Mantendo O Equilíbrio - Finale escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 15
Capítulo 14


Notas iniciais do capítulo

Quando, depois de uma volta violenta na montanha-russa, você só precisa "vomitar"...

É, esse foi um daqueles capítulos difíceis de escrever. Tipo, MUITO difícil.

Enjoy.



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As pessoas costumam dizer que o melhor que temos a fazer quando estamos em cima de uma prova importante e estudamos com tamanho afinco é que devemos nos tranquilizar e dar um espaço de descanso ao cérebro antes de se deixar levar pelo sono. Não comentam isso somente para dar alívio, é mais como aviso mesmo. Pois nossas mentes são perigosas quando se detém demais a uma coisa só, transformam expectativa e suspense em total terror.

Quem nunca sonhou em fazer seu exame sem nada saber? Ou perder a prova? Ou chegar à sala “como veio ao mundo”?

Dentro dos sonhos, nosso entendimento é de que aquela é a realidade e, em conformidade a ela, agimos e reagimos de acordo com como tudo lá vai se dando, mesmo que pareça impossível, mesmo que seja incompreensível. Então quando o terror se planta lá, ainda sentimos cá, ao acordar.

Não havia percebido que dormia ou que sonhava até me desprender bruscamente desse paralelo que foi meu sonho. Melhor, meu pesadelo. Na minha cabeça, as coisas rondando, eram muito vivas e frescas, por mais que eu as empurrasse e barrasse de volta. Se antes me sentia ruim, aquilo se tornou insuportável.

Assim fugi, no sonho, na cama armada. Observei o ressonar de minha amiga ao lado, não parecia total em paz, mas devia estar tendo um sono melhor que o meu. Flávia havia demorado a dormir apesar do cansaço emocional que a exauriu, Gui ainda mexia muito com ela, o término era recente demais para que seu coração descansasse apenas.

Me certifiquei de não fazer nenhum barulho, me refugiei pelo corredor até à despensa da casa, que era o cômodo mais distante dos outros. Carecia estar só para lidar com um ataque de pânico que tava me dando, pois logo estaria na presença de outros e, pior, de volta em casa e teria de mascarar tudo novamente. Iria me permitir só mais essa, por causa do sonho que tive. Mal me lembrava dele já, no entanto o mal-estar permanecia.

Embora tenha ficado com Flávia até dormir, antes de eu própria a seguir, fui à cozinha, encontrei sua irmã. Conversamos brevemente numa penumbra, conversa trivial, seu marido estava uma pilha de chateação por ter brigado com o professor de espanhol do curso onde dava aula. Se não fosse por ela ter o tirado de lá, ele teria procurado caso até com o professor de italiano.

Por que minha mente não se invocou com nada dessa história, me questiono. Foi a última coisa com que lidei antes de deitar. Meu cérebro deveria ter sido fiel aos ditos populares, seguir a ordem.

Sento na cadeira que havia, do lado da máquina de lavar. Evitava fechar os olhos por muito tempo para não rever as cenas recentes, as poucas memórias do sonho. Pessoas que apontavam para mim, estavam me julgando. Me massacrando.

Aquilo me acabava.

Me acabava mais por segurar a força com que tudo revolvia por dentro.

Não podia chorar. Não podia me entregar.

Era um desgaste extremo, estava no limite. As coisas rodavam, as coisas rondavam. Misturavam-se. Meu eu em passado e presente.

Por que não? Por que não reconsiderar?

Não! É vergonhoso, é horrível demais para se ver na retina de todos, replicou a mim a Milena do passado.

Mas dói, entregou a Milena do presente.

Prefere que doa em você ou que doa nos outros?

Eu quero confiar.

Confie. Não precisa dar provas, justo essa prova, para que acreditem em você.

Quero ser feliz.

Você é feliz. Você conseguiu se reerguer, lembra?

Mas uma parcela ainda me consome.

É seu preço. Você já aceitou. Escolheu esse caminho.

Posso ter dúvidas, posso ter opções.

E deixar que todos te espreitem, tenham pena, depois de ter ciência do que ela fez a você? A vocês? Você não tem medo?

Tenho.

Então fique quieta. Isso vai passar eventualmente.

Mas não vai embora por definitivo.

Isso não te compete, a outra Milena constata.

Isso não me compete, eu repito. E estranho.

Isso não me compete?

– MI? Você tá me ouvindo?

Não.

~;~

O relógio do micro-ondas marca 3h da manhã. Acostumada à penumbra, enxergava tudo ao meu redor. Como ato involuntário, pisco e ainda sinto o ardor tomar meus olhos. Ainda que secos, estavam duros e insones. Apáticos.

Bebo com calma a água oferecida, goles pequenos. Flávia apenas me sonda da bancada da cozinha. O silêncio reina o ambiente. Me envergonhava de minha covardia, me amedrontava de minha decisão. Estava a ponto de... “vomitar”.

Minha amiga havia acordado no meio da noite, notou que eu não constava na cama armada em seu quarto, procurou-me pela casa até me encontrar remoendo sozinha na despensa, o que foi estranho até para mim, que não era de sair às escuras desse jeito. Estava tão inconsciente em pensamentos que ela teve que quase gritar para me tirar dos devaneios.

Agora na cozinha, ela espera que eu me pronuncie. Quando não o faço, ela destaca:

– Mi, tem algo errado.

Mas não foi uma pergunta. Ao seu perscrutar, minha amiga se levanta de seu lugar, dá a volta na bancada, senta-se ao meu lado mesa. De alguma forma já não está tão frio. E não falo do pijama que ela havia me cedido.

A desorientação me bate de novo, me soco contra o entrecruzar de mãos levantadas, cotovelos na mesa apoiados. Sem muitas respostas de mim, Flávia termina por me chacoalhar de leve. Com um desvencilhar de ombros, resmungo apenas, torturada.

– O que foi, hein? Mi? Mi? Milena!

– Só não aguentei. É muita pressão.

– Do que você tá falando?

A inquietude se marca a cada palavra murmurada por ela, era eu quem agora a agoniava.

– E-eu...

Como eu me abriria, como?

– É do Murilo?

– Não.

Neguei com um suspiro.

– É do Vini?

– Também não.

Com um intervalo de 10, 15 segundos de seu maquinar, ela tentava novamente.

Ou quase isso.

– Eric?

– Não... Quer dizer, sim. E Anderson.

A atmosfera parece mudar, ainda que a cozinha continue em silêncio e escura. Foi o suspiro, o choque abafado dela que me deu essa noção. Não precisava estar às claras para ver suas expressões por completo. Eu as sentia. Pressentia sua confusão também. E continuei a confundir...

– E Kevin... E Ingrid... Edgar, Judith, Érico. E Denise.

– Quem são essas pessoas?

Flávia não enxergou, mas eu cerrei os olhos com força quando vem a pergunta direta. Amassei os lábios também como se pudesse prender a resposta antes de qualquer coisa mais. Assim, ditou a questão de novo para o caso de não ter ouvido ou ter apenas ignorado.

– Lena, quem são essas pessoas?

Quando que respirar se tornaria fácil de novo, era minha pergunta em mente, pois mais uma vez deixava aquilo em suspenso. Não conseguia arrancar. Abrir a boca não era garantia de nada se as coisas não poderiam ser assim, simplesmente articuladas.

Aflita, Flávia lastima-se num sussurro, num cuidado. Me abraça de lado, apoia seu queixo ao meu braço contraído na mesma posição. Cotovelos apoiados, mãos unidas, rosto escondido por elas.

– Meu Deus, se eu não tô aguentando... Admita que você precisa botar isso pra fora.

– Sei que preciso... Mas não encontro forças.

– Tô aqui, ok? Não precisa contar, lembra? Mas se é isso que vai te fazer melhor... apenas conte. Tá me assustando.

Termino por confessar que...

– Tenho medo.

– De quê?

– De como vão reagir...

– Essas pessoas?

– Não sei.

– Mi! Tá dizendo coisa com coisa. Me deixe te ajudar. Me dê a passagem. Sabe que pode confiar em mim. Por favor. Eu... só quero teu bem. Desculpa se exagerei. Prometo que não vou julgar.

Por instinto, por briga de passado e presente, me afastei quando captei a palavra “julgar”.

– Você não sabe do que tá falando.

– Então me diz. Me deixe saber.

Desisto de minha própria barreira, assinto sem me virar.

Me deixo ser convencida. Quando tomo a decisão, sinto um fio de alívio. Uma das cordas com que puxo a carga ao ombro parece se soltar. Esperava que fosse tão libertador quanto Eric havia mencionado. Esperava de verdade.

– Não é uma boa história.

Assim me levantei e, com passos determinados, seguidos por ela, fomos de volta para o quarto. Como permanecer à penumbra faz com que nossas pupilas fiquem dilatadas, quando nos chocamos a um lugar luminoso, a visão se atordoa por uns segundos. Quando Flávia liga a luz de seu quarto pelo interruptor, ambas fechamos os olhos. Mas só eu penso que a verdade poderia ser essa luz forte que nos provoca esse cerrar. Que aos poucos eu teria que me acostumar com ela.

Era bom o quarto dela ser o mais distante dos outros no corredor, assim não chamaríamos atenção alguma. Assim que minha amiga senta à cama, zanzo pelo quarto me decidindo por onde começar. Como a tábua rasa que era Murilo, Flávia não tinha referências daquilo.

– Lena.

– Não sei o que posso dizer, por onde dar partid... Espera.

Um lampejo me veio de repente, busco pela minha bolsa e de lá tiro o caderninho. O da Hello Kitty. Em minhas mãos novamente. Não o encaro. Apenas levanto, ando até Flávia, e, tremendo um pouco, entrego.

Minha amiga não entende o sentido daquilo. Ora olha para suas mãos, ora me fita, as interrogações sem fim surgindo à sua expressão, um franzir de testa marca bem isso.

Trilha indicada: Alanis Morissete – That I Would Be Good

That I would be good

Even if I did nothing

That I would be good

Even if I got the thumbs down

Que eu ficasse bem

Mesmo se tivesse feito nada

Que eu ficasse bem

Mesmo que ganhasse uma desaprovação

Ela termina por comentar algo, a única referência que tem do que poderia representar aquilo. Era minha chance, era meu gancho.

– Você não gosta da Hello Kitty se bem me lembro...

– Não. Eis a razão. A razão de eu repudiar.

– Um caderninho? Qualquer coisa relacionada à Hello Kitty você chegava a ficar até zangada. Brigou com Gui uma vez por causa de um...

That I would be good

If I got and stayed sick

That I would be good

Even if I gained 10 pounds

Que eu ficasse bem

Se eu pegasse uma doença e permanecesse

Que eu ficasse bem

Mesmo se eu ganhasse uns sete quilos

– De um chaveiro que me deu. Eu sei.

Foi como descobriram que eu tinha um ódio mortal sobre adereços com a marca da bonequinha. Com o passar do tempo, apenas passei a ignorar. O ódio não era um bom alimento, percebi.

Com uma dor no estômago, a minha expectativa assiste Flávia abrir calmamente a agenda, sem saber o que esperar, sem saber o que procurar.

That I would be fine

Even if I went bankrupt

That I would be good

If I lost my hair and my youth

Que eu ficasse ótima

Mesmo se tivesse arruinada

Que eu ficasse bem

Se eu perdesse meu cabelo e minha juventude

Ela se corta ao que começa a articular ao perceber do que se trata, ao ler os primeiros escritos e mais confusão vir à tona. Quando ergue o olhar, totalmente incerta do que tinha em mãos, estou abraçada em mim mesma, tapando-me parte do rosto.

That I would be great

If I was no longer queen

That I would be grand

If I was not all knowing

Que eu ficasse formidável

Se eu não fosse mais rainha

Que eu ficasse digna

Se eu acabasse por não saber tudo

– Até eu parei de usar aquele estojo porque você não parecia suport... O que é isso? De quem é isso?

Engulo a seco antes de qualquer coisa.

– Denise.

– Denise... a sua prima? Que negócio é...? Como você conseguiu isso? Lena, eu não tô entendendo.

That I would be loved

Even when I numb myself

Que eu fosse amada

Mesmo se eu entorpecesse

Apenas cerro os olhos. Ver a reação por completo dela na minha frente estava me desestruturando, logo entenderia tudo e eu... Não havia preparo para nada daquilo!

That I would be good

Even when I am overwhelmed

Que eu ficasse bem

Mesmo quando eu fico desarmada

Queria fugir. Deixar esse caderninho para trás.

No entanto, o caderno não faria sentido por si só. Somente minha voz poderia esclarecer tudo.

That I would be loved

Even when I was fuming

Que eu fosse amada

Mesmo quando estava em cólera

Quer dizer, ou a minha, ou a de Eric.

E ele não estava lá para esclarecer comigo. Ou pra me segurar.

That I would be good

Even if I was clinging

Que eu ficasse bem

Mesmo se estivesse apegada

– Quando foi embora, foi esse caderninho que ela deixou para trás. O acesso a ele me explicou tudo ou quase tudo de ruim que havia acontecido aquele ano. Ela... ela armou e destruiu pessoas, Flávia.

That I would be good

Even if I lost sanity

Que eu ficasse bem

Mesmo se tivesse perdido a sanidade

Folheando um tanto rápido, as páginas foram sendo passadas, vasculhadas por alto, entendidas de alguma forma, indeterminadas de outras.

That I would be good

Whether with or without you

Que eu ficasse bem

Quer que fosse com você ou sem você

Os meus sentidos me diziam isso. Ainda que estivesse de olhos fechados, os outros sentidos trataram de desenhar a imagem de Flávia à escuridão em meus pensamentos.

– Como assim? Do que você tá falando? Céus... olha iss... Como...?

– Por todos esses anos, eu o guardei. Apenas eu e Eric que soubemos a verdade, pois fomos os únicos a ficar na escola. Isso até... até...

Não fraqueja, Milena. Chegou muito longe para retroceder.

Mas... Palavras, onde estão vocês?

Imagens, parem de vir.

Vozes, calem-se!

– Até...?

Viro-me de costas, como se fosse resolver algo. Estava inquieta, o choro silencioso começando a romper o peito, não dava pra segurar, eu tremia, o controle deslizava de minhas mãos. Exposta. Estava sendo exposta por minha vontade de me libertar e ainda assim esse alívio não vinha.

– Até Anderson passsssar a-a faze-er as perguntas ce-errtas... Até ele... ssssacar.

Com espanto, ela retruca:

– Anderson Anderson? Aquele Anderson que estuda com Vinícius?

Assinto, explico parte. Um começo.

– Sim... Ele é-é primo de Kevi-in, quem estudou comigo. E quem sssofreu mu-uito nas mãos de Denise.

– O que isso quer dizer? Que mal foi esse? Que armaç...? Oh, Deus.

Não sei o que viu, mas nada ali era bom. Nada ali era são. Inspiro forte com um fungar já que as vias nasais congestionavam, e tento retomar o controle. O controle de mim e quem sabe da situação.

Declaro mais determinada ao virar-me de volta:

– Eu vou te explicar tudo, Flávia. Porque não consigo mais manter esse segredo comigo.

~;~

Dormi o sono dos justos.

Interrupto, prolongado, recarregador, sem sonhos. Agregada à cama de Flávia, me remexi ao acordar sem muito ter noção de onde estava, ou por que lá estava. Levei uns breves segundos para me reiterar da madrugada. Fui dormir quase ao raiar do sol, por então ter me obrigado a desfazer-me um pouco daquele segredo.

Embora quisesse manter isso comigo até os confins do tempo, ao que parece eu havia atingido certo limite emocional, assim tive que ceder. Foi... um descanso para minha torturada cabeça. Grande descanso, devo frisar.

Grogue, me remexi mais e me virei. Ao meu lado, Flávia constava sentada à cabeceira da cama, digitando algo em seu netbook ao colo em uma almofada, compenetrada. Examinei um pouco dela antes de me pronunciar, estava abatida e cansada.

Parte daquele cansaço era culpa minha.

– Desculpe.

Ao ouvir meu murmuro, ela se vira, calma.

– Pelo quê?

– Eu quem devia estar te consolando por causa de ontem... de Gui.

– Mi, não. Aquilo não é nada perto...

Flávia não termina a sentença, ambas entendemos o que queria dizer, era preferível deixar como estava. Sem falar sobre. O desgaste era o bastante.

– Eu sei. Mas você ainda sofre por ele.

Ela abaixa a tampa do netbook, coloca-o ao lado, na cômoda e se esparrama mais pela cama, abraçada ao urso que havíamos ganhado no parque, na viagem. Me forço a não me transportar para esse dia em questão, quando disputei com Sávio uns alvos nas barracas de tiro ao alvo. Apesar de boa lembrança, o desenrolar de depois não era.

– Não nego. Gui é uma parte de mim marcada pela mágoa.

Naquele intervalo de meu sumiço no departamento de artes, Flávia ainda tinha voltado ao auditório com a galera, porém, teve que se levantar para atender uma ligação de sua irmã, perguntando sobre algo que não entrou em detalhes comigo, algo delas, por isso voltou ao saguão. Só que Gui percebeu e a acompanhou sem que ela pudesse notar. Ao findar a ligação, deu de cara com ele.

Não se sabe bem por que momento Sávio e Dani foram atrás deles, Flávia não estava em preparo para lidar com Gui, menos ainda para se aperceber de seu redor. Ele apenas insistiu. Vacilante, ela aceitou que conversassem, num ponto mais calmo do saguão.

Aguinaldo não embromou muito, disse logo seu propósito. Que tinha um plano para dar uma revirada naquela insuportável situação, que ela pudesse dar um voto nele, assim ele pudesse seguir mais tranquilo. Era aquela história de ceder tudo o que seus pais queriam, menos ele mesmo ou seu coração. Porque pertenciam a Flávia e ninguém mais.

Só que isso era um passo muito arriscado, ambos já vinham sofrendo desde sempre por causa dos pais dele. Outras alternativas mais haviam tentado, o que seria mais uma? E se resultasse em decepção? Flávia queria se preservar, ainda que aquilo fosse a coisa mais difícil de se forçar. Por mais que quisessem ficar juntos, os pais dele estariam pairando. Ela não queria passar por aquilo de novo. E se fosse humilhada outra vez? Era pedir muito sim.

Gui, por outro lado, permanecia esperançoso. Conservava-se firme para que não lhe passasse qualquer sinal de incerteza. Funcionaria se Flávia não se ressentisse tanto por aquela manhã, algo havia se quebrado nela. Neles, na verdade. Gui estava a todo custo juntando seus pedaços para se apresentar em fidelidade para com ela, mas minha amiga... não tava preparada para se reerguer dessa forma.

Ele tentou, muito. Vendo que não trazia os resultados esperados, bateu o desespero nele, pois Flávia estava muito descrente e desistente dele. Não tirava a razão dessa cólera toda, aquilo deve ter o desnorteado um bocado. Perdendo o rumo, aquilo se tornou um infortúnio, como se, pelas vistas dela, não tivesse pelo quê lutar por.

A intensidade da tensão se agravou. Foi por essa hora que eu chegava ao saguão de volta. Gui persistia em propostas, Flávia se negava em respostas. Ao ponto do insuportável, ela quebrou a bolha. Isso ao meio de um beijo que ele conseguiu roubar. Talvez tenha até achado que ela cederia por ter aceitado de primeira o avanço dele, mas quando o afastou bruscamente, à vista de todos, o choque o dominou.

Sávio foi lá dar apoio pra ele enquanto eu permanecia com Flávia.

– Ele te ama... tanto.

Minha amiga se aconchega ao urso, parece distante do corpo que habita. Mas me responde, branda.

– Eu sei.

– E tá se desdobrando pra te ter de volta.

– Eu sei.

Suspira fundo, aperta mais o urso contra si. Aí que minha percepção se clareia mais, de maneira que capto mais do que está ao meu redor que antes eu não tinha me tocado. Flávia não estava mais de pijama.

– Que horas são?

– Pouco mais de 13h.

Quase pulo da cama, ao que Flávia me para.

– Quê?

– Calma, calma. Já resolvi tudo.

Não havia pensado sequer no que faria, o que ela presumiu bem e me acobertou. Mais cedo Vinícius havia ligado para ela – Flávia tinha desligado meu celular e acusou que tinha descarregado – para saber como estavam as coisas e que horas ele poderia passar para me buscar, aos domingos sempre vamos para a casa de seu avô. Por um segundo surtei só de me imaginar num almoço com todos e me sentindo ainda em recuperação pela noite passada, não ia dar certo. Óbvio que iriam notar!

Assim Flávia contornou a situação.

Como eu não poderia dar as caras, não daquele jeito – se ela tinha um tamanho abatimento, não me imagino como estava, senão pior – se todos poderiam me ver ao que sobrou de mim, ela comunicou que havíamos dormido tarde e era melhor que ficássemos quietas por um tempo. Talvez até se meter a estudar, afinal, havia a prova de professora Silvana ainda essa semana.

A despeito de ter ficado de final por apenas uns poucos pontos, era melhor não arriscar mesmo no que se tratava dessa avaliação, que seria essa quarta. Me questionava de onde tiraria disposição para estudar diante de tudo isso que povoava minha cabeça, porém, se tratando de distração, estava aceitando qualquer coisa. Quase que realmente me deu vontade de me jogar nos livros para não ter que lidar com o que quer que fosse a história de Denise.

Flávia agora sabia de tudo, tudo mesmo. Desde o momento que minha prima havia pisado minha casa até o surto da madrugada. Foi certamente um choque, principalmente quando mencionei que havia encontrado a desgraçada no fim da viagem.

– Meu Deus, Mi, quase te botei na parede sobre a viagem. Dava pra ver que você tava segurando uma barra!

– Que opção eu tinha?

– Sei lá, qualquer coisa!

Flávia também era adepta da proposta de Eric, de abrir o jogo. Não era agressiva e insistente como Anderson, tampouco clamadora como Eric, mas estava lá, tentando enfiar a ideia na minha cabeça. Que era absurdo, que eu não merecia. Aquilo já havia ido longe demais, concordo, porém sobre colocar tudo às claras, a meu irmão principalmente, eu não teria cara, coragem menos ainda.

Eu não teria estrutura.

Ele iria se virar pra mim novamente. Dessa vez sim ele iria me deserdar em verdade. E eu não aguentaria.

Ao colo e carinho, Flávia tentava me dissuadir disso também:

– Murilo te ama demais para fazer isso. Nem consigo imaginá-lo fazendo tal coisa...

– Acontece que ele já fez, Flá. No caso do professor Bartolomeu. Foi simplesmente a pior sensação do mundo. Como se não houvesse nada mais. Quando me deixou falando sozinha, provei do meu veneno. Era amargo. Solitário. Deprimente.

– Mas isso é sério demais! Essa garota devia era tá presa! Psicopata total.

E assim adentramos mais a madrugada até que não restasse mais o que relatar. O que foi muito de qualquer forma. Jurei que queria ter extraído isso de mim faz tempo, para alguém que eu confiasse, como ela, desde a vez que havia conversado com Eric no salão de dança, quando eu fui pedir perdão a ele pelos feitos de Murilo. Eu só... não tinha as forças suficientes ou me encontrava ainda em certa zona de conforto que me acobertava daquilo.

Sento-me na cama, sinto meu corpo dolorido e ainda muito cansado. Fui atropelada pelo meu passado aparentemente e nem podia processar. Se pudesse, não levantaria e dormiria mais uns séculos. Como Flávia continua esparramada, cutuco-a, que parece despertar:

– Você já almoçou?

– Não. Tá com fome?

– Na verdade não. Mas sei que você vai me empurrar de qualquer jeito porque eu já ia empurrar pra você.

Se remexe na cama, se levanta com um sorrisinho sem muita graça. Faço o mesmo que ela, mais desorientada. Dessa vez eu não tinha prezado tanto assim pelo sono, mas já me sentia melhor por ter descarregado aquele sofrimento todo. Acho que eu nunca poderia agradecer tanto. O ponto que pulsava na minha cabeça tinha me dado uma trégua.

Um pouco antes de sairmos do quarto, com minha amiga em devaneios, ela salta para a realidade ao me abordar:

– Vai mesmo persistir com isso de não revelar?

– Você sabe a resposta.

– Ok, só... queria me certificar. Vai tomar banho primeiro?

– Acho que sim.

Pego a toalha que me oferece, vou me encaminhando e paro quando novamente ela tenta. Havia certa frustração que lhe acometia, era isso. Devia sentir como se tivesse algum dever só por eu ter revelado.

– Lena, eu não sei como... ok, não vou comentar mais.

Asseguro antes de mais nada. Ela, porém, me encara pra evidenciar que não tô bem é nada e se encontra ainda desgostosa por eu ser do contra de abrir o jogo.

– Não precisa fazer nada, tá? Já estou melhor.

– Lena...

– Ok, tô melhorando.

Tomo aos braços algumas roupas minhas para poder trocar. O bom de ser a casa de minha melhor amiga é que lá eu tinha certeza que havia coisas minhas para emergências. Dessas que a gente costuma deixar para trás e se torna uma reserva.

Enquanto me esperava pegar as peças necessárias dentre as poucas opções, me avalia. E me desconcerta:

– Vinícius tem razão em se preocupar no que guarda essa cabeça...

Ela não tem nem ideia...

Mas poderia ter. Determinada, me viro para ela e solto mais uma bomba, aproveitando-me de uma vontade súbita que bateu:

– Flá. Tem uma coisa ainda que eu não te falei. Em relação à viagem.

– O quê?

– Sávio me beijou.


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Notas finais do capítulo

É tanta bomba nessa cabeça que sabe-se lá como esse cérebro ainda funciona, viu.

Ia postar o 15, mas tô achando que vocês precisam respirar...

De qualquer forma, não torturo tanto. Deixo um trechinho do próximo:

"Enquanto me relatava um pouco sobre aquele momento dele com Flávia durante as apresentações do workshop, houve uma hora que comentou algo estranho. Ainda meio mal pelo que tinha acontecido, me lastimei:
— Queria poder fazer algo por vocês... mas ela parece irredutível.
— Mi, não se preocupe com isso, ok?
Ele falou isso como se soubesse de alguma coisa. Como se isso não fosse nada perto dessa outra coisa. Como se dissesse “não se preocupe com isso, se tem aquilo lá”. Por ter estranhado esse seu modo, e perdida na entrelinha, questionei:
— O que quer dizer?
— Que... a prova de Silvana já é o bastante pra nos ocupar, certo?"

e de bônus:

"Com essas questões em mente procurei pelas chaves em minha bolsa, adentrei a primeira porta. Alcancei a seguinte, entrei sem cerimônias.
Quando entrei, entendi. Quer dizer, não entendi.
A primeira coisa que vi foi um vaso da sala quebrado ao pé da porta.
Brigaram?
E aí ergui a vista para os dois homens de minha vida [...]"

Já estou roendo as unhas por vocês!
See ya!

Abs,
Alexis.



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