Pretty dress escrita por pennyweather


Capítulo 5
Capítulo IV


Notas iniciais do capítulo

Leiam as notas finais!



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Receber gente em casa decididamente não era o forte de Gale. Ainda mais quando as ditas “visitas” eram completamente desconhecidas. Quero dizer, agora sua casa tinha de virar ponto de encontro do exército? Ah, qual é. Mas, por sorte, Gale não estava com disposição para reclamar. Sabia que não levaria a nada, de qualquer forma. Seria melhor se ele simplesmente aceitasse o compromisso e resolvesse tudo aquilo antes que a situação piorasse.

Sentou-se no sofá cinza da sala e apoiou os pés sobre a mesa de centro, voltando a encarar a lista. Havia algo ali... Algo errado.

Infelizmente não teve tempo de analisar muita coisa. Ouviu o som de batidas na porta e levantou-se com um quê de saco cheio. Estava esgotado – apesar de apenas ser cinco horas da tarde - e tinha horas de trabalho pela frente. Seria líder de um grupo de estrategistas que teria de encontrar uma solução aparentemente impossível para um problema que poderia desequilibrar consideravelmente a recente e frágil paz de Panem; não era exatamente o tipo de tarefa que se resolve em um dia.

Arrastou-se sem o menor ânimo em direção à porta, levando consigo uma pasta preta em uma mão enquanto a outra já estava esticada para alcançar a maçaneta.

Abriu a porta.

Uma jovem de cabelos mel olhava-o com perspicácia. As sobrancelhas finas estavam levemente erguidas, como que em surpresa – ou dúvida. Ela era dona de bonitos olhos verdes, tinha uma altura relativamente baixa e a pele bastante branca, pontilhada de sardas. Seu cabelo estava preso em um rabo, caindo lisos em suas costas. Usava uma calça bege e larga junto com um agasalho da mesma cor. Seus traços faciais não eram exatamente marcantes, mas ela chamava atenção por sua aparência descontraída e exótica.

Ela adiantou-se antes mesmo de Gale falar.

– Stanford, Alexis Stanford – apresentou-se, já dando um passo para entrar. Não parecia ser o tipo de pessoa que faz cerimônias.

Gale abriu a pasta e procurou pelo nome “Alexis Stanford”. Retirou o documento e analisou a foto por não mais do que alguns segundos, percebendo que deveria ter dado uma olhada nos arquivos antes da reunião – tornaria tudo mais prático e ele não teria de ficar olhando identidades toda vez em que alguém ameaçasse pisar em sua casa. Por fim, afastou-se e deixou a garota passar.

Pensando aleatoriamente, ele seguiu sua nova parceira de grupo até a sala. Somente naquele momento percebeu o quão bom havia ficado seu trabalho: havia transformado a sala de estar em uma sala de mapas, exatamente como no quartel general. Havia uma grande lousa no centro da parede, que estava rodeada por todos os tipos de mapas imagináveis. Um único computador ficava sobre a grande mesa de madeira e uma pilha de livros sobre a geografia de Panem estava apoiada ali.

Gale podia ser um dos soldados mais complicados e traumatizados do exército, mas certamente era disciplinado e prático. Sabia realizar seus trabalhos como nenhum outro sabia. Talvez fosse assim porque encarava seu trabalho no exército como uma punição por todas as coisas ruins que já fizera. Isso provavelmente não faz sentido para muitas pessoas, mas ninguém realmente tem como saber o que se passa na cabeça de pessoas como Gale Hawthorne. A não ser, é claro, que tenha enfrentado as mesmas coisas que ele. O que não é lá muito fácil.

– Não sabia que você morava em um quartel privativo – Alexis comentou, a ironia quase palpável.

Ele ignorou o comentário dela. Não era muito bom nesse negócio de continuar conversas, estava sempre querendo manter o silêncio. Isso deixava sobre ele uma máscara arrogante e antipática, o que, convenhamos, não fugia muito da realidade. Gale era arrogante e antipático, só não tanto como parecia.

– Não sei se te avisaram, mas alguns dos recrutados não poderão aparecer hoje, somente amanhã – Alexis disse, caminhando pela sala e analisando meticulosamente cada detalhe de cada mapa. – Distância, você sabe.

– Compreendo.

Um silêncio incômodo se seguiu até que Gale escutou batidas rápidas em sua porta. Mais uma vez, ele basicamente se arrastou até a maçaneta. Só que dessa vez hesitou para abri-la; conseguia escutar as vozes do lado de fora.

“Você é mesmo muito babaca. Não acredito que trouxe o Ricota pra cá. Já viu a cara do Hawthorne? Vai ficar furioso quando você entrar na casa dele carregando... isso.”

“E deixá-lo com quem? Cara, não é nada de mais. Eu entro, faço meu trabalho e vou embora. Ricota pode ficar no meu bolso, se o grandalhão ficar com frescura.”

“Oh, claro. Ricota não fica no seu bolso nem por cinco minutos, que dirá cinco horas.”

“Céus, Nicholas. Me deixa quieto.”

Surpreendentemente, Gale não se importou nem um pouco com o modo com que os caras do lado de fora se referiam a ele. Quero dizer, estavam apenas seguindo a mesma linha de pensamento que o resto do país: Gale Hawthorne era um mal-humorado.

Grande coisa.

Pra falar a verdade, a única coisa que estava intrigando-o era o objeto de atenção na conversa: Ricota. Céus, o que era aquilo? Gale se pegou imaginando um queijo com patas. E depois disso balançou a cabeça ao notar o quão estúpido aquilo soava. Antes de abrir a porta, puxou o arquivo com o nome “Nicholas Kenneth”. Anexado a ele, estava outro documento com o nome “Thomas Kenneth”. Olhou as fotos por um segundo e certa confusão preencheu-lhe a mente.

As fotos eram basicamente a mesma.

Gêmeos. Obviamente.

Por Panem, o que estava acontecendo com Gale naquela tarde? Seu raciocínio parecia surpreendentemente mais lento, o que definitivamente não era bom sinal.

Girou a maçaneta e, então, pôde ver seus novos parceiros de trabalho.

Dois garotos com a pele um tanto branca pareciam emersos em uma discussão fervorosa, mas imediatamente se calaram quando a luz que vinha da sala passou pela porta e atingiu-os no rosto. Eles ajeitaram a postura de modo tão parecido que Gale sentiu como se estivesse olhando para uma única pessoa ao lado de um espelho. Tinham olhos azuis bem claros, como o céu, não aquele azul cor do mar que... Bom, esqueça. Como dito antes, Gale realmente não sabia o que raios estava acontecendo consigo mesmo. Eles não eram muito baixos, tinham uma estatura mediana. Mas perto de Gale pareciam um tanto menores. A única coisa que diferenciava os dois era uma mínima cicatriz que um deles tinha na sobrancelha esquerda.

– Nicholas Kenneth – um deles se adiantou, estendendo-lhe a mão. Gale não retribuiu o cumprimento, o que arrancou algumas risadinhas do outro garoto – aquele que tinha a cicatriz. Foi quando o Hawthorne dirigiu o olhar à mão do gêmeo e percebeu que ele segurava algo.

Um... furão?

– Thomas Kenneth – ele disse, subitamente deixando de respirar por alguns segundos. Gale era assustador, exatamente como lhe disseram.

Talvez trazer Ricota não tenha sido mesmo a melhor das ideias.

Thomas escondeu o animal no bolso, o que arrancou alguns grunhidos de insatisfação do furão. Gale, resolvendo não fazer muitas perguntas, deixou que eles entrassem e fechou a porta logo depois.

Belo grupo você foi me arranjar, Paylor.

– Fascinante – Nicholas murmurou, observando a sala. Seu olhar ostentava um brilho de curiosidade, admiração.

Isso era uma característica marcante de boa parte da população do Distrito 3: eles ficavam simplesmente fascinados com qualquer coisa que incentivasse o raciocínio. Antes mesmo de Gale dizer qualquer coisa, os dois já se sentaram e começaram a folhear os livros, já com canetas na mão para marcar o que quer que fosse importante.

Bom, quem sabe não seria tão ruim assim.

Gale caminhou até a lousa e pigarreou. Obviamente, nenhum dos gêmeos lhe deu atenção e Alexis continuou escrevendo em um bloco de anotações, os olhos verdes vidrados com o esforço de manter as ideias em ordem. Pigarreou novamente e, então, os três ergueram o olhar.

– Enquanto os outros não chegam, podemos começar organizando as funções de cada um. Vou separar vocês para pesquisar sobre áreas específicas. Assim o trabalho fica mais eficiente e organizado – Gale concluiu, pegando um giz branco e desenhando na lousa um mapa de Panem um tanto desengonçado. Desengonçado, mas até que correto. Separou as áreas dos distritos e então voltou-se para sua gigantesca equipe de apoio. – Thomas e Nicholas, vocês ficam com os Distritos 3, 5 e 8. Alexis, você fica com os Distritos 1, 9 e 10 – Gale fez uma pausa e tirou todas as identidades da pasta que segurava na mão livre. Assim poderia organizar-se melhor. Puxou o primeiro documento da lista. – Hm, ok. Hunter Caldwell pode ficar com os Distritos 7, 4 e 11. Elizabeth Steven pode fazer dupla com ele, já que os dois são residentes do mesmo Distrito. – Franziu levemente as sobrancelhas, começando a anotar tudo na lousa. – Aaron Jackson pode me ajudar com os Distritos 2 e 12. Eu posso dar conta sozinho do 13, apesar de achar que seja impossível o ponto cego se encontrar no lugar onde a revolução começou. E Sarah Donner...

Donner.

Olhou para a foto.

Cabelos curtos e loiros na altura da metade da nuca. Um nariz arrebitado e sobrancelhas finas, mais escuras que os cabelos. Um olhar triste, mas decidido. E olhos... olhos da cor do mar.

Gale deve ter ficado muito tempo olhando para a foto, porque só depois de três chamadas ele se tocou de que estavam tentando chamar-lhe a atenção.

– Aconteceu alguma coisa? – A voz de Thomas manifestou-se.

Gale expirou o ar pela boca, estupefato. Madge Undersee havia conseguido driblar todo um sistema de identidades para conseguir apagar de uma vez por todas o seu passado. Gale não sabia como, mas ela havia conseguido. Simples assim. Era como passar uma borracha sobre a antiga casa do prefeito do Distrito 12.

E, ainda por cima, era considerada uma das melhores estrategistas do exército? Desde quando o mundo havia pirado de vez? Claro que Thomas, com sua cicatriz esquisita e seu furão com nome de queijo, não estava em um nível muito mais avançado. É só que... parecia estranho. Era estranho.

Muita coisa estava mudando.

– Sarah Donner pode fazer dupla com Alexis – Gale continuou, como se nada tivesse acontecido. – E ela pode cuidar do Distrito 6 sozinha.

Voltou-se para a lousa e voltou a escrever, o peito cheio de algo que ele não sabia o que era. Sentia como se seus pulmões estivessem inchados. Depois de organizar os nomes em cada Distrito do mapa horroroso que desenhara, Gale jogou-se sobre a cadeira e ficou ali por um momento enquanto os outros voltavam a trabalhar.

Se ele não ficasse louco logo, Madge com certeza encontraria uma maneira de resolver isso rapidinho. Ela estava bagunçando sua cabeça, o que realmente deixava Gale irritado: ele detestava não ter certeza das coisas. Com ele, era 8 ou 80. Não havia meio termo. Mas, como sempre, Madge parecia disposta a desafiar suas teorias e certezas. Por que um raio não caía logo em sua cabeça e acabava com tudo aquilo?

Ah, sim. Porque ele merecia tudo aquilo.

– Gale, tem alguém na porta – Thomas avisou pela terceira vez. Só então Gale de fato escutou-o, e então se levantou e caminhou a passos firmes até a porta. Podia estar demolido por dentro, mas por fora ele era uma barreira que ninguém jamais conseguiria escalar.

Ao menos isso era o que ele achava.

Abriu a porta e não se surpreendeu nem um pouco. Lá estava Madge, acompanhada de um cara enorme (enorme para Madge, porque ele tinha a mesma altura de Gale). Ela estava séria como uma pedra. Não emburrada, como ele intimamente esperava que estivesse; somente séria. O cara ao seu lado era quem de fato parecia incomodado. A bandana vermelha estava amarrada em sua testa, deixando os cabelos rebeldes apontarem para todos os lados, e a boca fina parecia uma reta enquanto ele comprimia os lábios.

Gale não sabia para quem olhar mais: Madge, a dona dos olhos azuis mais misteriosos do mundo, ou Aaron, o cara que parecia muito com alguém. Alguém extremamente familiar. Gale não sabia quem era, mas por algum motivo acabou criando uma forte antipatia pelo loiro.

Gale estava nervoso. Irritado. Frustrado.

Mas ele adorava provocar.

– Bonito vestido – ele disse, a voz sem demonstrar qualquer emoção.

Madge desviou o olhar para o casaco grosso que usava e a calça escura. Por um momento, ficou em silêncio. E então a lembrança a atingiu. Ela ergueu as sobrancelhas e esboçou a melhor expressão ingênua que conseguiu, o que deixou Aaron embasbacado.

Vestido? Hã? Do que eles estão falando?

– Bom, se eu tiver de ir para a Capital, vou querer estar com uma boa aparência, não é?

Gale mordeu a língua. Provocar Madge Undersee era como entrar em uma queda de braço. Afastou-se para deixá-los entrar, nem ao menos se dando ao trabalho de perguntar seus nomes. Aparentemente o único que percebeu isso foi Aaron, que ergueu as sobrancelhas em desconfiança.

– Não vai perguntar nossos nomes?

– Já sei quem são. – Virou o rosto Madge, levantando as sobrancelhas e lançando-lhe um olhar significativo. – Alguns mais do que outros, é claro. – Concluiu, voltando a encarar Aaron.

Decididamente seria difícil trabalhar com aquele cara. Já não gostava dele antes mesmo de realmente conversarem. E nem ao menos sabia o motivo.

Incrível, Gale. Você é mesmo muito maduro.

Madge desviou o olhar para a lousa e afastou-se assim que encontrou seu nome ligado ao de Alexis Stanford. Não aguentava mais ficar perto de Gale. Não estava com vontade de entrar em joguinhos, ao menos não agora.

Assim que Madge dirigiu-se à Alexis, Gale e Aaron foram até a pilha de livros começaram a procurar livros que pudessem ajudá-los. Depois de reunirem o material necessário, sentaram-se e começaram a estudar. Em silêncio. E sozinhos. Isso era bom para ambos.

Depois de um bom tempo - duas ou três horas - fazendo anotações paralelas, Gale recostou-se na cadeira e respirou fundo. Seria impossível encontrar aquele ponto cego. Eram muitos lugares para estudar, muitos detalhes para tomar nota. Onde aqueles malditos estavam se escondendo? Gale sentia-se irritado por simplesmente não fazer a menor das ideias, mesmo que já tivesse lido muito a respeito do sistema de computadores de Panem.

Ele cruzou os braços e seu olhar pousou em Madge - ou Sarah, que seja. Os fios caíam em frente a seus olhos, mas ela estava tão ocupada escrevendo que parecia não querer interromper suas anotações só para afastar mechas que voltariam a cair em frente a seu rosto segundos depois. Gale percebeu que ela era canhota.

– Sarah tirou suas dúvidas? - Aaron questionou, quebrando o silêncio e fazendo com que Gale desviasse olhar das madeixas loiras de Madge.

– Quê?

– Quando apareceu na casa dela. Sarah me disse que você tinha dúvidas a respeito da reconstrução do Distrito.

Gale hesitou por um momento.

– Sim. - E virou-se com a intenção de voltar a escrever.

– O que queria saber?

Ok, Gale já estava de saco cheio no primeiro minuto da conversa. Hesitou novamente, pensando em alguma resposta aceitável. Enquanto isso, seu olhar passeou por seus companheiros e Gale chegou à conclusão de que, talvez - talvez! - não seria assim tão complicado. Todos pareciam um tanto concentrados. Thomas escrevia fervorosamente sobre um mapa, o furão esquisito apoiado sobre seu ombro. Nicholas pesquisava algo no computador, os dedos movendo-se com rapidez sobre os teclados enquanto Madge e Alexis discutiam a respeito de uma área qualquer do Distrito 1.

– O antigo Centro de Treinamento dos carreiristas. Queria saber quando aquele bagulho será demolido. Não que seja da sua conta, é claro - Gale respondeu. Ele era surpreendentemente bom em contar mentiras. Só não sabia se deveria se orgulhar disso ou não.

O rosto de Aaron pareceu virar uma tempestade. Seus olhos castanhos pareciam ainda mais escuros. Ele baixou o olhar para os livros e começou a folhear um deles.

– Não vão demolir aquilo.

Gale franziu a testa, desviando o olhar do mapa que encarava para fitar Aaron.

– É claro que vão. Aquela merda não tem mais uso.

– É uma lembrança - Aaron revidou, a voz seca e áspera. Cortante e afiada como uma navalha. - E as pessoas precisam de lembranças.

– Assassinos eram treinados lá, Jackson. Ninguém precisa se lembrar disso.

Aaron jogou o livro sobre a mesa e levantou-se com uma rapidez surpreendente.

– Você não pode tentar apagar o passado como se fosse só um erro em uma redação. Não é assim que funciona.

– Poderíamos construir um hospital com o espaço que aquilo ocupa - Gale disse, simplesmente.

– Chega - a voz forte respondeu, indicando sua determinação e irritação. - Vou procurar no sistema de identidades a lista de desaparecidos. Talvez eu encontre alguns suspeitos por lá, caso não tenham conseguido apagar alguns dos dados. - Seria uma boa forma de ficar longe do estúpido do Hawthorne. Pensando nisso, ele levantou-se e começou a dirigir-se à porta.

– Existe um computador aqui para isso.

– Ah, claro. Qualquer computador comum consegue acessar o sistema de identidades de um país inteiro. - Aaron ironizou. - Já consigo entender por que te escolheram como líder, Hawthorne. Você é um gênio.

E então fechou a porta atrás de si. Quando Gale voltou a encarar o livro, indiferente, sentiu um olhar queimando sobre si. Madge.

– O que você fez? - Ela perguntou, sentando-se de frente a Gale e entrelaçando os próprios dedos.

– Você deveria estar trabalhando com Alexis - Gale disse, no mesmo tom de advertência, ignorando o comentário anterior.

– E você deveria estar trabalhando com Aaron.

Gale bufou.

– Seu namoradinho ficou irritado porque o contrariei, Donner – Gale deixou as palavras fluírem de sua boca e fez questão de dar ênfase ao suposto sobrenome da garota. - Incrível drible o seu, aliás. - Cruzou os braços sobre a mesa, esticando-se para diminuir o espaço entre os dois. Abriu um sorriso falso, irônico. A Undersee sabia que ele se referia ao sistema de identidades que ela havia enganado.

– Cada um sobrevive como pode. - Madge encolheu levemente os ombros, um pouco desconfortável pela súbita proximidade.

– Estou vendo.

O silêncio que se seguiu era enlouquecedor. Gale resolveu aniquilá-lo com uma única pergunta.

– Por que disse a Aaron que eu estive em sua casa?

– Ele estava lá quando cheguei. Tive de inventar algo.

Gale retesou um pouco. Então a intimidade era maior do que parecia ser. Quero dizer, Aaron podia entrar na casa de Madge quando quisesse? Assim, sem mais nem menos? Como se a casa fosse dele também? Como se fizessem isso há anos?

Não que estivesse incomodado. Só achava ilógico.

– Está trabalhando na reconstrução do Distrito, então - Gale observou, mais para si mesmo do que para ela. – Por que não continuou no exército?

– Pelo mesmo motivo que você.

Gale entendeu.

Traumas. Esgotamento. Revolta.

Soltou um audível suspiro, pensando com seus botões. Madge fazia-o pensar. Pensar muito. Ela havia mudado bastante, mas às vezes Gale encontrava resquícios da antiga Madge em seus traços. O brilho nos olhos. O modo como franzia levemente a testa quando ficava desconfiada. A voz doce. Gale havia passado a vida inteira detestando-a, mas a convivência fez com que ele notasse certos hábitos dela também. E agora a lembrança de todos eles lhe vinha à cabeça novamente.

– Você nunca vai me contar - Gale murmurou, virando uma página de um livro sobre a estrutura do Distrito 2. Resolveu não erguer o olhar para não ter de encarar seus olhos misteriosos.

– Contar? - Madge questionou, fazendo o oposto do Hawthorne e erguendo o rosto para fitá-lo.

– Você sabe, Undersee. A sua história.

Gale disse seu sobrenome com tanta naturalidade que por um momento Madge imaginou se ele também estava segurando alguns morangos e esperando que ela lhe pagasse as frutas. Não conseguiu repreendê-lo. Mas também não conseguiu respondê-lo. Somente ficou em silêncio.

Madge não havia percebido, mas estava já há algum tempo parada no mesmo lugar. Alexis agora estudava com os gêmeos e os três pareciam trabalhar bem melhor juntos. Ela também não havia percebido que trabalhar com Gale tornava tudo mais simples. Depois de sua última pergunta, o resto da conversa fora totalmente profissional. Gale tinha uma linha de pensamento completamente diferente das ideias de Madge, mas por outro lado sabia ouvir e tentava levar em conta as ideias da Undersee quando sugeria alguma coisa. Ele podia ser um chato, mas sabia deixar uma antiga rivalidade de lado quando era necessário. Claro que um cutucão ou outro, vindo ocasionalmente de ambas as partes, por vezes interrompia a atmosfera seca. Estavam tão ocupados colocando na própria cabeça a ideia de se odiarem que nem ao menos perceberam o quão fácil era trabalhar um com o outro.

O resultado foi que, no fim da noite, Gale já estava com mil ideias na cabeça. Possibilidades. Conseguia imaginar um ponto cego no Distrito 6 com tanta facilidade que até mesmo se surpreendia. Sabia que, mesmo que a reunião estivesse para acabar, continuaria trabalhando durante o resto da noite.

Ou pelo menos esse era seu plano.

A primeira a ir embora foi Alexis. Ela parecia um pouco chateada com algo, mas também não disse nada. E depois foi a vez dos gêmeos doidos - e surpreendentemente inteligentes - que carregavam um furão com nome de queijo pra lá e pra cá. Eles levaram um dos livros sobre as ferrovias de Panem, mas Gale não se importou.

E só a Undersee ficou. Gale achava que ela não havia percebido isso, pois não saía da mesma posição há muito tempo. Seus cabelos, presos em um coque desleixado, deixavam alguns fios invadirem seu campo de visão. O rosto dela parecia levemente azul por conta do brilho do computador, e seus olhos pareciam ainda mais hipnotizantes com a luz incidindo sobre eles. Quando ela finalmente ergueu o olhar, seu rosto assumiu um semblante confuso.

– Onde estão todos os outros?

Só então Gale notou que estava encarando-a há um considerável tempo. Ele balançou a cabeça, irritado consigo mesmo, e sentou-se com certa brutalidade na cadeira.

– Já foram.

Madge ergueu o pulso e olhou as horas. Céus, não havia notado o tempo passar. É difícil centrar-se no horário quando se tem tanta coisa pra estudar. Havia lido tanto, pesquisado tanto! Então por que sentia como se estivesse se esquecendo de algo? Algo... importante? Uma central de computadores em algum Distrito, talvez? Quem sabe um esconderijo entre um ponto de ligação da ferrovia? Os ponteiros do relógio pareciam se mover cada vez mais rápido e ela sentiu um comichão na barriga. Levantou-se e apagou a tela do computador.

– É melhor eu ir.

Gale nem ao menos piscou. Manteve olhar fixo na mesa, fazendo movimentos circulares com o dedo polegar sobre a planície de madeira. Seus olhos cinza não se moveram. Não queria olhá-la novamente. Seria como trair a si mesmo.

E ela se foi. Como se nunca de fato tivesse estado lá.

Dez minutos se passaram e Gale continuava esfregando a pele dos dedos na madeira. A sala estava consideravelmente diferente: os mapas estavam espalhados por toda a mesa. Boa parte dos livros estava aberta e alguns dos marcadores estavam sem a tampa.

Resumindo, uma zona.

Uma zona que Gale não iria arrumar.

Seu olhar pousou em uma das páginas de um livro sobre o Distrito 12. A primeira coisa que viu foi a foto do alto do cume de uma montanha, mostrando boa parte do Distrito.

Era uma foto antiga. Antiga porque ali não havia sinal algum de bombas.

O ar foi sumindo aos poucos, mas Gale continuou olhando.

Não pegue o livro, Gale. Não pegue o livro.

Ele pegou o livro.

A segunda imagem era da campina. Árvores gloriosas erguendo-se do chão, as copas esticando-se como se quisessem tocar o céu. Arbustos aqui e ali. Troncos onde Gale poderia facilmente esconder um arco e flecha. Rochas onde ele poderia armar suas arapucas. Riachos onde poderia pescar.

A Campina. A sua Campina.

O pânico consumiu seu corpo muito antes do esperado. Suas mãos começaram a tremer. Seus olhos de repente se tornaram vidrados, e foi como se tivesse sido atingido por um trem em alta velocidade. Largou o livro e levantou-se abruptamente.

Ei, Catnip.

As pernas cambalearam e Gale quase cedeu ao chão. Quase. Caminhou até o corredor, usando a parede como apoio. Não sabia para onde estava indo, mas precisava fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Antes que começasse a piorar.

Entrou no banheiro e abriu as torneiras na máxima potência. As gotas respingavam em sua camisa cinza, deixando-a com pontinhos escuros na região da barra. Enfiou o rosto na água gelada e esfregou as mãos trêmulas sobre os olhos. Seu cotovelo atingiu duas das caixinhas de comprimidos para depressão (que, convenhamos, ele nunca havia aberto), levando-as ao chão enquanto a água banhava seu rosto.

Ergueu o queixo e encarou o próprio reflexo no espelho. Um grunhido de dor escapou de seus lábios. Gale apoiou as mãos sobre as torneiras e encostou o rosto na pia, sentindo a pressão da porcelana sobre a testa, marcando sua pele. Seus joelhos finalmente cederam e caíram de encontro ao chão. Ele encostou-se na parede, as mãos pendendo ao lado do corpo e o rosto avermelhado em uma expressão de agonia.

Não seja fraco, seu idiota estúpido.

E então ele começou a chorar.

~*~

Madge levou a chave à fechadura, pronta para abrir a porta. Seus olhos pesavam com o esgotamento. Sua cabeça girava e suas ideias pareciam desordenadas, até mesmo sem sentido. Um cinza tempestuoso constituía o plano de fundo de seus pensamentos.

Tentou girar a chave. Não conseguiu.

Ou seja: a porta estava aberta.

Mas que raios...?

Pousou a mão na maçaneta e empurrou a porta, procurando não fazer muito barulho. Não queria acordar Nathaniel, apesar de estar um tanto brava com ele por ter deixado a porta aberta depois de voltar da escola. Depois de fechar a porta - tomando o cuidado de trancá-la, é claro -, ela caminhou a passos lentos até a sala. E então percebeu que o corredor estava ficando cada vez mais claro.

Estava tão sonolenta que não conseguiu entender quase nada. Nem mesmo que a luz do abajur da sala estava acesa.

E que alguém estava esperando-a.

E que esse alguém não era Nathaniel.

Estacou com a visão que se estendia à sua frente. Por um momento, tudo o que lhe ocorreu foi confusão. Confusão e nada mais.

Isso mudou assim que ela notou os olhos inchados e vermelhos de Aaron e a expressão decepcionada que ele tinha no rosto.

Seu mundo escureceu.

– Boa noite, Madge Undersee.


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Notas finais do capítulo

Oi, você!
Então, primeiramente eu queria pedir desculpas pelo atraso. :s Mas dê-me um desconto, sim? 4.000 palavras não é pouca coisa. heuheuaheuajue
Outra coisa: 12 pessoas estão acompanhando e 7 favoritaram. Gente, custa comentar? Sei que não é uma obrigação e cada um comenta se quiser, mas eu realmente estou dando meu sangue pra escrever essa fanfic e preciso saber se está boa ou não. Para isso eu preciso de elogios, críticas, sugestões ou qualquer coisa do tipo. Ou só um "gostei", mesmo (é bom ter o trabalho reconhecido). Fiquei meio chateada, porque vocês realmente não sabem o filho que pari pra postar aquele capítulo. Enfim.
Terceiro: O que vocês acham de eu postar o dream cast da fanfic? Se sim, de qual personagem? Ou qualquer outra montagem, sei lá? Sim, eu fico fazendo imagens de capítulos de Pretty Dress quando não tenho o que fazer... Cada um é feliz do seu próprio jeito, ok??
Quarto: Eu >sei< que você quer abraçar o Gale, mas vai ficar só na vontade. HEHEHE
Quinto: Dispenso comentários sobre o Aaron. Prefiro ler a opinião de vocês sobre isso. Coitado.
Sexto: Simmm, eu sei que sou péssima com nomes de capítulos, e tal. Vamos fingir que o nome desse foi bom, ok? Ok. < 3
Sétimo: Se você leu isso aqui até o final, então já pode virar católico, porque essa nota final está quase do tamanho da bíblia.
Oitavo: Acabei. Aleluia, Senhor, amém!
Beijos,
Penn.



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