de barriga, sei lá.

— Ah. O problema não era com ele, era com a sua prima. — Davi respondeu maldosamente. — Ele estava preocupado com ela... Estava pensando que ela poderia estar grávida.

O segundanista se levantou em um pulo, dando um soco na mesa.

— COMO É QUE É? AQUELE MALDITO...

— É brincadeira! É brincadeira, é brincadeira, ei, Matheus, volta aqui! — Davi lutou para controlar a ânsia de riso que surgia e fazer uma cara séria. Matheus o encarou com olhos afiados. — Senta aqui, é sério. Guilherme me perguntou se enxaqueca era um sintoma de gravidez.

Enxaqueca? Mas isso não é uma doença que causa dores de cabeça? A Tábata tem. — ele arregalou os olhos. — Ah... Entendi. E depois você faz cara feia quando eu digo que ele não serve para a minha prima! Ele é burro!

— E você está falando muito alto, mocinho! — o bibliotecário “simpático” o repreendeu da recepção, a voz severa. — Isso aqui é uma biblioteca! Fale baixo ou saia!

O segundanista fez cara feia para o homem, mas voltou silenciosamente para a mesa onde Davi estava, sentando-se novamente com uma expressão mal humorada.

— Ele não é burro. — Davi defendeu o amigo, a voz trêmula de riso. — Guilherme tem os melhores esquemas de cola que eu conheço. Sinto falta dele na sala, minhas notas eram muito melhores quando ele estava por perto.

— Você cola? Isso é errado!

— Mas é claro que eu colo. Eu inclusive pedi esse trabalho emprestado para Guilherme antes de vir aqui, para que eu pudesse copiá-lo... — ele apontou para o bloco de folhas em cima da mesa, completamente preenchidas pela sua típica caligrafia descuidada. — Mas o nosso professor deu temas diferentes para os turnos diferentes. Basicamente, o cara me traiu. Eu confiava nele!

Matheus gargalhou perante o tom dramático do colega, jogando a cabeça para trás no ato, e Davi o encarou com as sobrancelhas erguidas. É estranho vê-lo assim, pensou. Faz-me pensar que ele pode ser alguém legal se quiser, e que ele vinha se esforçando muito para ser desagradável... Não sei. Mas gosto disso.

— Ele não te traiu. — o segundanista disse, respirando fundo para se recuperar. — Você é que tinha expectativas muito altas. Mas veja pelo lado bom: você vai aprender sobre bases nitrogenadas! Assim como eu, que odeio e sou péssimo em dissertações, vou ter que escrever uma sobre esse livro maravilhoso... Que eu nem li. Será que eu consigo terminá-lo até o final de semana?

— Se você se esforçar, sim... Mas é mais provável que não. Se você não achasse colas tão erradas, eu prometeria te ajudar a trapacear, uma vez que já li o livro, mas você parece tão moralmente correto que eu nem vou falar nada...

— Mas é claro que eu aceito as colas!

— Dois segundos atrás elas te pareciam bem incorretas!

— Claro que elas são incorretas, mas se tratando de literatura... — Matheus ergueu as mãos para o alto. — Situações desesperadoras, medidas desesperadas!

Davi riu por um curto momento e não disse mais nada, observando Matheus folhear o livro com olhos desanimados. O rosto dele ainda estava bastante inchado, mas o garoto tinha conseguido disfarçar o hematoma de alguma maneira; maquiagem, talvez.

— Vejo que você conseguiu dar uma suavizada nisso... — o terceiranista apontou distraidamente para a metade inchada do rosto do colega. — Estão te fazendo muitas perguntas?

Matheus se retraiu quase no mesmo momento em que as palavras foram proferidas, a atitude subitamente defensiva.

— Se estão ou se não estão, não é da sua conta. Não seja intrometido, Davi.

— Se estão ou se não estão, é da minha conta sim, porque fui eu quem te fiz esse maldito hematoma, então eu tenho todo o direito de saber. E também... — ele ergueu o dedo de forma acusatória. — Eu não acredito que depois de tudo o que eu falei para você ontem, você vai continuar agindo desse jeito! Se tiver algum inimigo seu nessa sala, não é de mim que você está falando. Então pare de se comportar como um idiota, senão eu vou acabar tendo certeza de que você é um! Sinceramente... Parece que você acorda de manhã com a espingarda verbal pronta, isso é um saco.

Os dois se encararam desafiadoramente por um curto minuto, um silêncio tenso prevalecendo, até Matheus finalmente desviar os olhos com um suspiro de derrota, os ombros caindo.

— Me desculpe. — disse, soando realmente arrependido. — Não é mole; eu atiro antes de perceber. Estou muito acostumado a ser desse jeito para perceber quando parar... Mas para a sua pergunta: sim, fizeram um monte de perguntas. Vou inventar alguma coisa.

— Você sempre pode contar meias verdades: fale que eu te dei um soco... Mas minta sobre as circunstâncias.

— Não acho justo. Você me deu um soco para me impedir de fazer merda, te dedurar parece ingrato. Além do mais, meus colegas não sabem que eu e você temos qualquer tipo de relação, então falar que você me esmurrou, assim, do nada, só geraria mais perguntas. É melhor deixar que perguntem.

— E você finalmente admitiu para si mesmo que o estava fazendo era uma merda completa?

— Sim. Porém... — Matheus suspirou. — Eu sinto vontade de fazer novamente, toda vez que penso nisso. Sinto prazer em me imaginar acabando com aquele garoto, sabe? Como se isso fosse adiantar para resolver meu... Problema. Sei que estou errado, mas assim como da primeira vez, eu não consigo encarar isso direito.

Que primeira vez? Davi pensou, observando Matheus analiticamente e notando que, ao mesmo tempo em que o garoto parecia surpreendentemente vulnerável, também havia algo que ele não estava lhe contando. Mas essa não é a hora de insistir... Deixa isso para lá. Perguntarei em algum outro momento.

— Matheus...— Davi o chamou. Durante um curto momento, ele quis apertar a mão do outro, uma forma de reforçar as palavras que ia proferir, mas a vontade logo passou e o garoto encarou a própria mão com estranheza, como se ela não devesse estar ali. — Você sabe que pode confiar em mim, não sabe?

Anos pareceram se passar até que o segundanista finalmente o encarasse e respondesse.

— Claro que sei... Agora eu sei. E você pode saber... Eu pretendo me lembrar disso.


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Notas finais do capítulo

Quero agradecer à Moni por existir, por ser linda, por ser a melhor beta, por ser Moon, Stars, Criatividade e blábláblá. Amo essa minina, gent. s2
E também agradecer a vocês por estarem me acompanhando até aqui.
Até o próximo capítulo! o/