Odiada Luz escrita por Senhorita Nada


Capítulo 1
Odiada Luz


Notas iniciais do capítulo

Olá, monstrinhos! Aqui quem fala é a raposa louca que escreveu esse conto! :D

Originalmente, era pra ser só um texto comemorativo do Halloween pra um grupo do Facebook que faço parte, mas gostei bastante de como saiu e resolvi compartilhar com vocês ♥

Espero que gostem! ♥



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Tic, tac. Tic, tac. Tic, tac.

Por quanto tempo esse foi o único som que ouvi? Talvez dias, talvez semanas, talvez uma vida. O único som além da minha respiração febril, a única coisa que preenchia minha existência, meu único companheiro, o Tic tac do relógio. A única coisa naquela escuridão que não era eu.

Pois tudo eram trevas. Trevas profundas, trevas sombrias, trevas cinzentas, há vários tipos de trevas. Aprende-se a diferenciar esse tipo de coisa quando trevas são tudo o que você conhece. E, por muito tempo, a única coisa que eu conhecia era a escuridão. Me cercando, me acariciando, me consumindo. Aprendi a me mover contando meus passos, tateando as paredes, ouvindo o eco da minha própria respiração rouca. Aprendi a “ver” com as mãos, com o nariz e com a língua, da minha própria maneira.

Não me pergunte quanto tempo isso durou, pois nem eu mesmo sei responder. Alguém deve ter me mantido vivo, pois comida e água sempre apareciam pontualmente à porta. De alguma forma, também, aprendi a ler braile – o máximo que me recordo é o som de minha voz no escuro, repetindo o significado de cada letra. De resto, era eu mesmo na mais absoluta solidão, com a exceção talvez do relógio. Sem contar com ele, passei a infância toda sozinho, caminhando por entre as sombras, minhas velhas conhecidas. Meu mundo eram os túneis apertados em que vivia, e a sala do relógio. Meu mundo era a solidão. Meu mundo eram as trevas.

Foi então que a luz veio, e eu perdi tudo.

Ela veio, cegante e assustadora, queimando tudo, consumindo tudo, toda a escuridão, toda a minha existência, até mesmo meus gritos. Consumindo e consumindo, aquela maldita luz branca, cercando tudo, fazendo meus inúteis olhos doerem como se estivessem em chamas. Eu odeio a luz. Ela me deixou vulnerável. Me deixou fraco.

E a luz não estava sozinha. Com a luz vieram coisas, coisas incompreensíveis, de longos braços e peles ásperas e que se desprendiam dos corpos, coisas de vozes agudas e altas que faziam doer meus ouvidos, coisas de gosto de sal e sangue que provei quando tentaram me agarrar. Mas as coisas eram muitas, e eram fortes. Ainda me lembro disso até hoje, claro como se fosse há segundos atrás. Lembro como não importou o quanto lutei, o quanto gritei, me debati, mordi, chutei, não importaram as lágrimas, não importou minha fútil resistência. As coisas repugnantes eram muitas, eram demais, e logo me subjugaram e me arrastaram a força para a luz, para longe das sombras da minha casa e para longe do que eu conhecia como vida.

As sensações eram as piores possíveis. Os sons eram muitos, me confundiam, me deixavam enjoado. A dor que a luz causava, queimando minha pele, meus olhos, minha alma, quase me envolvia por inteiro. A sensação das peles das criaturas contra a minha era insuportável, me rasgava, me doía. Eu era uma coisa perdida no meio da dor, confuso, amedrontado. Aquilo era o inferno, era a quintessência da agonia. Era o pior que eu já poderia sentir, era a pior coisa pela qual alguém pode passar. E durou muito tempo. Muito mais tempo do que sou capaz de contar.

Estava no limite da minha razão quando finalmente tudo acabou. As abominações tinham ido embora e, com elas, a odiada luz. Eu estava novamente na escuridão, novamente sozinho, novamente seguro. Me permiti respirar fundo por alguns instantes, acomodando o ar em meu peito. Mas aquela não era minha casa. Não havia o tic tac do relógio, as paredes eram lisas demais, o ar era quente e seco demais, o eco era curto demais, as trevas eram fracas demais. Aquilo era uma pálida imitação de casa, talvez o máximo que os servos da luz conseguiram recriar. O que eles pretendiam fazer comigo, eu nem imaginava. Não que me importasse muito, desde que ficassem muito, muito longe. E ali fiquei, encolhido, e pedi para que me esquecessem.

Por algum tempo, pareceu que meu desejo havia sido realizado. Poucas vezes mais as criaturas apareceram, e nunca com tanta luz. Evitavam me tocar, como se com medo que eu os machucasse novamente. Passavam por tempo, e apenas para o essencial: me alimentavam, me davam água, tentavam me atrair para mais perto da luz. Mas eu não cairia nessa, ah não. Eu tinha visto o quanto aquilo podia me fazer mal, então, toda vez que eles apareciam, eu apenas me escondia no canto mais escuro possível e esperava que eles fossem embora. Eu os odiava tanto, aquelas coisas destrutivas, com suas peles estranhas e vozes estridentes. O mais longe que pudesse ficar deles era pouco.

Afora isso, eu estava satisfeito com a nova “casa” que tinha, mesmo que sentisse falta do meu antigo relógio. Era confortável e tranquila, e ao menos era escura o suficiente para conseguir dormir. Não demorou muito para que eu conseguisse reconhecer cada pequeno recanto, cada curva, cada sombra do que poderia ser meu novo lar. Por isso mesmo, foi fácil para mim reconhecer quando algo mudou, naquele dia em que minha vida foi destruída.

A superfície era lisa e fria sob meus dedos, suave, porém firme. As bordas eram mais ásperas e cheias de curvas e entalhes sinuosos, que meus dedos percorreram o máximo que puderam, fascinados. O gosto era insípido e a temperatura gelada em minha língua fez os pelos de minha nuca se eriçarem. Aquele negócio era estranho. Era interessante. Era diferente.

Foi então que surgiu aquele fino, pálido veio de dor, tão sutil que eu mal pude reconhecer o que era. Era a luz, fraca, sutil e tão absolutamente devastadora, quando incidiu sobre a superfície lisa à minha frente. Fraca demais para me machucar, mas forte o suficiente para me deixar ver claramente pela primeira vez. E o que eu vi me deixou enjoado.

Era uma das criaturas mais horríveis que eu poderia jamais ter me reparado. Uma coisa tão repulsiva e tão incompreensível que minha mente quase se partiu ao vê-la pela primeira vez. Assim que me viu ela se afastou, como um animal assustado, e ainda assim, não quebrou contato visual. Nem eu quebrei. Eu não podia, eu não conseguia desviar os olhos, por mais que quisesse. Não, eu não conseguia deixar de olhar para mim, refletido pela magia daquele espelho.

Foi assim que eu soube como eu era.

Foi assim que eu soube que era um deles.

Um horrível, deformado e assustador ser humano.


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Notas finais do capítulo

Feliz Halloween a todos que leram esse texto! Muitos doces e sustos! o/

Ah, e cuidado com aquela sombra... Sim, aquela...

Que as trevas os abençoem, queridos. ♥