Pure Imagination escrita por Sweet Death, SaltedCaramel


Capítulo 20
My anaconda don't want none unless you've got nous and kindness, hun


Notas iniciais do capítulo

Hey!! Tudo bem com vocês??
Eu sei que estão ansiosos (ou não), então podem ler primeiro e pelo amor dos deuses novos e antigos leiam as notas finais! Por favor!
Boa leitura o/



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O menino gostaria de ter um sexto sentido. Mais: gostaria que seu amigo, com ótimo senso de direção, pudesse estar ao lado dele naquele momento.

O caminho bifurcava em duas trilhas um tanto suspeitas na floresta . A esquerda ficava grudada ao Rio Largo, a corrente forte havia levado parte da terra marginal e deixava muita lama perigosamente no terreno erosivo. A da direita era apenas um resquício de uma trilha. As árvores estavam próximas demais como se fossem uma única copa sombreando a terra verde, galhos, troncos mortos e plantas rasteiras cobriam a fina terra careca, ou o que restava dela. Passar por lá era pedir por se prender entre os galhos e se perder ainda mais no mato.

Mas talvez pior não pudesse ficar.

Automaticamente, seus dedos escorregaram para a cintura, mas não sentiu a confortável sensação de sua espada de aço dentro da bainha. Se não tivesse entrado em uma briga com guardas reais mais cedo, ainda a teria ao corpo junto a uma solução fácil. Porém só tinha um punhal velho e pequeno que mal sobrevivia em cortar carne humana, quem dirá troncos de árvores grossas.

E mais, havia perdido a armadura prateada que ele mesmo havia roubado de um corpo qualquer durante a Grande Batalha, dias atrás quando fugiu das mãos dos executores. A chuva corroeu o solo do improvisado acampamento e em ondas levou parte de seus equipamentos e um homem que nunca mais viu. Agora tinha apenas um pano de lã camponesa sobre o pano da camisa e a calça velha que antes era de seu irmão. Antes era. Achado não é roubado e era uma situação de emergência.

Hesitante, olhou para trás. Havia deixado seu amigo e escudeiro cuidando da fogueira. Seria perigoso à noite, mas de dia ainda não era tão arriscado usar da luz daquele jeito. E esse era o grande problema: o dia estava acabando. O Sol já pintava-se laranja as ondas do rio e fazia uma grande sombra entre as árvores do bosque. Qualquer um era capaz de compreender: noite vagando na floresta é morte certa.

E que escolha tinha? Morreriam de fome de um jeito ou outro. O estoque de cebolas e coelhos ficava escasso e os animais paravam de aparecer. Estava farto de ensopado todo santo dia. Nesses momentos se permitia agir como mimado, desde que o incentivasse a continuar. E não arriscariam comer qualquer planta que não conhecessem desde que aquele homem envenenou-se comendo cogumelos.

Não tinha mais tempo. Precisava encontrar a tão esperada vila o mais rápido possível. Além da fome, seu amigo preocupava muito com o machucado no braço. No começo, fora apenas um corte fundo e dolorido de uma espada real durante a fuga. Então começaram os gritos e dores terríveis que o acordavam de noite aos prantos. A ideia de perder o último e precioso companheiro o fazia terrivelmente infeliz. E raivoso. O corte aumentava e não sarava, a pele apodrecia, preta e molhada de pus. Suspeitava de gangrena. E sabia que vilas possuíam um mínimo de cuidado médico. Não seria nada feliz que ele perdesse o braço. Nada feliz para seus inimigos depois que se enraivecesse com a fúria de um príncipe.

“Sou do sangue real”, disse a si mesmo apertando a pequena lâmina no punho, “o reino me pertence. Os homens me pertencem. A floresta me pertence. Então os caminhos me pertencem e seguem minhas regras”.

Pensava que deveria seguir o rio, pois era o lugar propício para formação de vilas, mas tinha quase certeza de que os aldeões a quem havia perguntado milhas e milhas atrás lhe disseram direita e não esquerda.

A floresta piscou para ele. O sol passou entre as árvores em uma falha luminosa e como se acordasse para a vida ele decidiu seguir a direita de qualquer forma.

Iria andar, encontrar um caminho e voltar o mais rápido possível antes que entardecesse demais e a fogueira começasse a chamar atenção de qualquer ser vivo com o mínimo de visão. Tinha calor para cuidar e um amigo para proteger.

Com o punhal apertado no punho, pisou forte em direção ao caminho fechado para evitar que escorregasse na lama traiçoeira que estava coberta por folhas mortas. E cortou o primeiro galho para testar a lâmina. Ainda estava inteira...assim como a madeira.

Praguejou contra todos os deuses e humanos. Daria dez coelhos para ter de volta sua espada com a qual treinava desde criança. E se se provassem verdade os demônios, venderia sua alma a eles por uma cama novamente.

“Pelo menos não está quebrada. Mas só serve como ameaça”, desviou do tronco grande, agachando para conseguir entrar na mata. Expulsava menores galhos com uma das mãos e com a outra se agarrava aos troncos granulosos das árvores para poder passar pelos obstáculos sem escorregar na lama. E com o punhal e um pouco de carmim que tinha na bolsa, marcou cada uma delas com um risco vermelho.

Seu ombro ainda doía da última luta, mas podia mexê-lo ao menos e não corria risco de infecção. Era apenas uma dor muscular comum.

O sol estava no limite da linha quando ele calculou estar na metade da trilha. Conseguia sentir o vento frio entrar pela largura da calça que cobria suas finas canelas. As noites eram as piores, mas teria que andar mais um pouco antes de voltar porque não tinha mais que a luz da lua para iluminar o chão. E de jeito algum confiava na floresta para andar às escuras.

Esse tipo de confiança cega ele dispensava.

Quando marcou o que definiu como última árvore do dia, puxou fortemente o ar para respirar. E seus ouvidos mesmo exaustos captaram o som de um passo quebrando na terra. Apenas um. Esmagando o silêncio.

Como reflexo, virou a cabeça para ouvir melhor. A faca estava melhor ajustada ao seu punho, pronta para cortar qualquer pele que o ameaçasse. A esse ponto, era capaz de cortar sem remorso.

E a isso que dão o nome de desespero.

“Selvagens? Não. Ouvi apenas um passo e caçam em bando. Guardas? Também não? A não ser que seja apenas um sentinela. Um aldeão qualquer? Ameaça? Amigo?”. Assumiu a posição para acertar o que estivesse para surgir entre os galhos atrás de si. Estava ficando escuro, estava apressado, mas tentava manter a calma para poder respirar lentamente e poder atacar sem dó.

E quando expirou, o som que veio dentro da mata foi o de um...

–Allen!!!! Almoço!! Está dormindo??

As páginas caíram da minha mão para meu rosto. E lá ficaram as letras, me cegando.

–Já vou!!- tentei gritar.

Acordei de meu comum torpor de leitura me sentindo tonto ao olhar para o mundo. Meus olhos acostumados por quatro horas diretas com letras pequenas tiveram que encarar o maldito resto do planeta. Grande, espeçoso.

Cadê o punhal e os cavaleiros? O sangue real e os ogros da floresta?

Abaixei o volume de “Coroa de Sangue” na cama e olhei para o teto amarelo claro.

–Na melhor parte...-gemi contra o travesseiro.

Era difícil não ser parado na melhor parte, porque quando se tem um bom livro em mãos nunca se sai da melhor parte. Mana me mataria se soubesse que tinha ficado até às cinco da manhã devorando um novo livro quando tinha com toda convicção afirmado que dormiria cedo para descansar dos exames de ontem.

Ele não era um pai totalmente superprotetor, mas ficava preocupado muito facilmente comigo. Não que eu esteja reclamando disso, com certeza. Vamos ser sensatos e entender que entre nós alguém precisava ter algum tipo de preocupação. E não seria eu.

Respirei fundo para espantar a pontada na cabeça antes de pegar impulso para saltar da cama. Não deu muito certo com a fraqueza nos meus cotovelos, então voltei a cair na maciez do colchão e lá fiquei. Parado. Olhando para o nada com metade das pernas fora da cama e os braços ao lado do corpo. Fingindo que era apenas falta de capacidade e não uma preguiça esmagadora. Não pensei nada nem fiz nada por um longo tempo.

Foram alguns minutos até a porta do quarto se abrir devagar.

–Allen?-Mana colocou a cabeça para dentro- está dormindo?

Sem me mexer, respondi:

–Não.

–O que está fazendo, então?

–Me levantando.

Ele entrou e fechou a porta.

–Não me parece que está-observou.

–Ok...eu estava TENTANDO levantar.

Mana sentou ao meu lado na cama. Sua mão veio parar na minha cabeça, com os dedos acariciando meus cabelos como uma massagem leve.

–Me parece que não foi uma boa tentativa, filho. Está se sentindo mal?

–Não...só...cansado.

–Dormiu tarde.

–Não.

–Eu vi as luzes acesas, Allen.

–Então sim.

Sua outra mão apertou meu nariz, fazendo-me encolher o corpo. Então se levantou com o estalar das coxas e alongou as costas.

–Vou trazer o almoço aqui para cima, então, já que meu filho não tem a habilidade de levantar.

–Obrigado, pai. Alguns nascem com talento, outros ganham habilidade. Eu irei ser esse. Eu prometo, pai. Trarei honra a essa família sendo o melhor levantador do mundo.

–Ótimo. Então seja agora e traga a mesinha, sim?-pediu, saindo do quarto.

Esparramei os braços na cama e fechei os olhos para aproveitar preciosos últimos minutos de descanso na cama. Não sentia a mínima fome a não ser a de histórias. Eu tinha deveres empilhados para fazer para a escola por ter faltado duas semanas seguidas (mas deixei para a última hora), três livros pendentes para ler e nenhuma fome sequer.

“Tenho que pegar a mesinha para apoiar na minha cama...”.

Apoiei-me pelos cotovelos, bocejando no meio do movimento. Encolhi os joelhos para empurrar-me na cama, espreguicei-me três vezes para ter certeza de que estava esticado o bastante e impeli meu corpo a levantar...falhando miseravelmente e me estatelando em cima do colchão novamente.

Não era uma posição desconfortável. Na verdade...

–Ah...talvez outra hora...-falei contra o travesseiro, afundando o rosto no macio e lá ficando.

–X-X-

O relógio acima da porta da enfermaria batia quase meio dia.

Foram longos minutos tentando lembrar como um golem funcionava. Estava desesperado, de dedos nervosos e dores corporais. Quer dizer, não há botões, nem alavancas e muito menos um manual detalhado de instruções. Era eu, aquele negócio voador e a fé nos céus tentando descobrir como ligar para alguém usando uma bolota com asas.

Como é que Harry Potter fazia mesmo?

Eu disse a mim mesmo que só o usaria em emergência. Mas aquilo era uma emergência. Um código vermelho.

–Aah...Liga. LIGA- o golem se moveu, para minha completa satisfação em saber que eu não estava sem querer falando com um enfeite de mesa qualquer que por um acaso muito ruim se parecia com um golem de comunicação.

–Hã...pode ligar para...o Lavi? Lavi...alguma coisa? Como eu faço para ligar para alguém? Ah, foi?

Código vermelho.

–Alô? Lavi?-perguntei timidamente, me sentindo um grande idiota por ouvir minha voz naquela enfermaria vazia. Era como falar sozinho, mas ao invés disso falava com uma mosca gigante.

Allen?- eu até me aliviei em perceber que tinha realmente funcionado e não falava com as paredes– Uooh. Allen. O que foi?

–Será que…bem…-coloquei as mãos nas bochechas, esperando que com a temperatura delas meu rosto desavermelhasse- é que...

Código vermelho tomate. Vermelho morango maduro.

–...eu estou morrendo de fome...-gemi com o rosnar selvagem do meu estômago.

Deixei-me cair sobre a cama, tentando conter o leão que se revirava atrás de caça dentro do meu corpo. “Nunca pensei que sentiria fome na vida”, reclamei, “não é lá uma sensação muito boa de for pensar nisso...”. Não. Nem pensar. Eu não estava muito afim de deixar aquela criatura dos inferno dentro de mim, eu precisava comer alguma coisa. E precisava agora.

–Lavi...-continuei, como se minha vida estivesse por um fio (e quem sabe estivesse, afinal)-...será que você podia trazer algo para que eu possa comer? Tipo, o mais rápido possível?

É uma questão de vida ou morte.

Qualquer coisa?

Por que Lavi sempre parecia estar rindo? Não era exatamente irritante, mas exótico. Rir assim, sem querer. Na verdade não rir, mas parecer que está o tempo inteiro. Eu compreendo. Ele é uma pessoa que está sempre tentando ser feliz.

É. Felicidade deve ser algo bom de se praticar com o corpo.

Eu devia tentar mais ser feliz.

–Qualquer coisa...

Passo no Jeryy daqui a pouco. Fique tranquilo. De fome você não morre. Lavi está aqui para garantir isso.

–Não fale de si mesmo na terceira pessoa...- sussurrei contra o travesseiro. E no segundo seguinte o golem já estava desligado quando me virei. Se aquilo era o futuro agora ou apenas um presente conturbado cheio de criações que não havia visto nunca, eu não sabia. No mundo em que eu vivia, não se usava golens para pedir comida. Dava uma ligada para um disk comida chinesa e sua vida estava feita.

–Hm...será que aqui existe comida chinesa?-resmunguei, olhando de segundo em segundo para o relógio pendurado acima da porta e balancei a cabeça- Que lugar não tem comida chinesa?

Uma das coisas boas de se estar em um universo novo com um corpo aparentemente diferente era que eu podia experimentar tudo que eu nunca havia tido vontade ou capacidade de experimentar. Nos últimos dias, havia comido uma refeição típica de cada país por dia, falado mais de duas frases por diálogo e lido incontáveis histórias sem precisar dormir por enjoo. O ruim era, bem, sentir fome, me obrigar a falar com “estranhos” e ler até não poder mais com medo de sair da cama e quebrar mais um osso.

Estar em um mundo estranho era o mesmo que se obrigar a entrar em sensações estranhas. E eu nunca fui lá muito fã de experimentar, se quer saber. Era como me submeter a uma festa estranha, com gente de todo tipo, em um lugar desconhecido. Entrar lá de penetra, todos te recebem como se fosse já dali. Mas você sabe que não é e não encontra um lugar certo para ficar e não consegue estar à vontade em um ambiente em que nada tem relação com você...então fica mexendo no aparelho celular fingindo que tem realmente uma vida social e preocupada em algum lugar, ainda que na realidade esteja digitando frases nas anotações sem querer um sentido. E torcendo para algum incêndio acontecer em algum lugar para tirar você da situação constrangedora quando na verdade o ponto máximo que aconteceu foram casais dançando em comemoração enquanto você beliscava petiscos na mesa vazia e um homem quarentão escorregando no vestido da própria mulher derrubando uma mesa inteira e espirrando alguma bebida azul no meu rosto. E continuou-se a dança sem precisar da evacuação de emergência.

Foi uma festa de quinze anos bem generosa, se quer saber.

E assim eu perdi o meado do que estava tentando explicar...

Enfim, é impossível me tranquilizar ou me fazer estar em um lar se tudo que eu percebia era como era difícil dormir em uma cama fria quando a janela do quarto estava aberta, como é difícil olhar no rosto das pessoas por dias e dias consecutivos e como o relógio por mais que passasse não ia chegar a lugar algum.

Já sentiu ansiedade? Então não há explicações. Só uma caixa sem saída e sua insuportável claustrofobia. E nem sei mais se é a realidade simples e pura ou uma das minhas metáforas descaradas.

E tinha Kanda.

Ou melhor. Tinha o que tem de errado com ele.

Rolei na cama, sem querer incomodando o machucado cascudo no cotovelo. Os minutos passavam, mas não tão rapidamente quanto eu queria. Encolhi os joelhos até chegarem ao estômago, mas me fingir de cisto não ajudou em nada.

–Estar com fome é horrível...- reclamei, ao sentir algo borbulhar dentro de mim.

Cravei os dentes no lençol branco, considerando seriamente enfiar o tecido goela abaixo para ver se poderia ser digerido e absorvido pelo meu corpo e me livrar da impressão de que eu tinha um alien para libertar.

Estava debruçado na cama já pensando em matar a criatura assassina com sede de sangue na minha barriga quando alguém entrou no quarto da enfermaria. Aos chutes. E eu soube quem era sem olhar, o que com certeza não me impediu de me assustar e rolar rapidamente da cama até o chão.

Bati com força no piso frio da enfermaria.

Eu sabia que estava ridículo naquela situação, então depois de brigar com o lençol e com o ar eu parei de me mexer. Fiquei imóvel. Eu acharia hilário mais tarde, mas na hora fiquei apenas parado, de barriga para baixo, coberto de branco até a cabeça (como se eu já não fosse assim normalmente), braços e pernas colados e justos no corpo, esperando por algo que nem eu sabia o que era.

Kanda também não achou engraçado o bastante para parar de ser um babaca.

–Ei- na imensidão branca, eu ouvi sua glamourosa voz retumbar- levanta, moyashi.

E cutucou meu ombro com a ponta do pé. Como é gentil.

–Eu estou ferido-resmunguei, com lençol entrando na boca.

–Isso não te impediu de cair da cama, não vai te impedir de levantar essa bunda daí e voltar para lá. Agora.

–Minha bunda já está levantada, eu estou de barriga para baixo.

Eu senti medo mesmo não vendo seu olhar afiado. Eu percebi pelo silêncio aterrador que ele estava perdendo a paciência. Fio. Por. Fio. Ainda que ele fosse expert em perder a paciência com qualquer coisa que acontecesse, pelo menos ele não me surrava apenas por olhar no meu rosto.

Senti o peso empurrar meu traseiro para baixo. Resmunguei por ele estar empurrando-o com o pé. Eu tinha um curativo ali também, mas como se fala isso em voz alta?

–Não vai estar mais-rosnou, não se importando com o pobre albino remexendo-se pela própria vida debaixo de seu pé- se você não levantar daí em três segundos.

Enrolado como uma boa lagarta, eu não conseguia fazer muita coisa para me levantar. Mas quem disse que Kanda ligava para isso?

–Anda, levanta-de algum modo, conseguiu achar meu braço dentro do casulo para puxar- Se acha que tenho o dia inteiro para ficar te esmagando, vou jogar sua comida pela janela. E você vai junto.

Com a dor da pele machucada do braço sendo esticada, apoiei as pernas com dificuldade, quase patinando no ar enquanto Kanda tentava, não sei, arrancar meu pulso com a força de seus dedos no que era uma tentativa de “ajudar a me levantar”. Não me desenrolei do lençol, mas pelo menos permiti que minha cabeça ficasse a mostra para poder vê-lo e segurei o tecido na altura do pescoço.

Kanda não parecia feliz. Mas em que momento ele parecia?

–O que você quer?-eu perguntei, apenas por educação.

E a resposta que tive foi um olhar óbvio e muito mal educado.

–Você acha que eu estou segurando essa bandeja gigante sua só porque quero?-largou-a com todo o bom humor de mundo no cômodo ao lado e foi por isso que talvez tenha espirrado suco para tantos lados-tá aí. Coma, saco sem fundo.

–Obrigado-eu respondi, apenas por educação-adoro meio copo de bebida e carne amassada aos pisos a la carte.

–Se reclamar-rosnou, tomando sem permissão um lugar na cama da enfermaria- enfio tudo na sua garganta e vamos ver o que mais amassa aos pisos.

Sentei ao lado dele na cama e coloquei a bandeja em cima das coxas na esperança de servir sem uma mesa. Estava fria. Aposto que ele deve ter subido as escadas balançando aquilo de um lado para outro. Não havia nada naquilo que estivesse bonito como Jeryy sempre preparava, apenas uma massa de mistura estranha e...aquilo era suco de uva em um purê?

–Ah...que seja...- garfei naquilo e engoli com a pressa de uma vítima tentando saciar a fome de um leão. Não saberia se eu tinha um gosto estranho, se a fome era muita ou se era a verdade, mas com certeza não me pareceu de todo mau. Estava comprovado. Jeryy tem mãos de um deus no corpo de um humano. Uma humana, quero dizer, é transgênero.

Kanda apoiou o cotovelo nas pernas e a cabeça na mão. Ele sempre me observava como se eu estivesse fazendo alguma coisa de modo muito errado, por isso era difícil manter uma boa postura. Pior ainda quando se sabia o que ele estava pensando. Era inegável que ele tinha um grande problema.

E tecnicamente eu deveria saber disso. O outro problema era que eu não me lembrava de saber disso.

–Quer...perguntar alguma coisa?-desisti de suportar o silêncio cortante que seus olhos faziam. Joguei os talheres no prato ainda a ser terminado como sinal da desistência e esperei uma resposta sem a certeza de que ele daria a mínima para responder.

Ele simplesmente saiu de sua posição, apoiando as mãos no colchão velho e estendendo as costas. Deu de ombros.

Éramos pessoas muito comunicativas, como pode ver.

–Lavi te mandou me entregar o almoço?

–Ele pediu educadamente para que eu completasse sua última tarefa quando eu enfiei a mão no nariz dele e ele voou quatro andares abaixo.

Obrigado, Lavi. Você foi um amigo inútil até agora, mas com certeza um grande amigo. Sentiremos sua falta e sempre lembraremos de como você parecia um grande pervertido do tipo que não consegue mais que dois segundos de cena...e morre. Sem completar a função.

–Acho que eu devia...agradecê-lo também?-revirando o prato com o garfo, achei que tinha pegado comida demais.

–Faça o que você quiser. Eu cansei daquele cara.

Larguei o prato pela metade em cima da cama, já satisfeito. O sol do meio dia estava forte como sempre, brilhante como sempre e ainda assim conseguia me fazer sentir que eu era uma pessoa das mais estranhas. Eu nunca gostei do sol nem da luz nem do calor. Eu estava bem sem nada disso.

Eu havia deixado a janela entreaberta acima de mim. As noites, apesar da alta altitude, conseguiam me fazer suar debaixo do cobertor. Grudavam os fios no rosto, a camisa no peito e ardia nos machucados. Para não precisar ficar tirando e colocando na companhia da enfermeira (monstro) chefe as bandagens que rodeavam minha testa, eu ficava um bom tempo sentindo o vento da noite com a cabeça fora da janela. Era ruim pensar que estava a metros e metros, andares e andares do chão, mas talvez fosse exatamente por isso que eu olhava tanto para baixo. O céu acima da poluição era magnífico (quer dizer, havia REALMENTE estrelas no céu? Uau. Livros falam a verdade.) e o ar da floresta cheirava a mato e refrescância quando batia no meu rosto. Seria bom se fosse noite o tempo todo...

...quer dizer, nós todos morreríamos de frio uma hora e não teríamos forma de absorver vitamina D, nem as plantas e organismos fotossintetizantes conseguiriam realizar seu metabolismo e liberar oxigênio, o que nos faria entrar em um ar tóxico repleto de gás carbônico, provavelmente, e gastaríamos uma grande parte da renda em luz enquanto morreríamos de fome e daríamos espaço a assaltos no escuro...

...mas se não tivesse isso... seria muiti bom ter a noite o tempo inteiro.

–Você tem olheiras.

Fui tirado do pequeno devaneio para encontrar Kanda novamente. E, de repente, eu estava suportando um dia na enfermaria. Não uma noite. Um dia.

Será que ele não iria embora logo?

–Ora, ora, capitão óbvio-passei os dedos no escuro abaixo de meus olhos-minha pele é branca demais, qualquer coisa aparece nela. Vê? descobri um braço e mostrei-lhe de palma para cima- veias por todos os lados- suspirei- por isso que era difícil chegar em casa depois de um dia na escola e escapar do interrogatório paterno.

Ele ergueu uma sobrancelha em completa dúvida. Tomei o movimento como um pedido de explicação já que ele não me falaria o que significava de qualquer modo.

–Roxos-eu disse, mas ele ainda parecia confuso. Vi que teria que dizer tudo com todas as palavras e suspirei. Nunca que eu estaria afim de trazer aquilo à tona. Eu já morri, isso deveria significar uma superação, certo?

Certo?

–As pessoas batiam bastante em mim- amargurei meu tom de voz sem querer- na escola. Não akumas. Pessoas. Mas eu gostava de pensar que eram akumas. Quer dizer, agora eu não tenho certeza de que gostaria que elas fossem-ri apontando os machucados que ganhei na “luta”- imagina o estrago que seria...mas é a minha história de vida, Kanda. Eu não sou um escolhido ou um grande lutador. Eu só podia fugir e imaginar como é rebater. Meu grande mérito eu só consegui no dia em que morri. Eu falei tanto para eles que meu corpo entrou em colapso e...- balancei a cabeça- nem quando eu pensei em fazer algo eu consegui. Não é uma merda?

E se você acha que eu recebi uma grande resposta gentil e incentivadora que me mostrou o bom lado da vida e como é possível superar qualquer empecilho através da vontade e amizade...que história você acha que está lendo??

–Por que você está falando essas besteiras do nada?-ele tombou a cabeça, fuzilando-me com o olhar.

–Ah...-esqueci de com quem eu falava- por nada...por nada...- porque eu sou idiota, com certeza.

Era como uma terapia do tipo “Você precisa falar mais sobre si mesmo e não guardar tudo aí dentro”. E para quem mais eu poderia contar se não fosse quem sabia que eu era “isso” e não “aquilo”?

De repente, Kanda pareceu ter uma realização...ou uma grande dúvida de novo. Estava me irritando. Franziu ainda mais o centro da testa.

–Por que eles te batiam?

Dessa vez, o olhar óbvio foi de minha autoria. Além do fato de que era totalmente evidente o motivo, Kanda se demonstrava curioso de tempos em tempos para saber o que rolava no outro mundo e então EU não entendia.

–Por que você acha?-minha voz saiu mais indignada que eu queria, um tanto esganiçada para quem talvez devesse já ter passado pela puberdade- um albino doente com um braço esquisito que não consegue fazer amigos? Eu duvido que siga as regras da popularidade.

Eu levei dos segundos para me lembrar de que na Ordem Negra não havia exatamente regras da popularidade. Somos todos esquisitos. Ponto. Quer dizer, andamos por aí de uniforme negro com armas feitas de um material divino combatendo monstros. Se não somos retardados, definitivamente temos um quê de esquisitice.

Kanda pareceu se perder nesse conceito também. Para que regras se ele já era o senhor bonitão, afinal? Era um “oi” e um “morre” e aposto que ele ganhava seguidores de todos os tipos.

–Eles te batiam porque você ia morrer?

Mordi o lábio com força esquecendo do corte vermelho nele, querendo socar alguma coisa, mas sabendo que se socasse um travesseiro quem terminaria com o braço destruído seria eu mesmo. O nosso samurai x não é tão delicado com as palavras quanto deveria ser, não é?

–Ou era porque você é um fracote estranho?

Quanto tempo será que ainda falta para virar a noite? Tomara que pouco. Tomara que a enfermeira volte logo...

–É...os dois, eu acho-dei de ombros, perdendo as poucas forças que tinha para suportar. Esfreguei os olhos- olha, será que você pode levar essa bandeja até o Jeryy ou jogar no corpo do Lavi, não sei. Eu preciso dormir um pouco agora...se você não se importa.

Me preparei para deitar na cama, já ajeitando o lençol no meu corpo.

–Me importo, sim- ele respondeu. Praguejei em silêncio em um ângulo que ele não pudesse ver e me ajeitei sentado de novo com o humor do cão cerberus.

–O que foi agora?-perguntei, soando um pouco mais rude do que planejava e então acalmei a voz-desculpa, Kanda, mas eu realmente não estou afim de ficar parado ouvindo deboche sobre quem eu sou ou eu era. Já passei dessa fase. Se tem algo para perguntar, pergunte. E logo. Eu não creio que vou realmente me lembrar de qualquer coisa.

O japonês pareceu se esforçar para suportar o meu modo grosso de conversar. Mas o que eu posso fazer? Eu sou um menino totalmente feito de defeitos, solidão e sarcasmo. Se quer tentar conversar comigo, vai ter que suportar a minha língua bipolar.

Engoli em seco, realmente imaginando com que força ele iria me socar agora que eu quase cuspi no seu rosto com as palavras.

Ele simplesmente cruzou os braços e mesmo assim eu não consegui me acalmar.

–Você lembra de algo sobre mim?

Isso foi uma pergunta surpresa. Nada de “salvamos o mundo?”, “como termina a guerra?”, mas um “você se lembra de mim?”. Pelo menos tentar eu poderia. Escondi o rosto entre as mãos, forçando-me a responder aquela pergunta. Komui havia dito que forçar a mente talvez traga lembranças do que eu havia lido, mas era difícil. Eu passei noites em claro tentando buscar detalhes simples como de que cor era o cabelo do mestre de Austin, de que forma era o primeiro akuma a aparecer nos quadrinhos. Nada. Só uma dor de cabeça e mais olheiras.

O que eu lembrava aparecia naturalmente. E muitas vezes sem nexo.

Levantei a cabeça rapidamente, percebendo que estava suando no rosto.

–Não muita coisa que sirva agora, acho-respirei fundo. Lembrar era exaustivo-você é Yuu Kanda, exorcista da innocence mugen, paramentada, dezoito anos, japonês, gosta de sobá...olha, já dá para se inscrever em um site de relacionamento...

–Cala a boca.

–... eu pensava em você como um inimigo entre amigos na minha imaginação, para falar a verdade...continuando...primeira missão comigo, ou no caso Austin, em Martel. Não gosta de mim. Não lembraria o meu nome porque eu morreria logo. A primeira conversa comigo...quer dizer, Austin, foi quando veio me impedir de entrar na Ordem... não há tanta...co...isa-algo veio de súbito, desequilibrando-me em mentalidade e físico como se uma bala passasse pela minha cabeça e a abrisse-não. Está errado... não é exorcista...segundo? Segundo exorcista?...o que iss...você...você já chamou o meu nome verdadeiro...?

Ele franziu as sobrancelhas, com expectativa duvidosa.

–Não.

–Eu tenho a impressão que sim...por que eu tenho essa impressão?...-gemi, sentindo a pontada na cabeça. Tinha algo ali. Algo sobre Kanda. Algo que eu tinha lido. E tinha achado importante. Tinha achado bom.

E triste.

–...Alma?- saiu sem querer e bati na minha cabeça tentando lembrar a palavra que se seguia- Alma...alguma coisa? Alma. Alma. Alma. Alma Kasa. Alma Kama. Alma. Alma.

Escutei um ruído forte vindo do meu lado.

–Não fique repetindo o nome.

Desliguei-me do que pensava. Limpei o suor com o braço e me virei para ele, temendo o que quer que estivesse acontecendo ali. Ele estava em pé, enfurecido ao meu lado.

–Desculpa...eu não...-saiu quase que como um sussurro. Eu nunca o via daquele jeito-e-essa palavra faz sentido para você?

Os olhos deles eram fuzis, mas agora podiam se passar por tanques. Era óbvio que fazia sentido, mas se eu pensando naquelas palavras sentia uma vontade tremenda de chorar sem saber o que significa, para Kanda que tinha relação com elas devia estar terrível.

Ele passou as mãos pelo rosto, arrependido pelo que tinha tentado fazer.

–Então é verdade que sabe tudo...Tsc. Merda. Eu vou matar o Komui-rangeu os dentes.

No segundo seguinte, ele estava de novo sentado na cama. E foi como se nunca tivesse perguntado nada em relação a si.

Eu estava farto desses testes disfarçados. Para saber se sou real, se não sou, se falo a verdade, se sei de tudo sobre a vida de cada um (ei, não duvide de um fã!)... Eu os fazia comigo mesmo, o samurai x fazia perguntas extrapolantes e no fim nada mais que fatos desinteressantes apareciam, como quando vi um livro e subitamente tive um flash das tardes em que Austin e Lavi foram obrigados a limpar a biblioteca. Ou quando estava indo ao banheiro e tive um flash para saber que Reever usava cuecas com estampas heroicas.

Coisas muito úteis para a minha sobrevivência.

E quem mais parecia querer matar tudo e todos por eu existir e ter essa “habilidade” é (adivinha) o Kanda.

E falando em testes:

–Komui veio verificar o que tem de errado?-ele perguntou, claramente exausto da minha companhia pelo modo como esfregava o rosto com as mãos.

–Sim...

Ah, Kanda. Me fazendo lembrar.

Era só que é difícil lembrar disso. Que eu morri., quero dizer

O Supervisor havia me visitado dois dias antes, durante a troca de bandagens e lavagem dos machucados. Ele tinha aquele olhar penalizado no rosto e eu soube o que estava por vir quando ele pediu a saída da enfermeira para que pudesse usar seus instrumentos. Ele viu que eu olhava com atenção quando ele se equipou até mesmo com o estetoscópio e pareceu achar uma situação engraçada.

Engraçada.

–Um visual muito “Dr. Lee”, não?

E era realmente o que eu estava pensando. Só o que faltava para o visual completo era ..a minha vida anterior inteira de fundo.

Ele disse que seria rápido, temendo a própria enfermeira e suas agulhas perigosas. Então nem esperou um preparo mental por minha parte para que eu me acostumasse ao suspense de saber o que há nesse corpo que (acho que) me pertence.

Fechei os olhos com força. Do modo como você fecha em um filme assustador demais ou quando vai na montanha russa com medo de altura. Eu não estava pronto para aquilo e nunca mais estaria. Chega de exames, chega de tubos e estetoscópios. Por isso, não sei o que ele fez no meu corpo, mas enquanto recitava um mantra inventado em minha cabeça, aquilo acabou. Ele tirou a máquina robótica que scanneava meu corpo e o tubo que tirava sangue do meu braço.

E ele deu o sorriso.

E eu soube que ia morrer.

–Sim. É o motivo pelo qual eu tenho olheiras-sussurrei para Kanda.

Fui pego pela brisa que descia a montanha e entrava pela janela. O sol já estava inclinado no céu e eu chutava duas horas da tarde.

–Eu não entendo o que está acontecendo- olhei pela janela, na maior melancolia do dia-se eu estou mal...para que eu vim para esse mundo? Cadê o meu pai? O que os Noahs querem?

Fui contra a parede. Não porque eu queria, mas porque Kanda empurrou meu pescoço contra ela. Senti algo abrir atrás da minha cabeça, pressionada no muro, porém estava ocupado o bastante com tentar me livrar dos dedos que apertavam minha garganta. Não conseguia respirar direito e meus olhos lacrimejavam sob a fúria da expressão mortal dele. Eu não estava entendendo.

–O qu-

Eu senti o líquido sair pelas bandagens na nuca. Sangue.

– E ainda diz que está do nosso lado...Está omitindo fatos?- cuspiu as palavras em mim- está mentindo?? De que lado você é, moyashi do espaço?

–Do...qu...está...faland...?-engasguei as palavras no desespero. A pessoa que muda constantemente de humor entre nós dois não era eu? Por que ele fica o tempo inteiro frio e depois tenta me enforcar contra a parede durante meu momento melancólico particular?

–Quem. É. Noah?

Meus olhos triplicaram o tamanho a cada palavra. Era uma boa pergunta. Eu havia falado sobre Noah? Eu não havia percebido. O que era? Quem era? Por que eu havia comentado da boca para fora?

Mas não havia como pensar nisso.

Porque aquilo me atingiu antes.

–Moyashi?-acho que ouvi, mas não há certeza alguma quando havia zumbido interminável atacando meu ouvido.

Se eram vozes, se eram gritos, se eram ruídos, eu não sabia, mas ardiam dentro da minha cabeça e me faziam fechar os olhos com força para evitar de ver as imagens derretendo como sempre faziam. Se falei ou fiz algum barulho, não conseguiria saber com os ouvidos tampados e o os ruídos estridentes dentro deles. Só sei que caí. Pendi para frente e bati em algo durante o desespero da dor. Era como uma bomba tentando explodir o meu corpo, de dentro para fora.

A dor. Estava. Me consumindo.

Quando parou, assim de repente, havia lágrimas e suor manchando meu rosto sangrento. Meus dedos haviam afundado as unhas ao fechar o punho com força e agora minhas mãos sangravam. Respirava pesadamente e, pior, estava com o corpo amparado por Kanda em cima da cama.

–Ei...voc-

Não dei dois segundos antes de virar o rosto e vomitar no balde ao lado da cama.

–Uma dica, Kanda-tossi, com a voz rasgada-não me peça para lembrar das coisas ou pode ficar nojento...

–Aprendi a lição...- seu rosto estava cheio de asco observando meu estado deplorável-moyashi idiota. Que tipo de ataque foi esse?

Dei de ombros.

–Boa pergunta- eu me sentia tonto e cheio de arrepios-eu achei que tinha a ver com meu estado de saúde, mas acho que é mais que isso, certo?

Engoli o gosto ruim, desejando que não tivesse tomado toda a bebida.

–Aliás-continuei, não ligando em deitar e me cobrir-eu não sei quem são Noahs. Mas se eu me lembrei disso é porque deve ser importante. Ou não. Tudo que me lembrei até agora foi inútil...

Ele franziu o cenho.

–Vou falar para Komui depois-seu olhar se perdeu na paisagem de fora por um tempo. Imaginei que estivesse pensando. E isso era um progresso na minha visão.

–Então foi assim que você morreu?

Cocei os olhos com força, tirando os resquícios de lágrimas que pendiam dos cantos. Minha garganta estava seca e minha nuca ensanguentada, mas quem disse que eu ligava para o travesseiro?

–É...-ele já havia feito essa pergunta antes, mas é um assunto difícil de ser tocado. Não que ele ligasse para esses detalhes, com certeza- sujo, não?-ri, com ardência na garganta- Indigno. Eu fui doente a vida inteira. Foi uma merda.

–Você gosta dessa palavra.

–Não gosto. Mas acho que ela gosta de mim. Merda.-tossi-Por que ainda está aqui? Achei que tivesse vindo apenas para entregar a comida.

Ele arqueou as sobrancelhas. Eu devolvi o gesto na mesma proporção.

–Komui me disse para ficar aqui...-disse em um tom que me fazia entender que era para eu saber o motivo-...ele disse que era para eu esperar nesse quarto.

–Eu não sabia disso.

–Eu percebi, idiota.

Kanda tinha no olhar uma única coisa que eu conseguia identificar e isso era dúvida. Eu era isso para ele. Uma interrogação para ele desconfiar e um experimento para ele vigiar.

E pelo nojo que ele aparentava, eu não estava me saindo muito bem como uma interrogação interessante.

“Estou mais para um empecilho que deveria ser útil em teoria”.

Se eu estou confuso, imagine como ele deve estar ao ser colocado nessa situação? Hã...não muito bem, creio. Mas a julgar pelo modo como é um total babaca, eu decido que não ligo.

Virei-me para o lado da parede, querendo deixá-lo pensar que talvez eu estivesse dormindo. Além disso, era mais seguro manter partes baixas e rosto longe do alcance dos punhos dele. Apesar da minha coluna vertebral estar diretamente na direção precisa para ele quebrá-la em um golpe...Mas eu podia fingir estar seguro com o cobertor na altura dos olhos.

–O que quer dizer Noah e Alma?-resmunguei contra o tecido.

E mais uma vez, recebi um tapa forte na nuca, desestruturando os meus sentidos deturpados.

–Coisas que você não devia saber- rosnou, com toda a sabedoria de uma topeira e a amabilidade de um tiranossauro rex faminto.

Kanda era incrivelmente incrível em um campo de batalha e tinha uma aparência de fazer cair o queixo de qualquer pessoa, mas, convenhamos, sua personalidade era tão terrível quanto...quanto a minha.

–Desculpa...-sussurrei, cobrindo até a testa.

Outro tapa forte.

–Ai!

–E pare de se desculpar.Tsc. Só fala besteira.

Eu não sabia que estava falando com a minha mãe. Desculpa.

–Ai...-minha mente teve uma pontada dolorida por dentro. A visão deu uma deslocada por alguns segundos antes de voltar ao normal.

Foi quando Kanda pareceu frustrado. Tipo, extremamente frustrado.

Ele suspirou pesadamente ao colocar o rosto entre as duas mãos. Esfregou-se com impaciência,esticando para baixo os olhos em uma careta comum. Vi tudo por cima do ombro, tentando não mudar muito minha posição.

–Agora que ele sabe que alguém pode descobrir que você é um alienígena...

–Não sou um alienígena.

–...ele vai me colar em você em todas as tarefas...-me ignorou, com um tom de raiva.

–Talvez você não devesse ter falado algo.

–Talvez você não devesse existir.

–...certo.

Virei de costas totalmente, colando a testa na parede manchada de tempo. Que venha Komui. Que venha akumas. Que venha Noahs. Que venha Almas. Eu cansei da segunda vida.

–Podem vir...-sussurrei, com um pesar cansado.

E a porta da enfermaria se abriu alegremente.

–Bom dia, queridos exorcistas-Komui entrou com um sorriso. O que, claro, nem de perto agradou o samurai-como estão?

Respondemos ao mesmo tempo e no mesmo tom exausto da vida:

–Não é da sua conta.

–Como se tivesse sido atacado por um monstro.

–Ora, vejo que estão melhores do que eu esperava- nada como um discurso ensaiado que não depende do interlocutor, certo, Komui?-e vão ficar melhores agora.

–Eu estou sangrando pela cabeça, Komui- e me ignoraram mais uma vez.

Ouvi o espatifar de folhas na cama e só assim criei vontade e curiosidade para virar de frente para a cena. Quase pedi o balde de vômito de volta quando li o que estava ali, escrito na capa da centena de folhas.

[MISSÃO]

–Missão corrida essa-o supervisor disse- vão logo, logo. Não há tempos para descansar muito. O Conde está se movimentando e que melhor dupla dinâmica que Kanda e Allen para cumprir nossos objetivos?

–Hã...-contei nos dedos-Batman e Robin, Wiccano e Hulkling, Hermione e Harry Potter, Ichigo e Rukia, Maka e Soul Eater...?

–Sua garganta e a minha espada?- você-sabe-quem rosnou.

–Não. Definitivamente Allen e Kanda-levantou-se apressadamente, provavelmente querendo evitar a situação- vocês saem em alguns dias. Tomara que sare rápido, Allen. Ou vamos ter problemas no campo de batalha.

Quando a porta se fechou. Nossos pescoços viraram ao mesmo tempo, calma e hesitantemente, um para o outro. Kanda franziu o cenho, eu tentei imitá-lo. No fim, apenas tentamos nos fuzilar com os olhos.

E em um gemido uníssono de desagrado nos jogamos na cama velha da enfermaria de papos para o ar... o que deve ter quebrado parte do suporte de ferro, para falar a verdade, mas nunca saberíamos.

–Me passa o Cura em Gotas?-estendi a mão para o alto- E um sonífero. Tipo, muito sonífero? Ou calmante? Ou erva de gato, sei lá!

Recebi os dois frascos das mãos de Kanda e não esperei receita nem alguns segundos para tomar a quantia que achava necessário.

Se tem algo que temos em comum é o nosso total despreparo em suportar um ao outro. E se Komui acha que uma missão vai resolver isso, é porque eu tomei pílulas demais e minha mente destruiu alguns neurônios.


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Notas finais do capítulo

Hey!! Como estão vocês!!
Eu sei, eu sei. *ajoelha* Mil perdões!!! Milhões de perdões!!! Eu fiquei devendo a tanto tempo, as é que uma coisa aconteceu e...bem... olha aí os motivos:
—Bloqueio (ele sempre está aí, alguém me ajude!! É do tipo milhões de ideias novas, mas nada de conseguir uma para a fic que está rolando)
—Estava atolada em coisas para fazer ( a escola pegou MUITO pesado agora, vocês não tme nem ideia).
—Não consigo dormir (eu me sinto cansada todos os dias, porque eu não consigo dormir muito...).
—E o PIOR, o que aconteceu e até agora me dá vontade de gritar com todo mundo que aparece: o word pifou. P-I-F-O-U. E com ele foram: one shots pela metade, capítulos que eu estava escrevendo, meu trabalho de história (!) e as ideias de futuras histórias e situações (TUDO!) que eu escrevia em um documento! E além disso eu não conseguia abrir nada para poder escrever. Eu dei um jeito de usar esse semana, mas só funciona quando quer e com vários problemas, então é difícil escrever, quanto mais entregar no prazo. E tive que reescrever esse capítulo inteiro. Eu perdi o de Bad Boy, o de Self Destruction (do qual faltava umas míseras 500 palavras para terminar...) e milhões de coisas! Eu estou super desesperada no momento, mas por isso eu escrevi rapidamente esse capítulo para pode avisá-los das dificuldades que terei em escrever... Desculpa, de verdade...
—Eu revisei rapidamente esse capítulo, então...se tiver alguma coisa incoerente... avisem :)
—Alguém viu Maze Runner?? Caramba, eu queria tanto ler o livro, mas nem acho o box para comprar na internet hahaha
—Tirando um espaço para falar aqui, mas é que me fez muito feliz, que a minha companheira de Yullen (hahaha) Kanda Yuki finalmente postou um novo capítulo na história dela (e por isso tive que vir correndo escrever também, né? Para ficar justo haha). Desenhos, Poses e Fotografias e Akai Ito! Deem uma olhada porque Yullen nunca é demais hahaha
—Eu tenho que compartilhar isso, porque eles são meu vício do momento, mas...alguém já leu Jovens Vingadores (o novo ou o velho)? Porque, meus deuses, Billy e Teddy vão me matar com toda a fofura deles (eles são um casal!!!) jDKJWNJFBJNJNF. Eu preciso escrever algo deles, meus deuses...nem que seja threesome com o Tommy...hm...
—Sério. Teddy. E. Billy. Fofura demais. Argh!
—Ok. Parei.
—Mas muitíssimo obrigadíssima para quem leu!! E comentou!! (eu vou responder agora os reviews do outro capítulo :)). Eu juro que tento ser rápida, mas...Word...por quê???
—Tento trazer de Bad Boy agora? haha acho que sim.
—Muitíssimo obrigadíssima!!
—Até! o/