Selfless and Brave. escrita por comfortablynumb


Capítulo 5
I See Fire




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If this is to end in fire
Then we should all burn together
Watch the flames climb high into the night
Calling our father, oh, stand by and we will
Watch the flames burn over on
The mountain side

— Os testes terminaram. Lembrem-se de não revelarem o resultado a ninguém. Amanhã, nos encontraremos novamente no Eixo, onde acontecerá a Cerimônia de Escolha, à noite. — disse a mulher da Erudição. Joseph e Julia pareciam estar inertes, como se estivessem presos no teste. Mas eu realmente não me importei, pois eles já estavam se retirando da sala em direção à saída.

A Abnegação, como sempre, foi a última a sair. Quando eu era menor, não compreendia tão bem esse hábito, hoje, ignoro. Mesmo assim, sinto que não pertenço a esse lugar, e que esperar todas as pessoas saírem de um recinto não é um ato tão altruísta assim, porém, um ato gentil. Todos os adolescentes andavam organizadamente, e eu era a última pessoa da fileira. Por fim, olhei para trás, pela última vez.

Não voltei para casa de ônibus. A euforia e adrenalina preenchiam meu corpo e a sensação de voltar para casa fazia com que eu quisesse gritar. Mas em vez disso, reprimi o grito e corri. Corri como se tudo atrás de mim estivesse desmoronando e tudo que passara estivesse destruído. As mangas de minha camisa cinza subiam contra ao vento e o contato de minha pele contra o clima frio era confortante, porém minhas pernas fraquejavam e só então decidi parar. Fechei meus olhos e quando abri, percebi que estava no vilarejo dos sem-facção. Dei de ombros e continuei andando, com o coração desacelerando e a respiração mais forte. O lugar onde eu estava era tão monótono quanto os quarteirões da Abnegação: sem cor e silencioso. Caminhei e observei as casas abandonadas, o mau cheiro que rodeava a rua e um bando de sem-facção. Olhei de relance para a direção oposta e vi outro grupo de sem-facção. Nele, havia a mesma mulher que fitou-me quando estava indo. E havia uma espécie de fogueira ali, mas ela parecia inútil, já que eles não pareciam estar com frio. Olhei para o chão e continuei andando, até chegar em casa.

Fiquei em pé diante à porta por alguns minutos, pois assim conseguiria refletir no que iria dizer quando meu pai perguntasse como fui no teste. Não havia nada a ser omitido, de fato, porém ele sabia que aquele teste não significava nada: apenas fiz o que ele mandara, o teste mais abnegado possível. Minha identidade, mais uma vez, fora deturpada por ele.

Respirei fundo e entrei. A casa cheirava a perfume, o perfume que Marcus sempre usou. Retorço o nariz e finjo que não notara sua presença, mesmo sendo em vão, pois sua voz era áspera e ecoava o suficiente para que eu conseguisse ouvir a metros de distância. Era aquela voz que me perturbava em meus pesadelos, aquela voz, somente aquela, que conseguia facilmente quebrar-me por dentro. E eu o odiava por isso.

— Como se saiu no teste? — perguntou, friamente. Recusei-me a respondê-lo, mas realmente não importava, pois o resultado era óbvio, já que ele instruíra-me.

— Não sei se devo lhe dizer. Os testes são confidenciais.

Ele limpou a garganta e eu estremeci.

— Como foi o teste?

— Abnegação.

— Você está mentindo. Vou lhe dar a oportunidade de corrigir seu comentário, ou acrescentar algo a mais nele.

Franzi meu cenho. Eu não sabia do que ele estava falando e também não saberia o que responder. Então, do modo mais firme possível, respondi.

— Meus testes concluíram que eu sou abnegado. — ele parecia estar convencido, então ignorou.

— Tudo bem. — ele se aproximou de mim. Perto o suficiente para ouvir sua respiração. — Você já sabe o que fazer amanhã. Eu sei que sabe. — disse, quase sussurrando e depois, voltou para a cozinha. Subi as escadas e entrei em meu quarto.

Hoje, as coisas pareciam estar diferentes. Como se todos os detalhes de casa fossem importantes, como se esse fosse o último adeus. E talvez fosse. Reparei em meu quarto e percebi que, das raríssimas vezes que frequentara um quarto de outra pessoa da minha idade, eu era organizado. Todos os livros da escola numa prateleira polida e as roupas organizadamente penduradas. E o baú, logo abaixo de minha cama. Lembrei-me vagamente da figura de minha mãe, que pusera roupas de cama ali. Mas desde a última vez que a vi, ela não havia preenchido-o com cobertores ou afins. Na verdade, tudo que havia ali dentro era um vaso. Um vaso perfeitamente puro e limpo, como se estivesse acabado de ser confeccionado. Era a única lembrança que eu tinha de minha mãe.

Procurei a chave entre o livro de Matemática Avançada e História das Facções e o objeto dourado estava ali. Agachei-me, abri o baú e envolvi meus braços no vaso, relembrando-me de seu rosto praticamente igual ao meu e de sua aparência triste. Geralmente, as pessoas dizem que a forma mais óbvia de demonstrar sua fraqueza, é chorando. Mas eu estou cansado de ser forte o tempo todo. Deixo as lágrimas rolarem sobre meu rosto e reviro todas as coisas que estão no baú. Depois que ela se foi, meu pai não se preocupou em ver o que tinha ali. Mas não era nada tão significativo aos olhos de qualquer outra pessoa, de qualquer outra facção. Um pedaço quebrado de espelho, um desenho das facções e a lente de um óculos de um erudito, que em sua iniciação, deixou o objeto cair. Abnegadamente falando, isso é um ato egoísta.

Quando estava reorganizando as coisas e pondo-as de volta no baú, ouvi os passos de alguém e a única coisa que fiz fora guardar o vaso azul e meu pai abriu a porta. Ele suspirou, como se estivesse irritado.

— O que é isso?

— Nada demais, na verdade, são só trapos guardados. — menti e as palmas das minhas mãos começaram a suar. Não adiantava, ele sabia quando eu estava escondendo a verdade.

— Deixe-me ver, então. — ele se aproximou e pôs a mão em meu ombro, para que eu me afastasse. Eu continuei parado e lancei-lhe um olhar inexpressivo. Ele me empurrou para o guarda-roupas. Enquanto ele retirava tudo dali, fechei meus olhos — Você não deveria estar guardando isso. É egoísta! — bateu em meu peito, fazendo com que eu sentisse uma dor aguda e cerrasse meus punhos. Mas eu não iria bater nele. Marcus estava se preparando para desferir mais golpes em mim, até eu gritar. O grito que eu reprimi desde quando voltava da escola.

— A Cerimônia! A Cerimônia de Escolha! — balbuciei. — Você terá todo o tempo do mundo para fazer isso. Mas, por favor...

— Certo. — ele desviou o olhar e fechou a porta.

Naquele momento odiei-me. Odiei-me por ter me prostrado diante àquela aberração. Decidi guardar as coisas e deitei-me, agarrado ao objeto de minha mãe.

+++

O dia tinha se passado rapidamente. Meu pai, que desde ontem não trocara tantas palavras comigo, estava ajeitando-se em seu terno cinza e sua aparência era impecável. Ele era bonito, apesar das rugas e de ser ao mesmo tempo, horrível. Horrível por dentro, horrível por ter feito o que fizera comigo. Da janela de meu quarto, o crepúsculo era visível e peguei-me pensando em minha escolha. Abnegação, Amizade, Audácia, Erudição ou Franqueza? Eu realmente não sei.

Enquanto descia os degraus de minha casa, deslizei minha mão sob o corrimão, que estava, surpreendentemente, empoeirado. Senti uma pontada de tristeza, por saber que deixaria pra trás essa casa. Por mais que fossem poucos, tive bons momentos aqui.

Já no ônibus, pude observar os francos com seus cigarros, discutindo em voz alta. Os eruditos fitavam meu pai e não faziam questão de esconder isso. As pessoas da Amizade e da Audácia estavam rindo e dando de ombros. Eles pareciam estar cientes do que iriam fazer. De repente, vejo Julia e Joseph, isolados. Eles acenam para mim e meu rosto enrubesce. Decido lançar-lhes um olhar repreensivo e eles compreendem.

Chegando no Eixo, uma multidão de pessoas seguem no Elevador. De qualquer jeito, nós da Abnegação não iríamos usá-lo. Portanto, seguimos na escada. Vinte andares, mas nem um murmúrio sequer. Chegando, abriram as portas e eu automaticamente vi-me longe do Sr. Eaton. Nunca estive perto.

A sala era enorme. Os assentos, formados em círculos concêntricos, abrigavam uma diversidade de pessoas. No centro, os iniciandos. Juntei-me a ala dos abnegados iniciandos e preguei meu olhar no palco. O tempo passava rapidamente e quando todos já estavam organizados, a Cerimônia de Escolha se iniciou. O líder da Audácia, chamado Max, começara o discurso.

— Bem vindos à Cerimônia de Escolha. — sua voz ecoou em minha mente. Era forte e todas as palavras pareciam ser postas perfeitamente na frase. — Há um tempo, nossos ancestrais perceberam que cada um de nós era responsável pelos desastres que existem no mundo. Mas eles não coincidiram em qual, exatamente, era o male. Alguns culpavam a desonestidade, enquanto outros culpavam a ignorância, a agressividade, o egoísmo e por fim, a covardia...

Olhei para Marcus, que se sentara junto aos outros líderes da Abnegação. Ele parecia estar neutro. Numa contagem de cinco segundos, consegui ver-me nas cinco facções. O meu lugar não era na Abnegação. Max retomou a frase, após ouvir pequenos gritos da Audácia quando mencionaram-na no discurso.

— Fora assim que nos dividimos entre facções: Franqueza, Erudição, Amizade, Abnegação e Audácia. Nelas, encontramos administradores, professores, conselheiros, líderes e protetores. Sem mais delongas, vamos começar logo com isso. Quando eu chamar o seu nome, venha adiante, pegue sua faca e faça sua escolha. Julia Johnson.

Levo meu olhar para a garota alta, de olhos escuros e cabelos cacheados. Seus vestes eruditos a tornam mais velha, mas isso realmente não importa, pois a partir do momento em que ela fizer sua escolha, talvez eu nunca mais a veja com essas roupas. Talvez eu nunca mais a veja.

Ela já estava no centro do púlpito, quando pegou sua faca. Olhou atentamente todos os recipientes e seu rosto contorceu-se. Era clara a insegurança da garota, mas por fim, ela pingou seu sangue no recipiente que era repleto de chamas. Audaciosa.

— Isabelle Hayes. — uma garota da Amizade aparecera no meio de toda aquela multidão colorida. Diferentemente de Julia, ela parecia estar confiante em sua escolha. Seu rosto mantinha uma expressão neutra e o primeiro contato com Max não a intimidou. Ela apenas segurou a faca e deixou seu sangue no recipiente de vidro. Franca.

— Joseph Morgenstern. — o erudito tropeçava em seus próprios pés e eu conseguia ver o olhar preocupado de uma senhora que era muito parecida com ele. Lembrei-me de minha conversa na sala onde depois seríamos conduzidos aos testes e Joseph dizia que odiava a Erudição. Talvez Franqueza, pensei. Vi seu rosto ficar pálido enquanto tirava seu sangue e tudo que consegui ver depois, era uma expressão assustada. Ele escolhera a Audácia. Meus olhos seguiram seus passos.

— Clary Weverly. — pelos seus vestes e sua tatuagem na nuca da cabeça de um leão, percebi que era da Audácia. Ela era bonita e mantinha sua postura firme até o palco. Acenou para o líder de sua facção e pegou sua faca. Sem hesitar, fez um corte em sua mão e jogou o sangue vermelho-escuro no fogo. Ouviu-se um murmúrio de alívio, afinal era a primeira pessoa a ser chamada que não mudara sua opção.

— Tobias Eaton. — eu e meu pai nos entreolhamos, de longe. Ignorei-o e caminhei até Max, que estava me oferecendo a faca. Enquanto andava, passei por Tori, a moça que realizara meus testes de aptidão. "Você terá que conviver com sua escolha, ou então desistir, como os sem-facção."

Enquanto mantinha a faca em punho, senti-me forte. Como se ninguém pudesse me abater naquele momento, nem mesmo Marcus. E eu estava certo, aquela era minha única oportunidade de não curvar-me perante ao meu pior pesadelo e o momento que ninguém poderia me impedir. Olhei para todos os cinco recipientes, logo, descartando a possibilidade de continuar na Abnegação. Embora tentasse esconder, meu pai sabia que o meu local não era ali. Cravei a faca em minha mão e deixei que meu sangue queimasse nas chamas da Audácia. Sou mais que apenas um borrão cinza em Chicago. Sou corajoso.


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