Num domingo, cruz e flores escrita por FelWatch


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura o/



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Hoje ergui-me de dentro dos lençóis com indecisas saudades da inocência encantada que possuí até completar meus quinze anos (que possuí até ser tocado por você). Acordei com uma ludicidade mórbida, acordei tranquilo, como se minha alma, que é o mar, tivesse-se acalmado sob a tempestade, conformada com toda a sua eterna ira relampejante. Hoje tomei banho gelado, despertei às seis da manhã, beijei tia, tio, vovó e, à janela, senti a maresia me abraçando com os seus braços sempre mornos.

Eu sei que você não me queria aqui de volta, mas eu gosto desses encontros familiares de domingo. Eu gosto dos abraços sinceros e da palpitação no peito. A vontade de despejar nossos corações e deixá-los escoar.

Eu, simplesmente, tinha de voltar.

Saí pelo quintal, que é este mundo inteiro, que ainda é seu. Um chapéu de palha e ramos de flores querendo flutuar. Hoje saí pelo quintal. Hoje eu precisava te ver.

Ainda penso em você quando o verão pulsa em minha pele e acorda o meu tom moreno. Lembro os seus galhos verdes correndo o ferro vermelho sob sua pele alvíssima, sempre cor de leite, em que nem o sol se atrevia em colocar vermelho. Lembro a canção de ninar das ondas, o colchão de rocha em pó, o atrevimento das gaivotas. Lembro meu corpo beijado de mar. Meu cabelo salgado, que você gostava de alisar com suas palavras sempre novas, cintilando como joias. Espero que ainda não seja tarde para dizer o quanto eu me impressionava pela displicência com que você as deitava ao chão, para quem as quisesse ter. E espero que você tenha percebido que eu as usava como troféus.

Depois de você, eu nunca mais pude achar posição pra ler. Depois de você, nunca mais sentar sob a janela, sol de três da tarde, sol doce, com gosto de achocolatado gelado. Nunca mais li, nunca mais achei pessoa que não se importasse com nossas mãos suadas tão juntas, únicas. E como eu adormecia tão facilmente sobre a deriva tranquila do seu peito, e no final do dia minha roupa na lavanderia tinha o seu cheiro. Você sempre dizia que nossos corações nunca se sincronizavam, como naqueles livros que a gente, às vezes, lia. Você disse que meu coração era de criança, sempre encantado, sempre em chamas, depois de te ter beijado. Nunca mais vou me espantar. Hoje acordei lúcido, lúdico. Tranquilo.

Hoje achei a sua cruz. É bonita. Tinha uma coroa de flores.

Hoje tive uma epifania, sentei-me ao teu pé, derramei-me sobre a grama. Deitei minhas lágrimas, todas elas, controlado, sem soluços, que preferiam ficar, escavar meu peito. Hoje o calor te projetou pra mim, sob a macieira. Senti o cheiro das laranjas que roubava. Hoje tive uma epifania. Hoje descobri que o que não foi amor foi amizade, e o que não foi amizade, paixão.

Tirei uma flor do chapéu, manchei-a com a água dos meus olhos, dei-a. Se estivesse aqui, você me lembraria que ela um dia vai murchar, que não tardará muito, que o céu está negro (o cheiro de chuva que você queria tanto colocar num frasco de perfume limpa os meus pulmões). E você sorriria, inteligente, esperando a minha resposta, de que a flor está em memória, em desenho de lápis em folha sulfite, em palavra de lapiseira sobre o caderno, em pensamento num poema modernista, nos meus dedos que só hoje deixaram de tremer.

Hoje enxerguei o teu precipício. Vi o mar, contemplei as pedras que ele descobria, observei as suas lanças, imaginei o teu sangue. Catei um por um os teus padecimentos, que pareciam ainda lá. Senti o vento entre meus braços, secando meu rosto, chamando-me também. Foi paixão, que é amizade por sofrer. Hoje recusei o vento, fechei as janelas, não deixei nem fresta pra uivo de noite vazia. Só por hoje.

Amanhã veremos.


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Notas finais do capítulo

Críticas construtivas são especialmente bem-vindas.



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