Em Família escrita por Aline Herondale


Capítulo 24
Sangue Jovem


Notas iniciais do capítulo

Olá! Quero agradecer aos comentários do capítulo anterior e pela paciência de vocês.
Espero que gostem.



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O auditório estava cheio de famílias ansiosas para assistirem seus filhos e filhas apresentarem o que sabiam fazer de melhor, numa despedida muda da passagem da vida de estudante para o ingresso no mundo adulto.

Haveriam cantores, dançarinos, sonetos e muitos músicos naquela noite.

E uma, em especial, estava relativamente assustada.

Evie Biltmore contorcia a ponta dos seus dedos e andava de um lado para o outro, no camarim improvisado feito para atendê-la. Havia chegado à meia hora mas ainda sentia suas entranhas se contorcerem furiosamente e o gosto de bile na boca.

Seu nervosismo não era pela apresentação em si. Tinha total confiança nas suas habilidades no piano, mas não sabia se havia feito a escolha certa quanto a música. Quando estivesse tocando estaria se expondo mais do que se simplesmente tirasse a roupa em frente a todas aquelas famílias.

Escolhera aquela música pela saudade. Pelas lembranças que ela carregava. Seu pai a tocava inúmeras vezes, por ser sua preferida, e Evie sentia tanta emoção que chorava todas as vezes. E desde a morte de Bryan ela nunca mais ousara olhar para a partitura. Até agora.

– Você vai ficar bem. – Ela ouviu ao se virar.

Charlie estava parado na porta improvisada do camarim – que não havia porta, apenas o buraco onde deveria estar uma. Seus olhos estavam duros e frios, de um tom azul escuro num misto com seu cinza.

Evie sentiu um calafrio percorrer sua espinha e empinou o nariz, ajeitando a coluna.

Não disseram nada.

Ficaram apenas se encarando, cada um imerso nos seus pensamentos.

– Cinco minutos. – Um dos funcionários responsáveis pela organização do evento falou nas costas de Charlie, mal parando no lugar, e no mesmo segundo sumiu seguindo caminho.

E a respiração de Evie tornou a ficar descompassada e ela a torcer os dedos.

Ignorando a presença de Charlie, e a idéia de transmitir uma falsa segurança, ela tornou a caminhar de um lado para o outro, e a dedilhar num piano invisível. Ela parou em frente ao espelho e passou as mãos sobre o seu vestido intacto.

Foi quando ela sentiu aquela fragrância forte e característica inundar suas vias aéreas. Evie levantou o olhar e pelo reflexo do espelho enxergou seu tio Charlie parado perigosamente muito próximo das suas costas. E num momento de fraqueza ela se virou, ficando de frente para ele.

Aqueles olhos eram sua perdição. Como poderia alguém ter olhos como aquele? Qualquer ser humano instantaneamente poderia ser comparado à um inseto quando encontra uma lâmpada e vai se aproxima cada vez mais da luz brilhante mesmo sabendo que irá morrer, porque é exatamente assim que agem. Sem controle algum dos seus atos.

Mas Evie não esperava que Charlie fosse se mexer e quando ele levou o seu corpo para frente, aproximando seus rostos, Evie caiu em si e levou a cabeça para o lado ao contrário. Para longe.

Charlie riu.

Ele alcançou a presilha que queria pegar, depositada sobre a mesa atrás de sua sobrinha e retornou o corpo. Levou suas mãos até os cabelos negros de Evie e prendeu o beija-flor lilás na lateral da cabeça da menina.

– Boa apresentação. – Charlie desejou a quando se virou parou no lugar.

Fora do camarim mas no rumo do vão onde deveria estar uma porta, o tutor Waylon Holt estava parado e encarava-os com o cenho franzido. Seus olhos negros vagavam de Charlie para Evie e vice versa.

A menina prendeu a respiração ao enxergá-lo ao longe, sabendo que dali ele podia ver tudo que acontecia lá dentro.

Duraram apenas segundos mas a tensão era praticamente palpável entre os seus olhares, e só foi quebrado quando outro empregado do evento surgiu na porta chamando por Evie Biltmore que a tensão se dissipou.

Ela piscou algumas vezes, ainda assustada e nervosa, agora não somente mais pela apresentação, e abaixou a cabeça para sair acompanhada do funcionário.

E Waylon Holt aproveitou para sair de lá também, bufando de raiva.

– Parabéns esquisita. Pelo menos você é boa em alguma coisa. – Uma voz masculina conhecida surgiu no meio do breu. Não reconheci de imediato mas à medida que a pessoa ia se revelando meu ombros caíram. Eu estava cansada de Pette e de seus comentários medíocres.

Havia acabado de fazer uma bela apresentação, todos haviam gostado e eu só queria alguns minutos sozinha do lado de fora da escola. Talvez eu deveria ter escolhido um lugar melhor do que os fundos da escola, próximo à lixeiras. Se me recordo já havíamos nos encontrado naquele mesmo local, um tempinho atrás.

Rolei os olhos e lhe dei as costas, bebericando do meu suco que havia levado comigo.

– Não dê as costas para mim. – Pette falou entre dentes e me virou violentamente pelo ombro, fazendo minhas costas bater na parede e eu derramar parte do meu suco.

Protestei mas ele me ignorou.

– Eu sabia que você era estanha mas agora sei que é louca. Eu sei o que você faz. As pessoas podem não perceber mas eu sim.

Franzi o cenho. O que aquele louco estava dizendo?

– Eu sei que você deu para o professor Holt. E também pega seu tio, assim como sua mãe. Vocês são todas umas vadias! – Pette gritava, fazendo gestos com as mãos. Eu teria ficado menos impressionada se, o que ele dissesse tivesse menos verdades. – Você acha que eu não sei que aquele conversível azul Royal é para você? Eu já vi ele te seguindo! A primeira vez ele foi atrás do ônibus escolar porque você estava lá! E por várias outras vezes ele seguia na rua enquanto você andava na calçada. Eu não sou tão estúpido assim Evie!

E num momento em que Pette se aproximou mais um pouco de mim senti cheiro de nicotina e álcool.

Ótimo. Um bêbado estava brigando comigo.

Rolei os olhos e comecei a caminhar de volta para a porta que havia me levado para os fundos da escola. Eu não receberia sermão de alguém que, no dia seguinte, não se lembraria de como havia chegado em casa.

Mas de repente Pette me puxou pelos cabelos e eu levei minhas mãos até a cabeça. O suco do meu copo caiu sobre toda a sua camisa branca e eu enxerguei fúria nos seus olhos verdes.

Eu precisava correr. E tentei mas assim que minha mão encostou na maçaneta da porta Pette se jogou sobre mim e me esmagou contra o metal. Depois puxou meus cabelos e me jogou no chão imundo.

– Sua vadia! – Ele gritou e tentou puxar meus pés. Eu chutei seu saco e corri para as lixeiras enquanto escutava ele gemer de dor.

Eu não sabia bem o que fazer. Não havia outra saída e nenhum lugar para correr, exceto até a porta que Pette estava interceptando.

– Eu vou te matar! – Ele berrou e correu até mim.

Eu me esquivei e corri para o meio das lixeiras. Ele tentou me acompanhar mas seus passos estavam desordenados, por conta da bebida, e ele tropeçou e caiu. Vi uma oportunidade e tentei pular sobre ele, para chegar na porta mas Pette agarrou meus pés e quase me levou ao chão. Chutei seu rosto e recuei.

Quando ele ficou de pé limpou o canto da sua boca que tinha uma linha vermelha escorrendo do seu lábio superior. Ele me olhou com fúria e eu entendi que precisava escapar dele ou ele iria – mesmo – me matar.

Pette tentou me segurar algumas vezes e quando jogou seu corpo sobre mim, eu já estava encurralada contra a lixeira e só pude gritar e me encolher no chão.

Ele vai me espancar até morrer, pensei mas nada disso aconteceu. Na verdade não aconteceu nada. Tudo estava em silêncio.

Abri meus olhos meio trêmula e vi as pernas de Pette próximas ao meu rosto. Soltei um grito e tentei me afastar, o que não aconteceu porque não havia mais lugar para eu correr. E quando levantei meus olhos eu vi uma das cenas que nunca mais me esqueceria.

Pette olhava para mim, suas orbes verdes me encaravam de um ângulo estranho, mas seus olhos não estavam mais tomados por raiva ou fúria. Pareciam desfocados e assustados. E lentamente linhas e mais linhas rubras surgiram de trás da sua cabeça e começaram a desenhar seu rosto. Eu não entendi o que era aquilo e da onde estavam vindo. Pette estava muito quieto, como se tivesse se transformado numa estátua, com os braços moles caído ao lado do corpo e as pernas curvadas sem sustentação.

A primeira gota caiu na minha bochecha.

Franzi o cenho.

Levei minha mão até o rosto e uma tinta vermelha manchou todos os meus dedos. E quando a segunda gota caiu e os dedos da minha outra mão ficaram da mesma forma, eu entendi.

Pette sangrava.

Gritei e sai de baixo dele me arrastando pelo chão. E foi quando eu consegui visualizar: ele havia enfiado o crânio no enorme gancho da lixeira, usado pelos caminhões para elevá-las e retirar o lixo do seu interior.

Pette estava morto.

Eu havia matado Pette. Eu havia matado Pette.

Mãos firmes e delicadas surgiram agarrando meus braços, me levantando, e eu comecei a me debater antes mesmo de olhar para trás. E antes de soltar o grito que se formava no fundo da minha garganta meus olhos bicolores encontraram um mar tranqüilo e cinza, e eu relaxei.

Charlie esfregou meus braços suavemente e sorriu para mim.

Eu estava assustada demais para me lembrar que deveria ficar desconfortável com o mísero espaço que havia entre nós. Encolhi meus ombros e Charlie olhou para Pette.

– Ele mereceu. – Concluiu.


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Notas finais do capítulo

Mereço uma recomendação? Acho que sim em. Vai lá, não demora nadinha e não arranca pedaço. :)
XOXO



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