Páginas Esquecidas escrita por Napalm


Capítulo 8
Desesperança




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Targo permitiu que passássemos a noite em sua casa. Estávamos num quarto mobiliado com duas camas. Jess dormia como um bebê na que eu estava sentada, enquanto Reeve e Fergo estavam acomodados na outra. Mantínhamos uma reunião noturna.

– O que acharam da proposta dele? – Reeve cochichou.

– Completamente absurda. – Eu disse. – Esse cara só pode ser um psicopata.

– Ele é. – Fergo afirmou.

Targo havia proposto que nos emprestaria uma de suas lanchas particulares caso participássemos de seu Coliseu num torneio de artes marciais e vencêssemos o mesmo.

– Muitas pessoas vem até mim, – O homenzinho explicara – não pensem que são só vocês. Muita gente me pede coisas. E muitas dessas pessoas estão mais necessitadas do que vocês. Pessoas que precisam de um lugar para viver. Pessoas que precisam de qualquer coisa para comer. E também outras pessoas, que possuem desejos mais audaciosos, como o de vocês. Como eu também preciso de ajuda, proponho que façamos uma troca. Vocês me ajudam no meu show e eu ajudo a vocês com o que precisam.

“O Coliseu é um lugar fino e reservado, somente pessoas seletas o conhecem. Lá os combatentes se enfrentam e o vencedor leva o prêmio. Não há um prêmio fixo. Eu sou como um gênio da lâmpada, vejam, vocês vencem o torneio e eu lhes forneço seu desejo realizado.”

Pedimos a ele um tempo para pensar e Targo nos ofereceu o quarto para passarmos a noite, contanto que pelo menos um de nós participasse do torneio do Coliseu.

– Tá bem. Vamos discutir sobre isso e amanhã te daremos a resposta.

– Sintam-se em casa! – Ele disse como um sorrisinho irritante.

Agora estávamos discutindo o assunto na escuridão. Cochichávamos para que Targo não nos ouvisse. Apesar dele estar em outro cômodo, as paredes daquele local pareciam ser tão traiçoeiras quanto o dono.

– Alguém vai ter que participar do torneio. – Reeve comentou.

– Sem chance. – Respondi. – Assim que amanhecer daremos o fora daqui.

– Vai desistir de ir para a Grande Cidade? – Fergo questionou.

Respirei fundo e me senti angustiada ao perceber que aquele era o fim da minha jornada.

– Sim.

Então me deitei ao lado de Jess. Os meninos também se acomodaram, deitando um para cada lado na cama e o silêncio noturno prevaleceu.

Na escuridão, fiquei absorta em meus pensamentos. Eu não teria chance de vencer um torneio de luta, isso era óbvio. E nunca que eu colocaria num jogo desses um dos meus amigos, tampouco aceitaria que um deles se oferecesse. Mas se eu esperasse até o amanhecer, eu acabaria por perder o controle e uma dessas coisas iria eventualmente acontecer.

Esperei aproximadamente duas horas se passar. Quando tive certeza de que todos estavam adormecidos, levantei-me sorrateiramente e fui até a sala. Acendi um dos abajures, peguei um pedaço de papel de uma agenda de Targo e uma caneta que encontrei numa das gavetas de uma cômoda que havia ali. Escrevi uma mensagem na folha e voltei para o quarto, colocando-a na mão aberta do adormecido Fergo.

Fergo, meu amigo inesperado.

Primeiramente, obrigada. Sem você certamente estaríamos mortos. Sei que não tenho mais direito de pedir nada de você, uma vez que já nos tenha ajudado tanto. Mas saiba que este será meu último pedido. Você é um cara esperto e saberá como sair dessa. Assim que ler essa carta, ajude Reeve e Jessica a saírem da cidade, sem terem que participar desse torneio louco. Diga-lhes e cofirme que ambos voltem para Cersa. É tudo que lhe peço.

Mais do que agradecida, Niele.

Assim que deixei o papel em sua mão e me virei para sair, alguém segurou meu pulso. Vacilei pelo susto e virei-me surpreendida. Era Fergo, que havia acordado, provavelmente com o toque do papel em sua pele. Ele olhou nos meus olhos e pareceu entender a situação. Soltando meu pulso, levou a mão ao bolso e a estendeu a mim. Peguei o que ele me oferecia: uma espécie de canivete. Então Fergo voltou a se relaxar na cama, virou-se para o lado e adormeceu.

Alcancei minha mochila e deixei o quarto. Segui até a porta de saída para o fundo do poço e tentei abri-la. Estava trancada e não havia sinal da chave em lugar algum.

É claro que Targo cuidou para que não fugíssemos de nossos acordos.

Abri então o canivete de Fergo. Havia tudo dentro do canivete, menos uma lâmina cortante. Era hora de descobrir a ladra em mim. Coloquei um daqueles aparatos dentro da fechadura e fui testando um a um até que ela cedeu.

Não foi tão difícil, pensei.

Difícil mesmo foi escalar o poço somente com aquela corda como instrumento de subida. Mas como já estava acostumada com escaladas, consegui realizar o feito, mesmo que tenha chegado ao topo ofegante.

Olhei ao redor. A Vila Tulipa estava vazia e somente era audível o som do vento rodopiando pelas ruas desertas. Era imprescindível que eu deixasse a vila antes de amanhecer. Andei cautelosa para fora do beco, sempre o mais próxima da parede possível. Ao chegar na parte aberta da vila, numa rua menos estreita por assim dizer, avistei alguns guardas da Grande Cidade do outro lado. Estavam andando em direção contrária a saída da cidade, aparentemente patrulhando pela vila. Ambos estavam com as armas em mãos.

Esses caras não dormem? Perguntei a mim mesma. Sem contar também pelo fato de estarem sempre armados e prontos para embate. Questionei se não eram robôs em vez de humanos.

Esgueirei-me pela rua em direção contrária aos guardas na ponta dos pés, tentando ser rápida e silenciosa. Se um deles olhasse para trás, eu estava perdida. Foi quando alguém me agarrou da escuridão pela cabeça e me puxou para dentro de um vão. Instintivamente tentei gritar, mas minha voz foi abafada habilmente pela mão do meu capturador.

– Acalme-se. – A voz familiar me disse, enquanto eu lutava a esmo para sair daquela chave de braço. – Niele, acalme-se.

A adrenalina em mim passou e então me acalmei, notando que um guarda surgira perto do local pra onde eu estava me movendo. Havia acabado de cruzar a rua. Se eu não tivesse sido trazida para aquele ponto cego onde fui retida, teria sido vista por ele. Notei algumas cicatrizes nos braços do meu capturador, como se tivessem lhe prensado contra barras em brasa.

– Você não pode agir com tanta insolência!

Livrei-me de seu embraço e virei para encará-lo. Seus cabelos eram tão escuros quanto o céu negro, assim como seus olhos, embora sua pele fosse branca como a parede a suas costas.

– Maldito! – Sussurrei, acertando-o com um soco no rosto. Emmet cambaleou para trás com o impacto e eu senti uma dor enorme na mão e a segurei com a outra tentando amenizá-la.

Ele se recompôs, segurando o queixo com a mão.

– Tá bem. Estamos quites agora? – Ele disse. Segurou-me pelo pulso e me puxou violentamente por uma rua estreita. Guiou-me para trás de uma das casas e então parou novamente e me encarou.

– Se você for vista, você já era, entendeu? – Ele impôs.

– Você… O que você tem a ver com isso? – Perguntei estressada. – Isso tudo é sua culpa!

– Preste atenção! – Ele me segurou pelos ombros. – Você está sendo perseguida pela corporação mais forte do planeta. Eventualmente eles iriam te encontrar. Desde que você existe neste mundo, Niele, você tem sido perseguida por eles.

– Do que você tá falando? – Eu o encarei. – Isso tudo começou somente depois que você apareceu!

– Escute, eu não estou contra você. Eu sei que é difícil de acreditar em certas coisas, mas é por isso que eu preciso te revelar o que está acontecendo aos poucos, para que você não enlouqueça ou faça alguma bobagem.

Olhei-o séria. Desvencilhei-me de sua mãos e cruzei os braços.

– Estou ouvindo. Diz logo o que você quer.

– Existe uma pessoa que pode consertar isso tudo. Mas essa pessoa precisa de nossa ajuda. E pra isso, você tem que ir para a Grande Cidade. Niele, você tem que ir.

– Era esse o plano desde o começo, não era? Levar-me pra lá. E pensar que eu agi de novo até agora exatamente do jeito que você queria…

Como pude ser tão burra?

– Sim, mas agora você está fazendo tudo errado. O que você está pensando?

– Estou fugindo. Salvando minha pele e de meus amigos.

– E vai fugir pra onde?

Por um instante fiquei sem palavras. Emmet acabara de derrubar o resto da barreira dentro de mim que me fazia negar que tudo estava perdido.

– Pra longe! – Respondi então. Algumas lágrimas começaram a brotar dos meus olhos, que limpei rapidamente.

– E vai fugir a vida inteira?

– Vou, droga! – Comecei a me sentir perder o equilíbrio. Recostei-me na parede próxima. Minha voz saía descompassada. – Você fala como se houvesse outra opção. Estou encurralada, você não vê? Eu preciso ir pra longe, longe de quem eu conheço. Se me pegarem, pelo menos quem eu prezo estará a salvo se eu estiver longe. Quem eu estava enganando quando decidi ir pra Grande Cidade? Estaria saindo do ninho de cobras e entrando numa jaula de tigres! O que eu conseguiria fazer? Eu não tenho forças nem mesmo pra um estúpido torneio de luta.

Sentia-me desamparada. Por tudo aquilo para fora não havia me feito bem algum. Sentia-me traída por mim mesma, perdida, desolada.

– Esqueça essas coisas. – Emmet disse, se aproximando. – Niele, você é uma garota esperta. Aprendeu com a vida a não ser impulsiva. É cautelosa e é inteligente. Podem ter dado pra você um jogo, mas isso não quer dizer que você tenha que seguir as regras.

– O quê? – Senti me boba. – Não entendo.

– Você está vendo tudo somente por uma única perspectiva. Você só precisa descobrir o que é mesmo necessário fazer pra conseguir o que você quer. Mesmo que seja de uma forma diferente das que estão lhe propondo. Você tem o que precisa, só que o vilão te tapa os olhos.

Então Emmet deu alguns passos para trás. Olhamo-nos um ao outro por algum tempo. Então ele disse suas palavras finais:

– Virtude e justiça é um preço cobrado por tiranos.

Então ele se esgueirou para a escuridão, fora de minha vista e deixou-me sozinha.

Deixei que meu corpo caísse e larguei-me sentada ali, olhando para o nada.

***

Quando Niele saiu, fiquei deitado durante algum tempo, refletindo sobre o que acontecera. Segurava o pedaço de papel em minhas mãos, imaginando o que seria o que ela havia escrito. Eu a conhecia bem, já sabia o que ela queria. Acreditei desde o início em sua determinação quando Niele propôs que eu a guiasse até a Grande Cidade. Ela estava decidida a consertar as coisas e nenhum de nós três duvidamos que ela seria capaz. Suspirei e sentei na cama. Alcancei meus óculos sobre a escrivaninha.

Levantei-me e segui até a sala, tomando cuidado para não acordar Reeve ou Jessica. Lá acendi o abajur e me puis a ler a carta que me fora deixada. Mas antes que eu pudesse ler a primeira palavra, o papel foi tomado de minha mãos.

Niele olhava para mim, com um sorriso caridoso em seu rosto. Pegou minha mão e colocou o canivete que eu havia lhe dado sobre minha palma.

– Venha, precisamos descansar. – Ela disse mansamente e em seguida se dirigiu ao quarto.

Fizemos um pouco de barulho ao entrarmos no dormitório e Jess acordou:

– Ni? – Disse sonolenta.

– Está tudo bem. – Niele a acolheu, abraçando-a e deitando junto a amiga. Logo estavam ambas adormecidas.

Sorri e me deitei também.


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Notas finais do capítulo

Obrigado todo mundo que está lendo. Obrigado, mesmo!



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