Pretty dress escrita por pennyweather


Capítulo 7
Capítulo Vl


Notas iniciais do capítulo

Será um milagre?
Não, sou só eu mesmo... NÃO ME MATEM!
Antes de qualquer outra coisa, queria pedir a vocês minhas sinceras desculpas. Quem acompanha minha escrita há mais tempo já deve estar acostumado com minha inconstância (tenho leitoras maravilhosas que me acompanham desde DITM, minha primeira fanfic Gadge). Tive uma série de problemas relacionados a pouco tempo, pouca criatividade, pouco ânimo e principalmente pouca organização. Mal tenho escrito nestes últimos meses, o que é uma vergonha para alguém como eu, que costumava escrever quase todos os dias. Pretendo estabelecer uma rotina de escrita de modo a me organizar melhor e também quero botar a mão na massa em Pretty Dress. PD é uma história muito especial para mim, então eu jamais conseguiria deixa-la incompleta.
Se você está lendo isso: OBRIGADA pelo apoio! Nyah é o único lugar em que confio plenamente para me arriscar a exteriorizar as histórias que guardo comigo. É muito reconfortante saber que algumas pessoas especiais me encontraram aqui e apostaram no que eu escrevo. É muito legal mesmo. Então, obrigada.
Queria agradecer a Rô, a minha sis que sempre me apoia e deixa uns reviews maravilhosos, e também a todo mundo que acompanha, comenta e favorita. Tenho leitores muito especiais e sempre sorrio quando leio os comentários que vocês deixam aqui; já compartilhei músicas, dicas de livros e mensagens privadas com alguns, o que, para mim, é algo mais do que especial.
Queria dedicar um parágrafo especialmente para a leitora que me mandou uma mensagem privada alguns meses atrás. Querida, se você estiver lendo isso, quero que saiba que sua mp foi uma das alavancas que me impulsionaram a voltar a escrever. Não consegui responder porque a mensagem expirou alguns dias depois, mas estou respondendo agora. Obrigada pelo incentivo e por apostar no que eu escrevo. Eu realmente fico muito alegre quando as pessoas se sentem, de certa forma, ligadas ao que eu escrevo. Escrever é a coisa que eu mais gosto de fazer e levo isso muito a sério, então, obrigada por não ter desistido disso aqui.
SIM, eu sei que eu falo muito; mas pensem pelo lado bom: pelo menos eu estou falando alguma coisa, certo? Melhor do que um silêncio eterno e uma história incompleta...
Espero que gostem do capítulo e continuem acompanhando - se é que tem alguém lendo isso aqui HAHAHA.
Boa leitura!



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Ele corria, corria sem parar. Seus pulmões pareciam prestes a explodir e seus joelhos estavam bambos. Ele arfava, procurando recuperar as energias ao encher o peito com o ar frio e seco da noite. Precisava chegar a tempo.

Tic, toc.

Tic, toc.

Tic, toc.

Corra, Gale. A areia de sua ampulheta está escorrendo. Você precisa correr antes que seja tarde demais.

Ao longe, um relâmpago cortou o céu escuro. O som dos aviões bombardeiros sobre o céu do distrito entrava por seus ouvidos e esmagava seu coração aos poucos; uma estática crescente e regular. O chão sob os pés cansados do corredor tremia.

Você não vai conseguir. Aceite que você a perdeu.

Você a perdeu.

Você a perdeu.

Não, ele ainda tinha tempo. Tinha condições de correr mais rápido, é claro que tinha. Sempre fora o melhor corredor do colégio... Ele chegaria a tempo. É claro que chegaria a tempo. Mas então por que suas pernas estavam falhando? Por que sua visão estava embaçando?

Cada segundo, um segundo perdido.

Ele contornou o vértice de uma construção, virando a esquina logo em seguida - apenas para provar a si mesmo o quão errado ele estava.

O cenário que ergueu-se em frente aos seus olhos apunhalou-o no peito; seus joelhos cederam ao chão e, desesperado, ele viu a casa do prefeito do distrito 12 desmoronar em chamas, consumida pelas labaredas que dançavam em seu entorno.

Você a perdeu.

~*~

Gale acordou com falta de ar. Em questão de segundos, ele ergueu-se sobre os cotovelos e tentou situar-se. Seu peito subia e descia, arfante, e sua cabeça parecia girar. Seu olhar percorreu todo o perímetro do quarto; a familiar cômoda, a escrivaninha, a estante cheia de livros. A porta de madeira que dava acesso ao corredor. Os desenhos de sua irmã que ela mesma colara na parede. A velha foto de seu pai segurando-o no colo sobre o criado-mudo. Tudo nos eixos, tudo normal; nada que se encaixasse no cenário escuro e poeirento de minutos atrás.

Ele respirou fundo.

Fora só um pesadelo.

Sua cabeça latejava e suas orelhas, fervendo como o inferno, haviam adotado um tom rubro. Confuso, ele ergueu a mão e sua palma foi de encontro à testa quente e úmida. As imagens que surgiam em sua mente eram embaçadas e totalmente sem nexo, como neblina em dias frios e chuvosos. Ele ergueu o tronco, sentando-se de pernas de índio; então, esfregou os olhos e tentou afastar a tontura, procurando concentrar-se na doce voz que ecoava em sua mente.

Olhe para mim, pensou ter escutado. Seria parte de uma lembrança que lutava para ser percebida? Uma lembrança que ansiava por um feixe de luz na escuridão de seu sub-consciente?
Todavia, seu estado de transe desconstruiu-se no momento em que ele escutou o familiar barulho de louça batendo contra louça. Ouviu passos no andar de baixo e uma delicada risada infantil. A sutil sinfonia de um lar.

Gale ajeitou os ombros, moveu o pescoço e estalou os dedos um a um. Torceu os pulsos, como de hábito. Soltou o ar lentamente pelos lábios e, enfim, seus pés encontraram os sapatos velhos e gastos escondidos sob a cama. Ele levantou-se logo em seguida, dirigindo-se ao corredor e correndo escada abaixo, as mãos mal roçando o corrimão. Havia acabado de alcançar o último degrau quando de repente uma menina de olhos cinza apareceu em sua frente.

Ele sorriu.

– Bom dia, Posy. O que está fazendo aqui a uma hora dessas? – Perguntou, inclinando-se e erguendo a irmã em seus braços. Seu tom de voz era sereno, calmo e gentil; tom este que só assumia quando em companhia da família.

– Sentia sua falta. - Posy murmurou, enlaçando o pescoço do soldado com os dois braços corados.

– Eu também, pequena. Eu também. - Gale admitiu, afundando a mão cicatrizada nos cabelos da irmã e afagando os fios ondulados. Carregando a menina no colo, ele caminhou até a cozinha a passos largos, encontrando os outros dois irmãos jogando damas sobre a mesa e a mãe inclinada sobre uma pia cheia de louça.

– Mãe... Mãe, o que está fazendo?

– O que eu estou fazendo? – Hazelle virou-se, colocando as mãos na cintura e encarando-o com certa reprovação. – Estou dando um jeito nesta casa em que você insiste em viver – sozinho, inclusive – e não mantém organizada por cinco minutos!
Gale balançou a cabeça, colocando Posy no chão.

– Mãe, já te disse que não é legal você ir entrando aqui do nada. Ainda mais para lavar a minha louça.

– Você me deu as chaves. Além disso... – A mulher suspirou, passando a mão na testa e fitando o moreno como se quisesse reconhecer o próprio filho, o menino bondoso que dera lugar a um homem frio, fechado e sério. – Filho, sei que não se sente mais confortável morando conosco, o que compreendo. Mesmo. – Ela disse, apoiando o prato úmido na bancada e secando as mãos no avental. Seus olhos pareciam aflitos. – Mas não consigo acreditar que esteja bem. Tamanho descaso com sua própria casa...

– Mãe...

– Não me interrompa. Onde eu estava? – Ela balançou a cabeça, visivelmente decepcionada. – Tamanho descaso com sua própria casa, e também consigo mesmo, me faz pensar que está infeliz. Olhe só para esta casa. Parece até que ninguém vive aqui. Ah, meu menino...

Hazelle contornou a linha d’água de seu olho esquerdo com o dedo trêmulo, limpando as lágrimas que ameaçavam escorrer por seu rosto envelhecido. Ela aproximou-se e ergueu os dedos longos na direção do rosto do filho, tocando-lhe as bochechas frias com ambas as mãos.

– Tem certeza de que não está precisando de ajuda? Eu posso passar alguns dias aqui se quiser e...

– Não. – Gale negou com a cabeça, notando a expressão decepcionada da mãe. Aborrecido, ele esboçou o sorriso mais reconfortante que conseguiu. Embora a intenção fosse a melhor possível, seu semblante parecia um tanto artificial. – Eu estou bem, mãe. De verdade; não se preocupe comigo. Já estou com vinte anos nas costas.

– Eu só não posso evitar a preocupação, Gale... – Ela murmurou, puxando-o para um abraço. Em seus braços, Hazelle parecia tão pequena e indefesa que Gale não pôde evitar o sentimento de tristeza que lhe arrebatou quando percebeu o quão abalada a mãe estava. Ela, Hazelle Hawthorne, um verdadeiro exemplo de sobrevivente, despedaçando-se ao ver o filho levando uma vida vazia e infeliz. – Não suporto vê-lo sozinho. Nunca o vejo em boa companhia. Sei que não vivemos a melhor das vidas, mas...

Gale sentiu a manga de sua camisa umedecer com as lágrimas da mãe e, embora tivesse acabado de acordar, sentiu-se extremamente cansado.

– Eu sei. Eu sei, mãe. Mas está tudo bem. Nós estamos bem. Ninguém corre perigo, agora. - Mentiu.

De repente, o toque estridente do telefone reverberou pela cozinha, o que disparou o coração do moreno. Gale havia desenvolvido certa intolerância a barulhos altos, cicatriz emocional que herdara dos traumas nascidos em campo de batalha. Não podia ouvir um estrondo sequer sem que sua memória o levasse a um cenário horroroso em que Katniss o perguntava se fora a armadilha dele que matara Primrose.

Primrose Everdeen, a doce e corajosa irmãzinha da mulher que ele amara, a menina que tivera sua vida ceifada por uma das milhares atrocidades da guerra. Não havia uma noite sem que Gale não pensasse naquela armadilha, na risada de Prim e nos olhos suplicantes de Katniss. Não suportava não saber a resposta de sua pergunta.

E jamais se perdoaria por isso.

Gale afastou-se da mãe e, em um movimento rápido, levou o telefone ao ouvido.

– Gale, aqui é a Paylor. Sem tempo de explicar agora. Precisamos de você no quartel agora. Avise seus subordinados.


~*~

Gale levou uma mão à testa. Seus dedos roçaram a pele suada, grudenta e quente. Ele olhou de relance para o espaço ocupado ao seu lado – um movimento quase que reflexo. Seu olhar agarrou-se à imagem de uma loira de olhos azuis.

Ainda lhe parecia impressionante a mudança que ocorrera em Madge. Não era mais uma menina assustada de feições singelas como pétalas de uma flor; não era mais a mesma garota que se sentava todas as noites em frente a um piano e espalhava notas de calmaria pelo ar pesado do Distrito 12. Era agora uma mulher. E Gale muitas vezes se flagrava olhando para ela.

Madge havia costurado seu reflexo nos olhos de Gale e ele nem ao menos percebera isso.

Hawthorne umedeceu os lábios e voltou a olhar para frente. Fazia parte de um enorme grupo de homens e mulheres uniformizados, uma massa cinzenta que se espalhava por todo o salão, ocupando todo o espaço disponível, o que tornava o ambiente quente como o inferno. Mais cinza que aquela massa uniforme de gente, apenas os olhos de Gale. Olhos esses que olhavam com desânimo para todo aquele cenário.

Mal sabia ele que a verdadeira cor do dia vem de dentro, e não de fora.

Ele cruzou os braços no momento em que as enormes portas de ferro se abriram. O som de botas batendo contra o chão gelado do local fez com que todas as bocas se fechassem. O barulho dos sapatos persistiu até que a imagem da presidente Paylor tornou-se visível sobre o patamar prateado no centro do salão.

Um suspiro indiscreto alcançou os ouvidos de Gale. Ele não precisou olhar para trás para saber que era Aaron. O loiro já estava parecia irritado logo nos primeiros minutos da reunião, bufando e torcendo as mãos grandes. Era verdadeiramente pouco profissional e, principalmente, pouco paciente. Talvez Gale tivesse sido mais compreensivo se soubesse que a irritação de Aaron se dava por motivos muito mais pessoais do que a simples demora da presidente para aparecer; ou talvez Gale não desse a mínima mesmo assim. Ultimamente ele não se importava muito com os conflitos internos alheios.

– Muitos de vocês devem estar se perguntando o que me fez convoca-los de maneira tão... abrupta.

Paylor passou ambas as mãos por seu pescoço, expirando uma quantidade considerável de ar pela boca. Estava visivelmente nervosa. Paylor era uma mulher forte e dona de uma postura segura e firme, mas Gale conseguia perceber os escassos sinais que seu corpo revelava quando estava incomodada com algo.

– Um dos cargueiros que se dirigia ao nosso Distrito carregava explosivos em um de seus vagões. Curiosamente ninguém da equipe de segurança foi capaz de perceber isso. Não tivemos muitas perdas materiais, mas infelizmente sofremos perdas humanas; cinco pessoas no total.

Gale experimentou um misto de sensações conflitantes. Nervoso, ele travou a maxilar e cruzou os braços, começando a sentir um estranho formigamento nas mãos. Qual seria a exata dimensão que aquela queda de braço adotaria?

Burburinhos começaram a aflorar aqui e ali, gradativamente tomando forma e dimensões muito maiores que simples sussurros. Porém, com a mesma rapidez com que o burburinho se instalou, o barulho esvaiu-se quando a presidente aumentou o tom da voz.

– Silêncio!

Com o canto dos olhos, o Hawthorne pôde vislumbrar os gêmeos Kenneth cochichando entre si. Suas sobrancelhas estavam franzidas, os olhos atentos e as mãos moviam-se com nervosismo quase palpável. No bolso de Nicholas, um furão albino fungava o tecido escuro do uniforme do dono. Assim que o silêncio mortal tomou conta do ambiente, os irmãos calaram-se e voltaram a observar a presidente com postura e expressões impecáveis.

– Estamos vivendo um grande jogo de xadrez. Nosso oponente não tardará a ser descoberto, mas, enquanto nossos estrategistas não conseguem rastrear os sinais, precisaremos dobrar a segurança no país. Atenção a cada esquina. Não confiem em ninguém.

Surpreendentemente, algum soldado teve coragem para vocalizar a pergunta que todos os outros queriam fazer.

– E quanto ao Tordo?

A alguns metros de distância de Gale, Madge Undersee mordeu seu lábio inferior, nervosa e aflita. A simples menção de Katniss foi o suficiente para que uma onda de tristeza assolasse seu coração.

Paylor suspirou, visivelmente descrente. O som foi captado pelo microfone e espalhou-se por toda a sala, saindo por caixas de som localizadas em cada canto do lugar.

– Estávamos evitando envolver Everdeen nesta questão, uma vez que consideramos esta situação transitória. Peeta Mellark ainda está submetido a tratamentos químicos e não se apresenta em condições saudáveis. Todavia, Haymitch pretende entrar em contato com os dois esta noite.

Gale balançou a cabeça, esgotado. O nome de Katniss despertou em seu íntimo uma enchente de sensações controversas e esquecidas há muito, muito tempo.

Paylor caminhou lentamente sobre a plataforma prateada, pensativa. Seus passos pareciam estritamente calculados e ela ainda mantinha a perfeita postura de militar. Aquela seria uma longa tarde.

A reunião continuou por mais algumas horas. Estratégias de segurança foram sugeridas, planilhas foram entregues à presidente, perguntas foram respondidas, um estado de alarme foi confirmado. O quartel parecia ferver devido à movimentação dos militares. Quando a poeira pareceu baixar, Gale e o restante de seu grupo dirigiram-se a Paylor quando ela lhes fez um sinal para que se aproximassem.

– Hoje pela manhã Hunter Caldwell e Elizabeth Steven, os integrantes do grupo que estavam faltando, já se estabeleceram aqui no distrito. - Ela disse, indicando um casal parado a cerca de um metro atrás de si. - A equipe está completa. As reuniões serão transferidas aqui para o quartel. Todo cuidado é pouco.

Gale assentiu com a cabeça. De fato, não podia mais confiar na segurança de sua própria casa.

– O que faremos se não chegarmos a resultados satisfatórios a tempo? - Perguntou Aaron, localizado a alguns passos de Gale.

– Neste caso, precisaremos dividi-los entre as equipes de busca espalhadas por Panem. Por hora, estou confiando que vocês encontrarão o ponto cego o mais cedo possível.

Todos concordaram com a cabeça, silenciosos e sérios, embora um incômodo desespero tivesse brotado em cada um deles, como uma flor doentia. Madge levou as mãos à barriga e respirou fundo, sentindo-se levemente tonta. Procurou ignorar a sensação, imaginando que se sentia assim por puro nervosismo. Gale notou seu movimento e franziu a testa.

– Preciso que vocês passem o dia inteiro aqui a partir de amanhã. Não estamos em condições de perder tempo. Gale será o encarregado de organizar tudo. Estamos entendidos?

Um por um, eles concordaram novamente.

– Certo. Estão liberados, por hora.

Paylor afastou-se e, gradativamente, o grupo começou a se desfazer. Aaron foi o primeiro a sair, parecendo estar profundamente incomodado. Gale notou que o olhar de Madge seguiu os passos do loiro e, quando ele sumiu entre os outros soldados, ela afastou-se também, encolhida como se estivesse se escondendo de algo.

Abatido pela frequente sensação de impotência, ele observou a mulher caminhar para fora da sala. Gale sentiu-se tomado por uma ansiedade que não compreendia, uma sensação que ele temia não ser momentânea. Por alguma razão, sentia que devia algo a ela. E então, em um ato totalmente contrário à sua natureza, ele resolveu ir atrás de Madge - sem saber ao certo o que o impulsionara a fazer isso.

Ele abriu caminho por entre os soldados e atravessou a sala; logo em seguida, empurrou a porta de ferro e pôde visualizar a loira caminhando até a saída do quartel. Ele seguiu seus passos até seus pés alcançarem o espaço externo, onde a calçada estava coberta de neve e folhas secas. A poucos metros de distância estava Madge, estática como um poste e com os olhos voltados para um ponto qualquer no chão - sem parecer, de fato, olhar para qualquer coisa que fosse.

Antes de chamar por seu nome, porém, Gale deteve-se por um momento. Seus olhos agarraram-se à imagem de Madge e, por um instante, sentiu-se alheio a tudo ao seu redor. Estava ele em um universo totalmente diferente, um universo de que somente ele e Madge tinham conhecimento; uma nova esfera da existência onde tudo que era seguro e verdadeiro emanava da figura encolhida da loira, que, de tão clara, confundia-se com a neve que caía sobre seus pés.

Céu cinza, frieza agonizante: nada muito diferente da própria natureza do Hawthorne, que por muitas vezes encontrava-se mais frio que qualquer tempestade de inverno. Embora muitos dissessem, com certa e inconveniente frequência, que Gale possuía coração e alma congelados, seus olhos diziam o contrário quando um rápido brilho refletia em seus olhos.

Não, sua essência não era feita de gelo; era feita de circunstâncias. Os muros que construíra em seu entorno ergueram-se sobre a rejeição, a perda, a guerra. Porém, quando suas estruturas se encontravam mais fracas, as batidas desesperadas de seu coração tomavam forma; e Gale, o Homem de Pedra, tornava à sua verdadeira condição humana. Sendo assim, mostrava-se capaz de sensibilizar-se com pequenas coisas, como, por exemplo, a imagem da filha do prefeito camuflada entre o horizonte branco que se estendia atrás de si.

Gale tinha tanto para traduzir em palavras. Queria perguntar se o sentimento que lhe afligia era o mesmo que palpitava em seu próprio coração; se ela também estava sofrendo por antecipação. Queria perguntar-lhe se ela sentia falta de tocar piano no mesmo compasso em que ele sentia falta de caminhar na campina. Queria perguntar se ela de fato comprava os morangos que ele lhe oferecia porque gostava ou se tudo não era uma simples boa ação camuflada de capricho. Queria perguntar-lhe se ela encontrara em Nathaniel uma família. Também queria saber se o frio que ela sentia era decorrente do inverno ou das lembranças que a atormentavam.

Por último, queria perguntar-lhe se ela o perdoaria um dia por não ter sido capaz de salvá-la no dia do bombardeio.

Sempre existem palavras não ditas entre duas pessoas. Entre Gale e Madge, as palavras eram muitas. Ele tinha perguntas suficientes para iniciar um perigoso tiroteio de palavras, mas não foi isso o que aconteceu. A única coisa que conseguiu vocalizar foi:

– Você está bem?

Madge moveu o rosto em sua direção. Quando seus olhares se encontraram, ela comprimiu os lábios. Seu nariz delicado estava pigmentado de um leve tom avermelhado, ao passo que sua boca parecia roxa devido à baixa temperatura. A única coisa inalterável era sua íris. Apesar do olhar mais envelhecido, os olhos de Madge permaneciam exatamente iguais àqueles que Gale guardava na memória.

– Dentro do possível. – Ela murmurou, cruzando os braços e encolhendo os ombros. Se Gale não a conhecesse, acharia que ela não queria conversar. Mas ele a entendia; sabia que ela queria conversar, sim. Só não estava conseguindo formular as frases e escolher as palavras certas.

Ah, as voltas que o mundo dá. Gale e Madge haviam criado um tipo de intimidade extremamente raro: a intimidade proveniente não de conversas, mas de olhares, ações e lembranças. Uma intimidade muito mais profunda que, aos poucos, derrubaria as aparentemente inalcançáveis muralhas de Gale – uma a uma, do mesmo modo que dominós caem em fileira. E ele nem ao menos perceberia. Justo ele, Gale Hawthorne, que jamais abrira mão de suas armaduras, seria aos poucos dominado pela presença aconchegante daquela em quem um dia enxergou um inimigo.

– Tudo está voltando. – Madge confidenciou, afastando uma mecha loira e colocando-a atrás de sua orelha. Ela fitou-o de maneira singular; não tinha um olhar que atravessa e arquiteta estereótipos e expectativas. Ela apenas o via como ele era: o mesmo garoto de suas memórias que batia em sua porta todas as tardes, oferecendo um punhado de morangos. O mesmo garoto que, anos antes, também batera na porta de seus sonhos à noite.

– O que quer dizer com isso?

Em passos calculados, Gale tomou a liberdade de aproximar-se um pouco.

– Quero dizer que estamos em um ciclo vicioso. Achei que estava reconstruindo minha vida. Achei que voltaria a andar pelas ruas sem receio de virar a esquina. Estava começando a ter menos medo. – Madge balançou a cabeça, reprovando a si mesma. Sua mão ergueu-se até sua bochecha e seu polegar roçou a pele macia e rosada. – Tive a inocência de acreditar que as coisas estavam mudando, mas não estão. Estou vivendo um pesadelo incessante.

Gale dirigiu sua atenção para o céu cinza, reconhecendo a familiar sensação de ter sido atingido por um soco no estômago. Ele respirou fundo e fechou os olhos por um momento, tentando, em um esforço inútil, afastar o zumbido que lhe afligia desde cedo. Sentia-se da mesma forma que a loira: era como se tentasse soltar-se de algemas que o prendiam a um passado perturbador.

Sobre sua cabeça, nuvens escuras moldavam o primitivo arquétipo do que mais tarde se tornaria uma das piores tempestades de neve que o Distrito 2 já enfrentara. O dia estava denso, pesado; mas, apesar do incômodo frio e dedos gelados, nenhum dos dois parecia se importar com quaisquer agentes externos; estavam protegidos sob a sombra de seus próprios temores. Seus corpos eram constantemente tocados pelos longos dedos das revoltas rajadas de vento e o zunido em seus ouvidos lembrava o som do uivo de um lobo em noites de lua cheia.

– Creio que esta seja uma impressão comum a todos nós. – Gale concordou, baixando o queixo para fita-la. Estava, pouco a pouco, aprendendo a perder o medo de contato visual. A tempestade em sua íris encontrou o mar sereno cujas ondas desenhavam a íris da moça; e, assim que os olhares vacilantes colidiram, Gale subitamente sentiu-se calmo, da mesma forma que uma criança para de chorar quando a mãe lhe afaga os cabelos.

– O que é pior ainda. Angústia deixou de ser uma sensação momentânea e tornou-se um estado de espírito. – Madge sorriu de canto, desviando o olhar. Não um sorriso bem-humorado, mas conformado.

Gale suspirou. O ar quente que saiu de sua boca formou uma pequena nuvem branca que misturou-se ao vento poucos segundos depois.

– Eu estou acostumado.

A loira virou o rosto para ele. Suas sobrancelhas curvaram-se e seus olhos assumiram um brilho fosco e desgastado, expondo a sua mais pura expressão de tristeza.

Eu estou acostumado: uma das coisas mais tristes que alguém pode dizer.

Madge assentiu com a cabeça. Fungou e, em seguida, coçou a ponta arrebitada de seu nariz com o dedo indicador, perdida na visão das feições rígidas do soldado, desvendando cada centímetro como se procurasse algo - talvez um resquício da juventude que lhe fora roubada. Gale logo percebeu seu olhar, mas não se sentiu desconfortável, o que claramente indicava que um curioso laço estava começando a surgir entre os dois - algo improvável poucos anos antes.

– Obrigada. – Ela disse, movendo-se em direção ao moreno ao mesmo passo em que erguia o rosto para poder fita-lo. Uniu os lábios e sorriu tímida e espontaneamente. Depois, contornou-o e seguiu caminhando pela calçada, afastando-se aos poucos.

– Espere.

Ela virou-se e Gale captou expectativa em seu olhar.

– Obrigada por quê?

Madge riu pelo nariz, fazendo um movimento em negativa com a cabeça. Fios de cabelo dançavam em frente a seus olhos, o que impedia Gale de decifrar a expressão que se escondia por trás da cabeleira. Ela não disse nada em retorno.

Gale quis fazer a pergunta novamente, mas o tempo que passou tentando descobrir a resposta por si mesmo conferiu a Madge bons metros de distância dele; ela já estava longe demais. Se quisesse saber a resposta, Gale teria de perguntar depois. Conformado, ele virou o corpo e retornou ao quartel, pensando que, se Madge era uma incógnita, ele levaria muito tempo para resolver aquela equação.

~*~

Madge caminhava a passos calmos para casa, absorta em seus próprios pensamentos. Olheiras cavavam fundo sob seus olhos, o que lhe conferia um aspecto abatido e triste. Ofegava como se tivesse corrido uma maratona, embora estivesse andando lentamente. Seus dedos gélidos tocaram a testa quente e o contraste gritante entre a temperatura dos dedos e o calor da testa a assustou.

Ela atravessou a rua deserta e virou a esquina, apressando os passos. O vento arranhava seu rosto impiedosamente, como se não a quisesse deixá-la voltar para casa.

Pouco a pouco, sua visão começou a embaçar; os fios loiros começaram a grudar no suor de sua testa. Por um momento, sentiu-se perdida e precisou apoiar-se em um muro para situar-se.
Suas mãos tremiam.

– Respira, Madge. Você está perto de casa. - Disse para si mesma, ofegando. Sua boca estava cheia de saliva. Seus lábios secos comprimiram-se em uma linha reta quando ela reuniu forças para afastar as mãos trêmulas do muro.

Cambaleando, ela forçou-se a seguir em frente. Flocos de neve começaram a cair do céu, rodopiando. Alguns pousavam sobre os telhados das casas e outros tocavam o chão, formando um belo mosaico branco sobre o cimento das calçadas. Madge seguiu por entre a passarela cristalina, precisando apoiar-se, vez ou outra, em algum poste ou cercado de uma casa. Seus olhos vasculhavam a calçada, movendo-se desesperadamente.

Não havia uma única alma nas ruas além dela; não tinha a quem recorrer. Também, pudera! Ciente da tempestade de neve prestes a invadir o distrito com força suficiente para derrubar uma árvore inteira, quem se arriscaria a pôr os pés para fora de casa?

Madge, enfim, reconheceu o número 42 algumas casas à frente. A visão afrouxou o aperto em seu coração e a incentivou a seguir caminhando. Tropeçando nos próprios pés, tonta e desnorteada, ela alcançou a cerca de madeira escura que delimitava o jardim e empurrou o portão como quem empurra um caminhão. Gotas de suor escorreram por seu rosto pálido e seus lábios balbuciaram palavras indecifráveis.

O que está acontecendo?

Só teve tempo de alcançar a porta. Quando seus dedos nervosos e fracos viraram a maçaneta, ela sentiu o estômago revirar e observou o cenário em sua frente perder o foco e escurecer enquanto seus joelhos caíam de encontro ao assoalho. Antes que tudo ficasse completamente preto, ela teve tempo de vocalizar uma única palavra.

– Nathaniel.


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Notas finais do capítulo

Capítulo grandão, hein? É pra glorificar de pé, igreja!
Se você leu até aqui: obrigada mesmo. Estou muito feliz por ter voltado a escrever PD. Parece exagero, mas eu realmente gosto muito do Gale e escrever a história dele alivia o meu coraçãozinho, que tanto sofreu no final de A Esperança.
Estou viajando e vou demorar umas duas semanas para publicar o próximo, mas pode confiar na Penny aqui. Pretendo publicar assim que puder. Obrigada pelo apoio.
Sugestões, surtos, elogios, críticas construtivas... Sinta-se à vontade para deixar um review; isso incentiva muito um escritor (não só eu, não - qualquer um!). Ou, sei lá, me manda uma MP. 'Cê que sabe.
Até o próximo,
Penn



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