Lorena adormeceu rápido, mas mesmo de olhos fechados ainda tinha uma carinha angustiada. O que quer que se passasse em sua cabeça, eu não saberia, pois não tinha qualquer influência sobre os sonhos. Aquela que tinha, no entanto...

– Ela tem uma cabecinha fascinante, não acha? – Disse Mab, flutuando ao meu lado.

Mab era uma mulher alta e magra, com a pele da cor da noite e riscada por veios dourados, como eram os sonhos trilhando seu caminho pelo céu noturno. Sua cabeça era ovalada e sem pelos, seu queixo era fino, mas firme, e seu sorriso salientava suas maçãs.

– O quê faz aqui? – Perguntei.

– Você queria falar comigo, não queria? Você sabe como é nosso mundo... estamos por todos os lados, as notícias correm rápido, muito rápido.

– Você está certa, mas isso não importa. O que importa é...

– Aquele pesadelo não era meu, Byakko – Mab me interrompeu antes que eu tivesse a chance de perguntar.

– Tem certeza...?

Ela assentiu.

– Eu não sei o que ela viu, mas alguém queria muito que ela visse... O bastante pra arriscar mexer comigo. – Encarou-me severamente.

– Mas você sabe quem foi?

– Quem?

– É.

– Quem o quê?

– Mab! Quem mandou o pesadelo, é claro.

– Ah... Eu não sei, nem ligo.

Suspirei.

– Na verdade... – ela se virou pra mim e continuou. – Quero saber o que acontece agora...

Meu ventre tremeu como um copo d’água durante um terremoto.

– Ora, você não precisa rosnar pra mim. Apesar deste rostinho meigo, – Mab apertou minhas bochechas de criança –, eu sei bem como você é. Por baixo dessa... Máscara. Mas você não quer assustar a menina, não é? Você ainda está pensando sobre o que fazer...

Relaxei meus punhos cerrados, surpreso.

– Do quê está falando?

Ela ergueu uma sobrancelha fina.

– Ora, você também sentiu, Byakko. O quê fez com as memórias dela? Você as bloqueou ou as escondeu? Eu não sei o que fez, mas ela as quer de volta..., com todas as suas forças, e isso está desgastando seu feitiço. As memórias dela estão voltando e agora você precisa decidir se vai devolver à menina seu passado, ou se vai trancá-lo de novo e jogar a chave fora.

Através da janela, Mab pôs a mão acima da cabeça deitada de Lorena, como que tentando captar algo.

– Pode não ter sido um sonho, – ela continuou – mas uma lembrança. Como ela poderia distinguir? – Deixou a mão assim, estendida, e se voltou para mim. – O quê vai fazer com a menina, Byakko?

Lorena se virou na cama, abraçando ainda mais apertado seu gatinho de pelúcia. Damon se aninhou em volta da cabeça e do cabelo dela, me encarando. Debrucei-me sobre a janela, observando-a.

– Eu ainda não sei...

– Você já se perguntou por quê fez isso...? Anos atrás, quando apagou a memória dela... Sabe por quê fez isso.

Eu pensei no passado, em como tudo tinha começado... E sequer começara comigo, mas com meu irmão, e as coisas horríveis que ele fazia sem pensar. Pensei no compromisso que eu assumira, no papel de guardião que eu aceitara há séculos, depois de tantas vidas terem sido sacrificadas. Pensei na menina diante de mim, a única que restara de uma linhagem inteira que eu protegi. A única com quem ainda não tinha falhado...

– Eu estou tentando protegê-la... Tenho medo de que ela não seja forte o bastante. É melhor assim...

Mab recolheu seu braço, trazendo-o para perto do corpo, enquanto me encarava severamente. Depois, se abaixou e me segurou pelos ombros, olhando-me nos olhos.

– Você ainda não entende porque fez isso com ela... Mas vai precisar entender, pra fazer a coisa certa... Espero que ela te ensine. – Acenou a cabeça para Lorena. – Você fala de Yasuko, mas você também ainda não entende os humanos. Aproveite que um deles deixou alguém tão terrível quanto a Morte se aproximar, e aprenda. Você pode nunca mais ter essa chance.

Ela se levantou e pôs a mão sobre a testa da menina, dessa vez tocando sua pele.

– Entendo que queira o bem dela, então estou lhe dando um lindo sonho, como sei que queria me pedir. – Lorena instantaneamente sorriu, ainda dormindo, e relaxou. – Agora, está amanhecendo, e preciso ir... É sempre um prazer vê-lo.

– Obrigado, Mab... – Agradeci, na falta de coisa melhor a dizer.

– Como eu disse, quero saber o que acontece agora... – Sorriu.

E sumiu.