Desde o instante no qual deixei a sala de música, uso de todas as minhas forças para me impedir de voltar. É uma sensação inquietante, como se meus sentimentos por Poseidon fossem um antigo segredo, uma marca de nascença, um conhecimento guardado e adormecido em mim por muito tempo que resolvera voltar a vida para me atormentar. Logo no primeiro momento no qual me dei conta deles e resolvi parar de ignorar os sinais que já enxergava em mim, tem sido como um vulcão em erupção dentro do meu peito, toda hora ameaçando irromper, transbordar. Tal sensação de descontrole me soando estrangeira, logo eu, tão contida, programada, minuciosa...

Tê-lo perto de mim desta forma casual, nossas ideias em sintonia para organizar a festa como se a planejássemos juntos por séculos, me faz desejar continuar próxima dele mesmo quando tudo acabar. É aterrador me enxergar assim, tão entregue, mas a verdade é que estou farta da solidão e meu juramento já não passa de um conceito e uma barreira indistinta. Devaneio entre meus afazeres e já me imagino sua amiga, sua confidente, sua amante e tudo mais que sou capaz de fantasiar. Enterro o rosto nas mãos e me forço a retomar o controle, abandonando esse universo diferente onde a distância entre o mundo como eu idealizei e o mundo como ele realmente é se fizesse mínima.

Não preciso olhar no espelho para ter consciência de minha pele pálida, de minhas mãos mais hábeis a segurar uma lança do que um batom, do fato de que qualquer curva remotamente interessante de meu corpo está sempre escondida por tecidos claros. Como se isso tudo já não fosse garantia da minha invisibilidade perante seus olhos, minha memória está fresca e repleta de todas as respostas rudes, das provocações, dos olhares de reprovação e dos desentendimentos. Até acho possível que os opostos se atraiam, mas meu relacionamento com Poseidon vai além de uma lei do amor ou da física. Somos marcados demais pelos anos para que o orgulho ceda assim, simplesmente.

Não obstante, fico revivendo nossos momentos de implicância sutil, onde nossos olhares eram de troça, e não de ódio. Relembro a reunião com Afrodite e como tudo começou a ganhar forma de modo muito mais tranquilo do que eu sequer poderia imaginar, a visita às lojas de decoração, o restaurante ao pôr do sol, a forma com a qual ele me defendeu daqueles homens sem nem hesitar, sua postura ao lado de Apolo que parecia me perscrutar por um sinal, me implorando para ficar.  Oh, deuses, será que eu posso enlouquecer de tanto sonhar?

Tinha dado minha sanidade por vencida há algumas horas e decidi abafar meus pensamentos com um longo banho quente. Não que houvesse funcionado muito, mas mesmo que assim o fosse, foi só deixar o banheiro para deparar-me com um bilhete de caligrafia forte, repousando em cima de meu travesseiro, cuja mensagem dizia: “Será que aceitaria me acompanhar para jantar? – P”.

O mais engraçado de tudo é que minha mente passara o dia todo atormentada por possibilidades, preocupações, e agora, quando algo substancial tomava forma e eu teria ao menos uma desculpa para surtar, nada. As ideias finalmente calam-se e um sorriso pinta-se em meu rosto ao finalmente decidir viver. Sem planos, sem loucuras, sem regras auto impostas, só dois deuses que, antes antagonistas, talvez possam mudar a dinâmica de seus papéis. Afinal, quantas barreiras um simples jantar pode derrubar?