Canção de Engate escrita por André Tornado


Capítulo 1
Capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Esta one faz parte do projeto "Melody's Briefs", que misturou canções com os personagens de Dragon Ball.
Mais uma vez um muito obrigado à Dani que fez a capa.

Boa leitura!



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As mãos refugiavam-se dentro dos bolsos das calças, os dedos fechados e tensos, metidos num quase esconderijo. Precisava de ter as mãos dentro dos bolsos, resguardadas do mundo exterior, invejando-as porque ele preferia também estar refugiado num lugar qualquer e não ali, completamente desamparado e exposto. Caminhava devagar quando lhe apetecia fugir, sentia-se desconsolado, mais só do que o habitual. Tinha o peso da solidão sobre o pescoço que estava ligeiramente vergado, os olhos presos no caminho cinzento que percorria.

As ruas da cidade estavam frias e húmidas, mesmo assim havia animação naquele local habitualmente frequentado por noctívagos que desejavam divertir-se numa sexta à noite. As risadas que ouvia eram como ferroadas ténues na pele. Naquele dia estava especialmente sensível. Parou diante de um bar com um aspeto agradável, uma pequena casa que oferecia bebidas e música, num ambiente acolhedor e juvenil.

Podia ter sorte e encontrar alguém nessa noite, se ficasse fechado em casa decerto que não encontraria ninguém, dissera-lhe o velho mestre Mutenroshi. Oolong acenara com a cabeça enquanto bebia um sumo, olhos esbugalhados, concordando com as palavras do ancião, mas Kuririn não encontrava a necessária verdade nessas palavras, nem sentido ou motivação. Preferia ficar na Kame House, na minúscula ilha e curtir a sua vida solitária. Não precisava de encontrar alguém, já o tinha feito e ela povoava-lhe os sonhos sempre que fechava os olhos.

Nunca mais a vira desde que se tinham despedido no Palácio Celestial, no fim do Cell Games, depois de terem utilizado as bolas de dragão e invocado Shenron e pedido os seus desejos, após uma longa e demorada aventura em que a Terra estivera em perigo, juntamente com todo o Universo, tudo salvo graças ao seu grande amigo Son Goku e o filho deste, Son Gohan, apesar das perdas que entretanto aconteceram.

Ela fizera parte da aventura e também do perigo, elemento fundamental de todo o drama, mas ele apaixonara-se no primeiro momento em que escutara que um dos humanos artificiais assassinos do Dr. Gero era uma mulher. Caíra irremediavelmente de amores quando ela, vinda de uma chacina desenfreada, lhe deixara um beijo no rosto e ele ali, plantado no asfalto de uma estrada deserta completamente azoado. E desde esse dia fatídico que tinha o coração cheio de amor para lhe dar.

Apertou os dedos com mais força dentro dos bolsos.

Continuava a pensar nela. Yamcha tinha-lhe dado esperanças, ainda no Palácio Celestial. Dissera-lhe que se ela lhe tinha dito “até à vista” quando se despediram, depois de Shenron e dos desejos pedidos, e que significava que queria voltar a vê-lo. Num primeiro momento acreditara no amigo, à medida que os dias foram passando começou gradualmente a perder a fé.

Olhou para um casal de namorados que entrava no bar. Invejou-os. Ele iria entrar sozinho e sairia dali sozinho. Não estava ali para encontrar alguém, só para se enganar a si próprio e fingir que estava tudo bem. Porque ele só desejava vê-la, a mulher cibernética que nem tinha nome, apenas um número.

As suas pernas hesitaram. Cerrou os dentes e todo ele estremeceu. Não iria entrar. Deu meia volta, crispando fortemente as mãos dentro dos bolsos. Não iria fingir que estava em sintonia com todos aqueles que procuravam diversão naquela sexta à noite. Precisava dela e de mais ninguém.

Ao dar meia volta, teve uma visão.

Ou melhor, a visão veio até ele como uma explosão de energia.

Ela estava ali e ele engasgou-se.

A primeira coisa que fez foi retirar as mãos dos bolsos, distender os dedos uma vez libertados daquela prisão de pano. Lembrou-se que ele não desejava mais ninguém naquela noite ou nas noites seguintes, nos seus dias e em todas as suas horas. Ela estava próximo, mais ainda do que no Palácio Celestial, porque ali, naquela sexta-feira, não havia nenhum encerramento de uma aventura mortal, nem o término de um torneio em que se jogou a sobrevivência da galáxia.

Número 18 andava lentamente, distraída em pensamentos, no rosto afivelava-se uma tristeza suave, como um véu translúcido demasiado fino. Nos grandes olhos azuis não havia luz e fitavam qualquer coisa invisível, longínqua, inexistente.

Kuririn respirou fundo.

Tinha chegado o momento dele. Na realidade, acreditava que seria o momento deles. Estava farto de estar só, estava farto de sonhar com ela. Simplesmente estava farto de não conhecer o amor, de ser virgem nas lides da paixão.

Do bar veio uma canção e depois dos acordes iniciais, a letra dizia-lhe que aquela era a noite da sua vida e que deveria avançar sem medos.

Tu estás livre e eu estou livre

E há uma noite para passar.

Apesar de estar mais aterrorizado do que se estivesse a enfrentar o terrível Cell sem qualquer apoio.

Número 18 estava linda, mesmo com toda a melancolia a vesti-la de cima a baixo. O cabelo brilhava como ouro, uma madeixa presa atrás da orelha. Usava uma jaqueta vermelha curta que lhe delineava o busto com elegância, umas calças pretas justas sobre as longas pernas, umas botas de cano alto também pretas. Escondia as mãos alvas nos bolsos da jaqueta e devia estar tão tensa quanto ele, naquela noite em que as pessoas em redor se divertiam e ela, como ele, a irritar-se com tanta solidão.

Ele deu um passo na direção dela que já estava tão perto que se apercebeu da presença dele e parou, surpreendida com o encontro. A expressão mudou rapidamente de surpresa para sobranceria, mas ele, que ao vê-la transfigurar-se teve o coração apertado, resolveu que não iria desistir.

- Olá… – cumprimentou-a inseguro.

Ela não lhe devolveu o cumprimento. Coseu os lábios numa linha indignada. Os olhos fuzilaram-no com um gelo despropositado. Ele gaguejou, cada vez mais inseguro:

- Vens… encontrar-te com alguém?

- O que tens a ver com isso? – disse número 18 brusca.

A voz dela soou abençoada, mesmo que tivesse pronunciado as palavras naquele tom. Ela tinha falado com ele e Kuririn encheu o peito de ar, agarrando-se a esse pormenor ínfimo de que ela lhe tinha respondido. Sempre podia passar por ele, continuar o caminho, ignorá-lo, magoá-lo, mas escolhera responder, ficar, magoá-lo provavelmente ainda mais porque respondia e ficava.

- Eu… não estou com ninguém – arriscou Kuririn. – Se quiseres, podemos… ir beber qualquer coisa…

Porque não vamos unidos,

Porque não vamos ficar

Na aventura dos sentidos.

- Não sejas ridículo!

Ela voltou-lhe o rosto e ao fazer esse movimento bafejou-o com o perfume que usava. A boca de Kuririn secou, focou-se no aroma dela, nas promessas veladas que ela fazia com aquele odor.

- Estás à procura do teu irmão?

A pergunta fora inteiramente estúpida, mas saíra-lhe de repente. Número 18 rosnou-lhe.

- Porque é que queres saber?

Ele encolheu os ombros e saiu-lhe outra frase estúpida:

- Se quiseres, podia ajudar-te… a procurá-lo.

- Porque imaginas que eu não sei onde ele está?

- Se soubesses, estavas com ele e não andavas aqui sozinha.

- Estás demasiado atrevido.

A resposta saiu de forma mais suave. Kuririn corou com o olhar de número 18 cravado nele.

- E tu, o que fazes aqui sozinho?

- Eh…

Tu estás só e eu mais só estou

Que tu tens o meu olhar.

Teve vontade de se ajoelhar aos pés da humana artificial e de lhe confessar que procurava por ela para acabar com os seus sonhos que o estavam a enlouquecer, pois se nem treinar em condições já conseguia, nem dava a atenção devida ao mestre, nem aos amigos.

Mas respondeu isto:

- Vim beber qualquer coisa. Agora… já não vou beber sozinho.

E num gesto ainda mais estúpido do que tudo o que já tinha dito naquela sexta à noite, estendeu-lhe uma mão.

Tens a minha mão aberta

À espera de se fechar

Nessa tua mão deserta.

Número 18 olhou para a mão dele e soltou uma gargalhada. Mas Kuririn, destrambelhado, não retirou a mão, manteve-se firme, enfrentando todas as dúvidas, receios ou todas as alfinetadas que ela estava disposta a enviar-lhe. E ela, que sentiria quase o mesmo, ele arriscou pensar para se saber mais seguro da atuação que dispensava àquela que ele venerava imbecilmente, persistia em esconder as suas mãos nos bolsos da jaqueta, evitando a vulnerabilidade de as exibir.

E houve uma espécie de química entre eles, uma reação indetetável, que soprou a melancolia dela e a destapou, ficando ainda mais bela. O coração de Kuririn bateu alegre no peito.

Vem, que o amor não é o tempo

Nem é o tempo que o faz.

Vem, que o amor é o momento

Em que eu me dou, em que te dás.

- Continuas demasiado atrevido…

Entrou no bar e ele foi atrás dela. Sentaram-se e pediram duas cervejas. Ela recostou-se na cadeira, exibindo-se rebelde e linda. Kuririn uniu as mãos sobre o tampo e ficou a observá-la.

- Não penses que isto significa alguma coisa – alertou ela semicerrando os olhos.

- Só pensei que não querias beber sozinha.

- Nem tu querias fazê-lo.

- Não queria, é verdade.

Tu que buscas companhia

E eu que busco quem quiser

Ela mordeu o lábio inferior por um instante. Apartou o olhar azul-marinho dele, fingindo-se distrair com o movimento do pequeno bar.

- Viste-o?

Kuririn pigarreou.

- O teu irmão?... Não, nunca mais o vi. Ele anda por aí, não é?

- Provavelmente… Aquele dragão ressuscitou-o, com a magia das bolas brilhantes. Não foi?

Kuririn concordou acenando com a cabeça. Ela mirou-o de repente. O rosto dele incendiou-se, o sangue a ferver debaixo da pele, bombeado pelo coração que batia sem controlo. O empregado salvou o momento, deixando as duas cervejas sobre a mesa e um pequeno prato com amendoins salgados. Kuririn bebeu um gole, reparou que ela continuava com as mãos dentro dos bolsos da jaqueta.

Ser o fim desta energia

Ser um corpo de prazer,

Ser o fim de mais um dia.

Ele pousou o copo comprido, gelado, as pequenas gotículas provocadas pela condensação da água a cobrirem a superfície exterior. Os dedos dele escorregaram pelo vidro molhado, deixando um rasto, rasgando um caminho.

- Eu queria muito que nos voltássemos a encontrar, número 18.

- Esta noite ainda não terminou e já falas que queres voltar a ver-me?

Tu continuas à espera

Do melhor que já não vem.

Ele rebateu subitamente enérgico:

- Porque não? Achas que poderás não corresponder às minhas expetativas?

Ela franziu as sobrancelhas, irritada:

- Nani?! E tu, por acaso, julgas que eu poderei interessar-me por ti? És muito mais fraco que eu! Não aguentarias um combate contra mim.

- Sempre podemos experimentar!

- Baka! Queres morrer?

- Não te atreverias… Salvei-te a vida várias vezes, mesmo sendo mais fraco do que tu.

- Convencido! – ciciou ela.

E a esperança foi encontrada

Antes de ti, por alguém.

Ela estava contrariada, perigosamente inclinada para uma cena escandalosa, com destruição e ataques energéticos à mistura. Mas ele sabia, de algum modo tinha a certeza, que a tinha conquistado. No fim de contas, o primeiro beijo tinha sido dela.

- Podes responder só no fim da noite – disse-lhe soltando o copo gelado, demarcando a sua posição.

- E quem te disse que eu vou ficar até ao fim da noite contigo?

E eu sou melhor que nada.

Número 18 sorriu-lhe, Kuririn sorriu-lhe também.

Num gesto ousado debruçou-se sobre ela e beijou-lhe os lábios de raspão. Ela não o escorraçou ou insultou. Aceitou o beijo dele e deixou-se ficar, na sua cadeira, recostada, mãos nos bolsos da jaqueta.

E a música terminou.


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Notas finais do capítulo

Esta é uma ideia singela, muito minha, de como foi o primeiro encontro do Kuririn com a número 18.
A música escolhida para ilustrar esta one chama-se Canção de Engate e foi composta música e letra há muitos anos por um artista português chamado António Variações. Como ele nasceu a 3 de dezembro, mas talvez seja só coincidência, identifico-me muito com todas as canções que ele escreveu, parecendo por vezes que ele canta o que sinto. Morreu em 1984, teve uma carreira curta mas brilhante, foi sem dúvida um cometa inigualável que riscou o firmamento do panorama artístico português. Da canção escolhida já foram feitas várias versões, mas esta última interpretada pelo Tiago Bettencourt ficou particularmente bem conseguida. Confiram o vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=8daReuj4bU0
Obrigado por lerem e por comentarem!