Netflix Guy escrita por Roni Ichiro


Capítulo 3
Se beber, não ligue para o Netflix




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– Vai levar só esse, querida ? – perguntou a velhinha da locadora. Coitada, depois da proliferação da facilidade que era baixar filmes de graça na internet (ou assistir no Net.. aquela coisa que começa com N que todos sabem muito bem), a lojinha dela estava quase indo à falência.

– Sim, por favor. – falei, olhando para o DVD de “Hércules” na minha mão. Depois daquele...acontecimento da noite passada, resolvi dar um tempo da coisa que começa com N.

– Temos a promoção que se levar três filmes do mesmo gênero, paga só dois. – a velhinha disse com um sorriso

– Não precisa, obrig...

– Tenho vários outros de animação aqui. Espere um minuto.

Vi que não ia adiantar nada discutir com a velha, então esperei pacientemente ela se abaixar no balcão para ver os filmes mais alugados. E assim que ela se levantou, adivinha quais filmes ela pegou ?

O primeiro era “O estranho mundo de Jack.”

O segundo...

O segundo era “Rei” porra de “Leão” !

Eu juro que se ela não fosse uma velhinha de um metro e quarenta eu dava um soco na cara dela. Mentira, não dava não. Mas que deu vontade, deu.

Não, obrigada. – enfatizei a palavra pra ver se ela se tocava.

Muito bem. São três dólares, querida. – ela disse, não tirando o sorriso da cara por um minuto sequer.

Paguei e saí daquela loja o mais rápido possível. Desamarrei a coleira de Ursa que estava presa no hidrante ao lado da lojinha e fui voltando com ela para casa. Parecia que ela sentia que eu estava meio para baixo, porque foi roçando o rosto na minha perna o caminho inteiro, deixando minha calça toda babada.

Girei a chave e entrei em casa, estava quase fechando a porta quando vi uma mão encostando nela e uma voz gritando “Não fecha !”, e levei o maior susto. Quando vi quem era, cruzei os braços e falei, com raiva :

– Astrid ! Não sabe tocar a campainha como uma pessoa normal ?!

– Ué, a porta não estava totalmente fechada. – ela deu uma piscadela e entrou em casa. Estava toda suada, vermelha e um pouco ofegante. Pegou uma toalha do lavabo perto da porta e secou o cabelo – Por que não quis correr comigo hoje ?

Dei de ombros.

– Não estava afim.

Ela largou a toalha no chão e direcionou os olhos para a sacolinha de plástico que eu segurava na mão.

– Que é isso ? – ela apontou

– Um DVD alugado.

– DVD ? – ela perguntou, surpresa – Ainda existe isso ? – e riu da própria piada.

– Existe, ué. – falei, séria. – Nem tudo na vida a gente consegue pelo Netflix.

Pelo meu tom de voz, Astrid me encarou confusa. Depois perguntou :

– Nossa, tá tudo bem ? Parece que o Netflix te deu um pé na bunda. – e riu novamente.

Suspirei e olhei para baixo. Oh, mal sabia ela o quanto aquela frase estava certa. Virei as costas e caminhei em direção às escadas.

– Ei, Merida ! Que que há com você ? Foi só uma brincadeira ! – ela começou a ir atrás de mim, e apertei o passo.

Enquanto subia, segurava o corrimão com força. Argh ! Por que eu fui assistir à droga do Rei Leão no dia dos namorados ?! Por que não me contentei com um videogame ou a programação normal da TV ?! Por que tinha que ter ligado pro maldito atendimento ?! Por que eu contei meus problemas pra um estranho ?!

Por que eu acreditei que ele realmente se importava...?

A raiva de mim mesma por ter sido tão estúpida era tanta que eu dei um soco na parede. Só parei no meio da escada quando senti uma mão agarrando meu cotovelo.

– Vai me contar o que aconteceu ? – Astrid perguntou

Não conseguia olhar nos olhos dela.

– Só quero ficar sozinha. Assim eu não me machuco. – falei, tentando me desvencilhar, mas numa tentativa inútil. Astrid malhava e corria todo dia, era muito mais forte que eu.

– Do que você está falando, Merida ? Me conta, talvez eu possa ajudar !

– Não pode ! – gritei, e respirei fundo – Ninguém pode ! Todos só vão dizer ‘Eu avisei’ ou ‘Eu sabia que não ia dar certo !’

– Não precisa me contar a história toda se não quiser. – ela disse, calmamente. – Me fala, algum cara te deixou magoada ? Foi isso ?

Meu queixo tremeu e Astrid me deu um abraço. Puta merda, era a segunda vez em menos de 24 horas que eu não conseguia segurar o choro ! E eu era conhecida como uma das duronas da família !

– Qual é o nome desse imbecil ? – ela perguntou, fazendo carinho no meu cabelo - Me fala, que eu vou até a casa dele lhe dar uma surra.

Dei risada e limpei a lágrima que estava quase caindo.

– Jack Frost. Mas não importa agora. Nunca mais vou vê-lo. Não tenho como saber onde ele mora.

Ela se soltou do abraço e me olhou nos olhos.

– Talvez seja melhor assim. Escuta, uns amigos meus e do Soluço – esse era o apelido que ela deu ao namorado. Não me pergunte o porquê. – vêm aqui em casa hoje. Estamos pensando em ligar o som, comprar umas bebidas e fazer uma festinha. Quer participar ? Posso te apresentar aos mais bonitinhos. – ela piscou, sorrindo.

Funguei, e me limpei com a manga do moletom.

– Sei lá...

– Vamos, irmãzinha. – ela me deu um soquinho de leve no ombro –Vai te fazer bem. Relaxar um pouco, conhecer pessoas novas. Vai ver. – ela ergueu o polegar em sinal de positivo.

Torci o nariz, depois falei :

– Ok. Não tenho mais nada de bom para fazer mesmo.

(...)

Quando Astrid disse que “alguns amigos” dela iam mais tarde lá pra casa pra uma reunião, eu não sabia que esses amigos eram umas 200 pessoas !

A casa estava uma zona. Meus pais iriam enlouquecer quando voltassem da viagem do fim de semana com os trigêmeos. Tinha gente bêbada para todo o lado, música tocando no volume Furar Tímpanos, salgadinhos espalhados pelo chão, sofá e etc.

Não conhecia ninguém além de Astrid, Soluço e algumas caras conhecidas na escola, então estava me sentindo totalmente deslocada. Tentava conversar com os dois, mas eles só queriam saber de virar shots de tequila, um atrás do outro.

Quando Astrid finalmente notou minha presença (e minha tromba) ao seu lado, me agarrou e disse com a voz esganiçada :

– Meridinha ! Vem tomar uma com a gente !

– Não, obrigada. – falei, encarando aquela gente um tanto assustada – Eu gosto do meu fígado.

– Ah, vamos, Merida ! – dessa vez foi Soluço quem me chamou, e por um breve momento lembrei da minha ultra quedinha por ele, corando. – Só umazinha ! – ele cambaleou para perto de nós.

– Não quero, de verdade.

Nesse momento, Astrid segurou meu ombro e me olhou totalmente séria. Parecia que tinha ficado sóbria por um momento.

– Maninha, olha pra mim. Você quer mesmo ficar se sentindo uma droga pelo resto da noite ? Toma só uns golinhos, você vai ver ! Vai se soltar e deixar aquele idiota pra lá !

– Deixar que idiota pra lá ? – Soluço perguntou

– Ninguém ! – gritei. Encarei o copo na mão de Astrid e deixei minha sanidade de lado por um segundo. Agarrei-o e virei na mesma hora, fazendo uma careta. Aquele troço desceu queimando pela minha garganta. – Uau !

– Isso, garota ! – alguns amigos dos dois me aplaudiram, entre gargalhadas. – Se solta !

Não sei se era o fato de que meu organismo era extremamente sensível a álcool (porque eu não bebia, tipo, nunca), mas de repente minha tristeza começou a se esvair. Fiquei um pouco tonta, andei para trás e me apoiei no balcão da cozinha.

Aquilo parecia uma poção mágica que me fazia me sentir melhor comigo mesma, muito mais eficiente do que um filme idiota no Netflix. Então, obviamente, e estupidamente, quis beber mais dela.

– Quero mais.

– Uhuuuul ! – disseram os amigos.

Uma garota de duas tranças e um cara que parecia seu irmão (ou não, já estava tonta o suficiente pra não conseguir distinguir) pegaram na cozinha metade de um limão e o potinho de sal, e me deram.

– O que eu tenho que fazer com isso ? – perguntei

Os dois riram.

– Lambe o sal, vira o copo e chupa o limão, bobinha ! – a garota disse

– Nunca virou um shot de tequila de verdade ? – o garoto falou, rindo.

Dei de ombros e fiz o que eles fizeram. Coloquei um pouco de sal na mão e o lambi, depois virei o copo com a poção mágica da autoestima que queima a garganta e chupei o limão. Caramba, que amargo ! E tinha gente que bebia aquilo por prazer ? Por que achava bom ?! Nossa.

Se passaram uns quinze minutos – ou dez ? Ou vinte ? não sei, tinha perdido a noção do tempo – e eu já estava rodopiando pela sala de casa vendo estrelinhas. Tudo ao meu redor girava, minhas mãos formigavam e meu riso saía descontrolado. Mesmo que eu quisesse parar de rir, não conseguia. Me lembro vagamente de ter dançado que nem uma louca “I will Survive” com os irmãos amigos de Astrid e de ter tropeçado umas cinco vezes nos meus próprios pés.

E foi aí que eu decidi fazer uma coisa ainda mais estúpida.

Cambaleei até o sofá onde tinham uns três casais se pegando e achei meu celular no meio daqueles salgadinhos. Com dificuldade, li o número na lista de recentes e liguei.

Tocou algumas vezes, e eu tapei um ouvido para escutar melhor. Caí de bunda acidentalmente em cima de uma garota que dormia e acabei espantando-a do sofá.

– Serviço de atendimento do Netflix. Mavis falando, em que posso ajudar ?

– Olá, Netflix ! – falei, meio gritando, meio rindo, meio tudo. – Se lembram de mim?!

– Hm, a senhora possui cadastro ?

– Eu não acredito que não se lembram de mim ! – joguei a cabeça para trás – Ok, talvez isso refresque a sua memória... Sabe um tal de Jack Frost ?!

– S-sim..

– Então ! Ele é um babacão, sabia ?! – gritei, a pronúncia das palavras saindo meio errada da minha boca – Você liga pro Netflix, acha que vão resolver seu problema e o que eles fazem ?! Me pergunta, Mavis, o que eles fazem ?

– O...que eles fazem ? – ela perguntou, com incerteza.

– Eles te fazem se sentir uma bosta ! Uma bostona ! Uma bostaça ! – peguei um dos salgadinhos embaixo de mim e comi, ugh. – Uma bosta do tamanho do...

– Senhora. – ela disse – Pode me dizer qual é o problema com nosso funcionário ?

– O problema ? Vou te falar o problema. Cliente insatisfeita aqui, Netflix! Sabe o que ele me fez fazer ?! Me pergunta o que ele me fez fazer.

– O que ele te fez fazer, senhora ? – ela suspirou

Respirei fundo e fechei os olhos por alguns segundos. Depois voltei a falar com a mulher :

– Chorar ! E muito ! E não sou dessas coisas, sabe ?

– Hm...

– Ele merece ser punido ! Me passa o endereço dele que eu vou até lá dar um chute na bunda dele !

– Não será necessário, senhora. Espere um minuto. – e depois de uns dois minutos de silêncio ouvi uma voz masculina ao telefone.

– Senhorita Merida ?

– Mavis ?! – perguntei – Sua voz ficou estranha. – e dei risada.

– Não, senhorita. – o homem tinha a voz calma, mas um pouco assustadora. – Aqui é o chefe dela, e o do Jack também. Agradecemos o seu depoimento. Jack já fez muitas coisas que quase custaram seu emprego por aqui, mas acho que agora já sabemos que decisão tomar.

– Vão me dar o endereço para eu chutar a bunda dele ?!

– Não, faremos melhor que isso. O funcionário será demitido, devido a todos os seus avisos de mal comportamento, e pelo seu depoimento, senhorita.

De repente a tontura passou e o efeito da risada cessou.

– O quê ? – perguntei, desnorteada – Não, não era isso que eu...

– Obrigado novamente, senhorita. Tenha uma boa noite.

– Não, espere ! – gritei, desesperada, mas não adiantou. Ele desligou.

Eu tinha acabado de fazer Jack ser demitido. Oh meu Deus, e agora ?! Ele disse que precisava continuar lá por causa do pai ! Oh, não, não ! Que idiota que eu fui ! Idiota, infantil ! Ligar para o trabalho do cara só porque eu estava chateada ?! Que decisão mais imbecil foi aquela ?! E que tipo de chefe demite uma pessoa por um depoimento de uma bêbada ? Só se ele quisesse muito demiti-lo e me usou como desculpa.

Como é que Jack ia ficar agora ? Tudo bem que ele tinha me magoado, mas o cara tinha uma vida ! E aquele emprego, por mais que ele odiasse, era importante !

– Merida ! – meus pensamentos foram interrompidos por Astrid agarrando meu braço – Tem gente na porta, atende lá por favor ? – ela quase caiu – Por favorzinho, vai.

Gritei de frustração e andei até a porta. Precisava pensar em algo. Mas não adiantava ligar para o Netflix naquele estado e dizer que era só um mal entendido, eles iriam desligar na minha cara.

Mas assim que abri a porta, senti meu coração subindo na garganta. Parecia uma alucinação, devido ao meu cérebro quase fritando por causa dos eventos que aconteceram naquelas 24 horas.

– Merida... é você !

Lá estava, na porta da minha casa, um cara alto, muito bonito, de olhos azuis, cabelos loiros que pareciam brancos de tão claros, e um sorriso no rosto.

Jack Frost estava na minha porta.

Eram muitas emoções tomando conta de mim ao mesmo tempo, que não sabia o que fazer. Estava feliz, triste, aflita, zangada, e me sentindo culpada, tudo ao mesmo tempo. E aquela maldita tequila estava começando a passar o efeito bom e entrando no efeito ruim.

E meu corpo falou no meu lugar. Quer dizer, quem me dera eu ele tivesse falado. A última coisa que eu me lembro antes de capotar no chão da entrada da minha casa foi meu vômito cobrindo os sapatos dele.


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