Mantendo O Equilíbrio - Terceira Temporada escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 24
Capítulo 23


Notas iniciais do capítulo

Como disse, hoje tem Uno! ~se tiver algm aí que não sabe jogar, não se preocupe que tive o cuidado de explicar algumas partes do jogo~
Continua os momentos família e a trégua.
Tem Billy Joel também pra dar um up nos ânimos.

P.S.: Até hoje não sei quem apontar como dica para cast da Leila, irmã do Lucas, mas quem tiver dica, só gritar.



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Visita devia ter umas regalias. Essa é uma lei social que mamãe devia preservar, pelo menos comigo por perto. Mas, muito da esperta, ela colocou as suas para trabalhar. Digo, explorar. Eu e Murilo também somos visitas, pois não mais moramos com nossos familiares, então também ficamos sem direito. Flávia, Lucas e Leila entraram no balanço da coisa, para alegria da dona Helena, figura a quem chamo de mãe e, que por essa tarde de Natal que ela nos obrigou a fazer o jantar, eu a chamei de exploradora. Murilo também não ficou muito atrás, éramos dois reclamões. Não sabia se ele estava reclamando porque queria ou porque estava se aproximando de mim de novo. Comigo mais “aberta”, ele catava qualquer oportunidade. Confesso que estava gostando.

Mamãe nos observava e nos instruía em algumas coisas. Degustava um suco de abacaxi como se fosse um champagne, adorando ter todos se movimentando na cozinha. Adivinha quem tirou o menor palito e teve que ficar no fogão? A linda da mais perfeita sorte: eu.

– Pensei que a senhora tinha feito duas tortas de bacalhau. Uma para o almoço, outra para o jantar, como sempre.

Foi o que Murilo resmungou quando mamãe lhe entregou o avental. Quer dizer, ela jogou o pano na cara dele quando ele começava a cochilar no sofá depois do filme que Leila trouxe ter acabado, e ordenou que lhe fizessem o jantar. Dia de Natal não tem empregada, então mamãe deixava alguma coisa só no ponto, assegurado. A sua famosa torta de bacalhau só deu o ar de graça no almoço, que ocorreu na casa de Leila e Lucas, sua mãe havia nos convidado. Eles sim fazem jus ao que se diz boa vizinhança... o que me faz pensar que eu não bem conheço a minha. Quer dizer, não mais que os “bom dia”, os “boa tarde”, os “boa noite” e os avisos de que o carteiro vive trocando umas correspondências.

– Ah meu filho, quis mudar esse ano. Vocês sabem cozinhar. Pois provem que vocês são bons. Quero ver que gororoba é essa que vocês fazem pra se sustentar lá na capital.

– Epa, gororoba não.

Falamos eu e meu irmão ao mesmo tempo, para atenção de todos.

Tiramos no palito algumas funções. Não minto que estava divertido, mas só de brincadeira eu ficava reclamando pra mamãe, que ela estava assistindo muito reality shows de culinária para se achar jurada. Fiquei de fazer um strogonoff de carne com ajuda de Murilo e Lucas, Flávia ficou com a lasanha de frango junto de Leila e a única coisa que mamãe se dispôs a fazer depois de meus protestos foi a salada e um pouco de arroz. O bom é que tinha todos os ingredientes, só esperando a gente se mexer.

O clima daquela cozinha estava ameno e satisfatório. Éramos como uma equipe de reality show mesmo, descobrindo quem era bom no que fazia ali na hora, como se estivéssemos nos conhecendo de novo. Era bom, mesmo que fosse uma exploração por parte de mamãe. Papai ficou com vovô assistindo algum jogo na Tv a cabo, numa conversa sobre os planos de venda que fariam e do balanço que tinham de logo começar na loja, enquanto que vovó com muita luta aceitou descansar um pouco no seu quarto, ela tinha ficado meio pálida no almoço.

Aposto que estava fazendo qualquer coisa na sua cama, menos dormindo. Mamãe quis empurrar um remedinho, mas Leila, que é enfermeira e já participou do tratamento da minha avó, achou melhor não, afinal foi só um desconforto pelo dia quente que começou. Ela precisava somente se manter hidratada. Por isso a fizemos tomar quase 2 litros de água numa só tarde, que a deixou bem zangada, odiava todo esse cuidado para cima dela, que não precisava. Olha só de quem puxei o gênio.

Vovó Marília perdoou até fácil vovô ter pegado escondido os biscoitos na noite passada. O crime dele desse ano na verdade foi ter culpado uma das funcionárias da loja injustamente. Já Murilo levou um tapa – merecido – de cada um da família quando revelou o que fez no seu departamento, que poderia ter o expulsado por má conduta no ambiente de trabalho. Aí tentou se gabar de que na atividade do R.H. ele tão bem se regenerou que conseguiu um destaque, tanto que a própria diretora estava só nos elogios com ele. Deixei escapulir – juro, dessa vez saiu sem querer – um “é, isso porque ele estava de olho em alguém”. Ele não reclamou por eu ter mencionado, nem por todos terem ficado curiosos sobre isso.

Em continuidade aos desabafos de prejuízos da noite de Natal, mamãe pediu desculpas por ter perturbado papai no trabalho, e ele por ter batido o carro quando tinha dito que tinham batido nele. Ela ficou zangada, mas amoleceu fácil com umas palavras dele. Papai sempre sabe o que dizer, isso ele também puxou para minha avó. Apesar de eu não ter conhecido meus avós por parte de mãe, que morreram logo quando Murilo nasceu, mamãe adotou seus sogros como família de verdade, como se fossem seus outros pais. Acho isso lindo nela.

Me pergunto se é nisso que ela pensa que tenho com Djane, como se estivesse a substituindo, ou mesmo adotando. Claro que tem espaço para as duas, substituir nunca! Nada como sua mãe, mesmo com todos os mimos do mundo.

O mais insano que ela poderia pensar é de eu adotar Filipe como pai. Nada contra ele com Vinícius, o negócio é que comigo, se ele aceitar mesmo ser meu sogro, é só isso que ele vai ser. Isso está de bom tamanho. Admito que gostava de atentar o homem chamando-o de “tio”, algo que o perturbava profundamente, numa implicância infinita nossa. Como será que deve estar ele nesse Natal?

Meu crime confessado foi ter tido a brilhante ideia de me meter na briga dele com Vinícius e tê-lo empurrado para dentro de casa, de forma que ficamos presos juntos. Não foi minha melhor ideia do ano. Foi bem péssima na verdade. Tão genial que fui dar depoimento na delegacia. Meus pais me repreenderam muito, e papai quis implicar com Vinícius por causa disso, de que Vini não era uma boa companhia.

Para surpresa de todos, Murilo o defendeu. Tudo bem, parceiro dele, ele teria que o defender. Mas falar o que falou, não pensei que ele diria uma coisa dessas, ainda mais para papai, com quem mantinha um acordo implícito para reforçar a proteção sobre mim:

– Pelo contrário, pai, Vinícius é uma das melhores pessoas e sei quão digno ele é. Pode não parecer com todas essas histórias que contamos para vocês, mas... ele só não tava de boa com a família dele esses tempos. Nem todo mundo tem a nossa sorte. E não digo isso só porque ele é meu amigo, mas porque ele cuida de verdade da Milena. Já vi como eles são e, bom, não teria ninguém melhor, devo dizer.

– Hum. E esse cara existe mesmo? Tenho que ver cara-a-cara.

Pais, sempre desacreditados de seus filhos.

Tenho que admitir, foi bom ouvir isso de meu irmão. Ver que ele apoiava meu relacionamento dessa vez era... gratificante. Quem sabe agora ele esteja confiando mais em mim? Vinícius também tem limpado a mente desse meu irmão, apesar dele ser meu “segurança” particular e lá-acolá fazer umas besteiras.

Vovô só não gostou de saber que vivemos, ainda que por um curto período, na mesma casa. Aí mamãe e papai não deixaram de concordar. Eu não poderia lhes tirar a razão nesse ponto, apesar de ser o século XXI. Isso certamente acelerou muito nosso relacionamento, e contribuiu para algumas falhas. Nem se fez dois meses que nós nos conhecemos e olha tudo que já passamos.

Eu convivi com várias pessoas na minha vida, no colégio e na faculdade por mais de ano e não tenho 1% da intimidade que desenvolvi com Vini. Mas também não teve armação do universo com eles, tampouco vi seus melhores ou piores, nem que precisavam de mim ou vice-versa como Vinícius se apresentou. Eles não me abraçaram quando tive medo, eles não me questionaram quando preciso, não precisaram de meus conselhos, não riram de minhas graças e desgraças, não me conquistaram, não colocaram um sorriso no meu rosto, nem me deixaram boba ou me deram preocupações... enfim, não me deram entrada, nem saída.

Não havia relação de duas vias com 98% das pessoas com quem convivi, fiz trabalhos e conversei bobagens. Esse talvez seja o mal do nosso século, as pessoas não se conectam como antigamente, não abrem o caderno e o folheiam sem segundas, terceiras intenções. Por muito pouco na verdade as pessoas forçam cruzar suas vidas, ficando nada significativo. Esse tudo muito efêmero de hoje tem estragado a todos. Só nos resta a esperança de encontrar alguém de confiança nesse meio todo.

A falha de relacionamento que citei refere-se ao nitro-combustível que minha relação com Vini consumiu. Seu Júlio tinha razão. Foi uma amizade repentina que logo passou para um cuidado meio excessivo e preocupação contínua pelo que consegui acompanhar de sua história. Como uma vez cheguei a comentar com Flávia, minha relação com Vinícius estava mais um paralelo do que história principal, já que meu objetivo inicial era ajudar Djane. Tudo se misturou fácil, o que me trouxe dúvidas e medos, anseios do que eu poderia sofrer enquanto me envolvia mais com eles.

E tão rápido como as coisas se sucederam foi o sentimento que começamos a nutrir, que deu a partida para as maiores complicações. Pode-se dizer que foi por vários momentos críticos que as coisas deram um jeito de desenrolar. Nós não nos conhecíamos muito e não nos conhecemos por muito, apesar de todas as coisas que passamos juntos nesse meio tempo, que é bem o que nos complica – vide aquela confusão que ele armou no chá de bebê ou mesmo quando eu pensei horrores quando estivemos na maternidade. Lacunas assim que nos fizeram brigar.

Foram muitas coisas que nos juntaram, mas que também nos separaram. Às vezes penso se o que temos é prematuro demais para ter a desenvoltura que tem, ou diz ter. Eu o amo mesmo? Amo. Principiante, mas o amo a uma maneira minha e dele. Se não amasse não teria passado por tudo que passei, não teria me importado. Não sentiria sua falta, não choraria por sua causa, não me sentiria mal. Só... falta algo que nos fortifique, que dê uma seriedade.

Da mesma forma que eu tenho meus segredos, ele deve ter os dele, todos temos um passado. Então, estamos preparados para o que vem aí? Certamente que o que eu sento por Vini é um bem, mas isso tudo é um bem saudável? De fim, teríamos que ir com calma, não? Deixar o nitro para quem precisa, aos carros do filme Velozes e Furiosos. Eles fazem melhor uso.

De qualquer forma, eu precisava vê-lo primeiro. Então restabelecer com calma isso que sentimos, fazer bases novas e colunas que nos sustentem se é isso que nos falta. Para isso, teria que falar de verdade com ele, limpar nossa barra estranha. Acho que estava disposta a isso... todo esse clima de boas ações e sentimentalismos estavam contribuindo. Billy Joel também, quando Flávia colocou para tocar “Dancing With Myself” e pôs todos a se remexer no ritmo.


Trilha citada: Billy Joel – Dancing With Myself

http://www.youtube.com/watch?v=FG1NrQYXjLU


Mamãe não perdeu a chance, foi a primeira a se animar. Se lançou pelo espaço da cozinha movendo-se enquanto pegava separava alface, tomates, repolho e outros ingredientes. Ela que começou o “flash mob”, fazendo nós, meninas, entrarem na brincadeira, ao passo que Lucas e Murilo ficavam só de olho rindo, nuns poucos movimentos sem se soltarem de verdade. Quando o verso dizia “I’m dancing with myself”, elas diziam “I’m dancing with alface”, “I’m dancing with tomate”, “I’m dancing with tigela”, “I’m dancing with garfo”, “I’m dancing with presunto”… e qualquer coisa que chegassem a suas mãos.

Como a música era meio longa e repetitiva, me senti sair de mim e observar as coisas de longe. Reconsiderei minha brutalidade e ira com os “dois homens de minha vida”, minha mágoa pelo que fizeram. Todos nós estávamos sofrendo e devíamos sofrer mesmo pelos nossos atos, não dá pra sair impune. Era o que a razão me dizia. Em contrapartida, a emoção pelo que permiti vir na trégua me fazia respirar outros ares, uns mais felizes, que podia estar me enganando. Eu continuava a mesma confusa, mas que me deixava levar. Certo e errado, onde estavam os limites?

Na madrugada Murilo parece ter feito tudo para que eu repensasse as coisas. Lá pelas 3h da manhã todos se retiraram para suas camas, até vovô. Ele estava um pouco cansado, achei melhor que ele dormisse umas 2h antes de esperar o alvorecer. Ele ligou o despertador, foi para seu quarto e eu também, para o meu. Não para dormir, mas para mudar de roupa, colocar um pijama que oferecesse maior conforto. Fui silenciosa enquanto permaneci no quarto, achei uma roupa com a luz do meu celular para não acordar minha amiga.

Poderia ter tirado um cochilo na cama, deixado o alarme no ponto, mas preferi não. Decidi ficar no sofá, se por lá dormisse, que fosse. Ao chegar na sala, estabeleci um volume baixo à Tv, assistindo a qualquer coisa como se estivesse de bobeira. Foi aí que Murilo apareceu, também de pijama, e perguntou se poderia ficar por ali, comigo, que ele não falaria nada se preciso, rendeu-se. E foi isso que ele fez quando acenei concordando, jogou-se no móvel que fez uma zoada meio abafada pelo estofado, acomodou-se com umas almofadas, apoiou seus pés na mesinha de centro a nossa frente, tal qual eu estava.

Não demorou muito e o sono puxou foi meus pés. Sonolenta, eu abria e fechava os olhos em piscadas cada vez mais longas e pesadas, fazia força para mantê-los abertos, mas havia uma vontade que me dizia para fechá-los e tombar a cabeça no meu irmão, como geralmente acontecia quando estávamos em casa assistindo juntos algo na Tv.

O filme que passava àquela hora era de investigação e eu não estava sacando nada, o que me dava mais sono. A sonoplastia podia ter aquele som sinistro e de suspense que não adiantava, nem me acrescentava em nada se eu estava boiando. Resisti ao máximo, sob o receio de ultrapassar outros limites se eu me acomodasse mais aos ombros de Murilo.

Só sei que dormi.

Acordei com o meu celular vibrando no colo, apitando que as 5h da manhã havia chegado. Os limites que havia me perguntado outrora fora ultrapassado pelo outro, que tinha tombado no meu ombro esquerdo em um sono sereno, de respiração quieta e quase silenciosa se não fosse um ronco baixo no pé do meu ouvido. Murilo costuma roncar quando bebe, mas como não exagerou, não roncava alto. Isso também era bom porque facilitou na hora de acordá-lo. Se fosse uma noite qualquer como tantas outras, seria preciso chamar o reboque para que chegasse até a cama.

Engraçado foi quando ele se tocou onde, como e com quem estava. Fez uma cara de perdido até a ficha cair e ele meio que deu um pulo de distância de mim. Como se eu fosse o morder ou algo assim. Quase o acompanhei até seu quarto, pois estava muito trôpego para subir as escadas até seu quarto, então só o observei do sofá atenta a cada passo, preocupada se por alguma pisada em falso ele fosse cair. Ocorreu tudo bem até Murilo dar de cara com a parede... a sua porta ficava um pouco mais afastada.

Vovô me pegou olhando meu irmão, riu baixinho ao ouvir um xingamento meio alto de uma cabeça oca dando de encontro com o concreto da parede. Me despertei e fui ajudá-lo a preparar nosso leite quente. Então, cobertos por mantas, nos sentamos no balanço da varanda prontos para admirar a natureza em uma das mais perfeitas transições do mundo, da noite para a manhã, do escuro para o claro em linhas luminosas que antecediam a chegada da estrela-mor, o sol.

Eu simplesmente amo como a natureza se manifesta nessa hora em particular do dia. Tudo começa muito azul, as estrelas outras vão perdendo o brilho, algumas nuvens mostram a cara, tons amarelados e alaranjados são pintados no céu e, quase com uma sinfonia de entrada, vem o sol devagarzinho.

Debaixo da manta, abraçada a vovô Luiz, eu estava quentinha, tomando meu sonífero em forma de líquido branco numa caneca, seguida por esse velhinho que estava feliz de comer seus biscoitos em paz. Conversamos por quase toda a hora, buscando uma explicação do por que as nuvens eram brancas e o céu azul, algo que ele me dizia contando uma velha história dos seus tempos de escola aprendendo física. Eu lembrava vagamente dessa aula no meu ensino médio.

Pode-se dizer que eu estava bem satisfeita e relaxada, e quando o sol veio despontando no horizonte nos calamos para assistir a entrada magnífica do dia, numa muda promessa de que era um novo, límpido e brilhante dia. Terminamos nosso pequeno lanche e fomos nos deitar, sem nada mais dizer um ao outro. Apesar de sonolenta, minha cabeça estava a mil, trabalhando a confusão que por sempre me meto. Ao descansar a cabeça no travesseiro, a mente viajou por muitos lugares antes de desligar. Muitos foram os dilemas na madrugada, sendo impossível não sentir o pensamento fluir, nem que eles se prolongassem pelo resto de meu dia.

Estava sendo um dia de paz que eu agradecia muito.


~;~


– Que tal deixar o jogo mais... interessante?

Fala Lucas carregado numas segundas, terceiras, quartas, quintas intenções de “malícia”, debruçado na cabeceira mesa da copa. Mentira, não era nada disso. Aquela sua sobrancelha negra se mexendo para cima e para baixo enquanto encarava todos que esperavam começar o jogo estava de brincadeira. Sabia porque, quando Murilo foi pegar seu jogo de cartas, fiquei de conversa com o malandro, que me disse que não jogava faz muito tempo, que isso deve ter prejudicado algumas de suas manhas, e que esqueceu algumas regras adicionais.

Era pós-jantar, fomos deixar minha avó no seu quarto – já que todos estavam com todo aquele cuidado sobre a mulher e ela dispensava qualquer um que ficasse no seu pé por isso – que quis ser acompanhada só por mim e por Lucas, pois secretamente traquinava em nos mostrar parte de um texto que ela trabalhava para o prefácio que faria, daquele livro que foi convidada para realizar, o tal prêmio que recebeu na homenagem do jornal. Mas papai apareceu, cortou todo o clima. Resolvemos ver depois, teríamos tempo.

Então no caminho de volta à copa, onde Flávia e Leila esperavam meu irmão com a caixinha de Uno, Lucas relatava sua relação com o jogo. Podíamos conversar a vontade, pois nossos outros familiares estavam em altos papos na sala, que abafava o nosso:

– Que regras adicionais?

– Você sabe, aquelas que a gente pode inventar de acordo com as cartas, sem necessariamente mexer com as reais regras do jogo. Por exemplo, eu sei que quando a carta número 9 aparece, todos devem colocar a mão sobre o bolo de cartas; a mão do último que chegar ao bolo deve comprar uma carta. O resto não tem um truque como esse, a não ser pelos símbolos que carregam. Então podemos encaixar umas novas e definir como isso deve interferir no jogo. Senão, determinamos prendas, como de comprar mais cartas, de acordo com as situações restritas.

– Ah, as situações restritas são boas estratégias.

– Que tal armar umas, hein?

Pois é, eu aceitei.

Mas só foi Lucas falar naquele seu jeitinho sedutor que uns levaram a brincadeira a sério. Quer dizer, uns não, só o Murilo. Leila riu porque bem devia saber do que era o plano do irmão, já Flávia se mostrou curiosa. Murilo, no entanto, foi bruto – e um tanto suspeito quando começou a fechar a camisa de botões que acobertava sua camiseta:

– Epa, que negócio é esse? Cadê o respeito?

Diante desse elemento surpresa, Lucas se recompôs sentando mais ereto e jogando as mãos ao ar, rendendo-se ao que quer que meu irmão cabeça suja havia pensado. Até parece que Lucas iria propor um strip-poker, digo, strip-uno, com sua irmã mais velha ali e toda nossa família disposta no cômodo ao lado, até parece...

– Eu JURO que não foi isso que eu quis dizer.

Tive que parar de embaralhar as cartas porque o facepalm era grande e preferi engolir uma gargalhada a chamar mais atenção que a “sem-noçãozisse” desse ser por quem tenho amor fraterno. Dispersamos um pouco nossas cadeiras para que ninguém roubasse de ninguém, menos ainda desconfiasse.

Para esclarecer o mal-entendido, tomei a vez:

– Não, Murilo, pode acreditar que não foi isso que ele quis dizer. E nem que isso deva envolver dinheiro, Flávia.

– Mas eu não disse nada.

– Ainda bem.

Tá, essa foi só pra descontrair.

Distribuí as cartas enquanto Leila e seu irmão acrescentavam as regras que desafiavam a todos. Não ditamos regras sobre as cartas numerais, aquela do número 9 já agitaria o bastante, porém, impomos proibições. Na verdade, expressões proibidas. Se alguém dissesse quaisquer expressões como “de quem é a vez?”, “e agora?”, “tua vez”, “vai” ou “pensa rápido”, teria que comprar cartas.

Adivinha quem comprou cartas em disparada nessas circunstâncias, perdido?

– Vocês fizeram de propósito!

Reclamou meu querido irmão dado um tempo, com 9 cartas em mãos. Boazinha como sou – e deixo claro que não foi efeito do bico dele – evitei usar uma carta que implicaria nele comprar mais cartas e joguei uma compatível. Sabia que era compatível porque algumas vezes ele foi descuidado na hora de se jogar ao centro da mesa para colocar a mão sobre o bolo de cartas que olhei que cores ele tinha – todas praticamente. Para disfarçar minha benfeitoria, só repliquei seu resmungão:

– Eu devia ter lembrado dessa expressão pra patentear nas frases proibidas.

Todos nós cometíamos faltas a toda hora, mas era meu irmão quem cometia mais que todos. Quanto mais ele se livrava das suas, mais ele acabava comprando, para nosso divertimento.

– Vocês querem é me deixar calado, tô vendo. Comprando meu silêncio... Vai. Merda.

Eu já não tinha riso para rir de toda vez que ele dizia “vai” – palavra proibida – seguido de um “porra” ou “merda”. Um coro da mesa saía com a palavra “compra”. Quase patenteamos esses pequenos palavrões, só ficaram como promessas para futuras partidas. E muito bem esperadas, papai havia dito que iria jogar na próxima, se tal partida que jogávamos não fosse infinita. Toda vez que o coro do “compra” seguia, ele gritava junto lá da sala.

Em muitas outras vezes me mantive nessa, de ter o cuidado de salvar meu irmão - eu, que sempre gostei de detonar ele nos jogos. Fui decente, mesmo que ele ainda tenha mais cartas que todo mundo. Não demorou muito para a situação ficar cada vez mais favorável para mim, gênio das estratégias – me acho.

Lucas, acumulando, começava um estratagema de nos enganar, percebi. Puxou assunto que deveria interessar a mim e Flá, uma proposta de passeio para o dia seguinte. Ele se aproveitava do fato de mantermos umas conversas em paralelo, que deviam complicar nossas concentrações. Então nos conta sobre seu trabalho, que iria comandar a festa no dia seguinte, era um dos dias de seu posto.

– Ah, e amanhã também tem o ensaio final dos grupos de dança, aqueles que eu disse que vão se apresentar. O treino é de tarde, a competição, à noite. Quem vai comigo?

De longe via meu irmão tentar olhar as cartas de Leila, todo desconfiado. Ali eu não confiava em ninguém, era um jogo, afinal. Aquele meu cuidado anterior com Murilo foi só um agradinho, pra tirar o seu da reta. Flávia, por outro lado, dá bola à tentativa de rasteira de Lucas. Me guardo passível, desentendida das reais pretensões desse moço:

– Bora lá, Mi? Adoro ver essas coisas.

– Pode ser. Quais são as músicas da competição?

– São só duas. Uma do LMFAO, Party Rock Anthem, grupo dos homens, e uma da Rihanna, Where Have You Been, grupo das mulheres.

– Uia… homens contra mulheres. Quem vai ser o juiz?

– Vai ser meu chefe. Tudo pra ele é uma boa propaganda. Então vocês vão comigo? Flávia? Milena? Murilo?

– Hum? Ah, sim, pode ser.

E com essa clara distração de meu irmão, ele solta a carta por mim tão esperada. Quase lhe joguei um beijo por agradecimento, tinha que ficar impassível aos olhos de todos. Um movimento mais e quem se ferra é Lucas, quem não gosta nadinha:

– Poxa, Flávia, te convido pra sair comigo e tu ainda me passa essa?

– Claro, com esse seu papo de competição de dança, não sei o que é verdade e o que é mentira, tive que responder à altura. Devolvi o que tinha que devolver.

Wow. Ela estava me enganando! A todos, na verdade. Com suas quatro cartas improvisa um leque e, com um mínimo cuidado para que ninguém as espiasse, se abana numa vanglória de piscar os olhinhos, maldosa. Boto fé nessa garota!

– Ok, ok, mereci. Mas voltando ao caso, é verdade a competição. Eu comentei mais cedo, lembram? Na hora do filme?

– Eu sei, estava só te zoando.

Até me virei para Flávia, que ria meio alucinada pela pegadinha que tinha feito. Jogou verde, colheu maduro. Murilo pensa que não vejo, mas ele tenta se aproveitar da conversa para mais uma vez dar uma espiada na carta dos outros. Acho que Leila está fingindo entregar os pontos dela a ele. Quem continua a falar é Lucas, com Flávia:

– E era verdade o que você disse sobre gostar desse tipo de apresentação?

– Talvez. Gosto das músicas.

– Você parece ter bom gosto. O que ouvido ultimamente?

Pelas opções que tínhamos, o jogo poderia acabar nunca; terminaria a noite e ninguém bateria. Acho que exageramos nas regras, pois realmente era um jogo de contínuos deslizes, por mais que nos prendêssemos a estratégias. Pra completar, Lucas estava discutindo música com Flávia, e eu já sabia onde isso ia dar.

– Kyo.

Ela respondeu simplesmente, sem muito pensar. Tratei de complementar pra me fazer enrolona também na conversa:

– É uma banda francesa de rock. Essa aí tá toda pautada no francês ultimamente.

– E consegui adeptos, você vê.

Ela praticamente joga a bola da conversa pra mim, que, verdade seja dita, eu também estava gostando da banda. Também né, com aquele cunhado dela falando francês pela casa – coisa mais linda – claro que fui conquistada. Não que eu fosse dizer isso ali, na mesa. Murilo acaba jogando uma carta qualquer, e Lucas, atencioso, investe na conversa:

– Hum. Sei de uma ou duas músicas de dance, house em francês. Essa banda é vocal feminino?

Flávia joga uma carta combinada à de meu irmão, a que eu precisava. Quando se chega ao ponto de ficar com apenas uma carta, temos gritar “Uno!” ou perdemos a vez e ainda somos obrigados a comprar mais uma. Assim na mesma hora grito meu destino e quase o fim da “partida infinita”:

– UNO!

Resmungos à parte, escondo minha carta à mesa. A conversa continua.

– Não, é masculino. As que você conhece é de vocal feminino?

– Aham. Vou te passar uma música chamada Joli Garçon. Você sabe, porque sou um.

E passou a mão livre no cabelo todo trabalhado no charme. Joga um olhar 43, piscadelas sedutoras e um sorriso arrasador... Digo, arrasador no sentido de causar muita gargalhada, primeiramente de sua irmã. Ele é lindo, não nego – cof cof finjo que não reparo cof cof – sua pele é branca, como se não pegasse sol faz um bom tempo, o cabelo era bem negro e arrepiado num bom estilo, tinha olhos escuros, meio sérios, mas uma aura que se quebrava por seu jeito malandrão, engraçado. Sem falar no bom partido que eu sei que ele é, mas... como uma vez eu pensei sobre Eric quando o revi naquele dia no salão de dança, algumas coisas já não me fazem efeito enquanto outra pessoa o faz naturalmente.

Voltei a minha realidade quando Murilo questionou:

– O que é “Joli Garçon”?

Flávia, quando consegue respirar por ter rido, responde antes que o “charmoso” respondesse por ela.

– Garoto bonito.

Ainda era vez de Murilo. Ele joga mais uma carta numeral para meu agrado. E comenta na conversa, o que pouco ele andava fazendo:

– É, esse aí se superestimou mesmo. EU sou o mais bonito, claro.

Flávia foi retrucar, mas antes que eu pudesse ouvir o que dissera, ela jogou uma carta amarela de numeral para combinar com a jogada de meu irmão, era a que necessitava urgentemente para bater. Bati.

– BATI!

– NÃAAAAAAAO!

O coro se deu pelos irmãos Leila e Lucas. Tão alto que os pais todos interromperam suas conversas para verificar o meu fuzuê de comemoração na copa. Mamãe logo começou os elogios, que eu, linda, recebia sem medidas, sorrindo o sorriso mais aberto que eu conseguia.

– Minha filha, parabéns. Mamãe tem orgulho dessa sua cabecinha.

– Valeu, mãe.

– Eu também, filha. Mas quero ver se consegue ganhar comigo no jogo.

Papai todo esperançoso já ia sentar-se e puxar o jogo de cartas para embaralhar. Antes que ao menos puxasse a cadeira, eu o detive. Era hora de encerrar o dia.

– Ah, não, pai. Esse desafio fica pra hoje não.

– Mas eu esperei tanto. Sabe quanto tempo vocês ficaram aí? Uma hora.

– Ó os culpados aí, só deu enrolão o jogo todo, pai.

Apontei para todos que ainda estavam na mesa que, quando um não fingia inocência, tirava o seu da reta dizendo que era o outro. Aham. O burburinho de “foi ele”, “foi ela”, “não sei do que vocês estão falando”, “não olha pra mim” poderia alongar bastante a conversa, então chequei o relógio da parede e vi que iria dar meia-noite. Redireciono meu indicador para mostrar a papai:

– E o senhor ainda quer jogar pra levantar cedo amanhã, né?

Não tinha como negar a Murilo era realmente seu filho, vide o clássico bico de frustração que lhe tomou a face quando viu que não teria chances. Era fofo e saudoso. Mesmo morando longe dele, sentia-me perto quando meu irmão dava a graça de apresentar seu bico bem semelhante. Fazia um tempo que eu não via essa expressão em meu pai, então não resisti em lhe abraçar – mas que fique claro que eu não estava cedendo ao bico dele!

– Ai, pai, assim o senhor só me mostra quanta saudade senti do senhor...

– Ô, filha...

Beijo de pai na testa é simplesmente as palavras que eles não conseguem dizer, porém, preocupados com o que pode considerar uma falta, eles se firmam em atitudes, singelas, despretensiosas. De qualquer forma, curei aquele seu bico chateado, ele logo amoleceu. Já mamãe...

– “Ô, filha”, digo eu! Para seu pai você diz isso, mas pra mim ninguém fala!

Não deu cinco segundos para Murilo se atirar nela e enchê-la de beijos e cócegas, tantas que ela ria aos gritos pedindo que parasse. Quando dei por conta, Leila e Lucas estavam de pé ao lado de seus pais também, meio abraçados rindo da situação. Porque dona Helena adora um drama. E claro, para que Flávia não se sentisse uma ave fora do ninho, meu avô passou seu braço pelos ombros de minha amiga, ainda sentada à mesa.

Nos despedimos de todos dali, levamos à porta. Eles só teriam que atravessar a rua praticamente, só não o pai, porque não morava com eles desde o divórcio. Poucos são os dias do ano que estão juntos e o Natal era um deles. Para pais separados até que eles são ótimos amigos, para o bem de Leila e Lucas, mesmo crescidos.

Com o último tchau, fecho a porta e passo a chave. Dou leves tapinhas no ombro de papai, numa promessa de jogar em breve como ele queria. Vovô deu boa noite, se retirava. Flávia foi logo em seguida, alegando sono como sempre. Já eu... fico ali, no pé da porta só observando, guardando aquele momento pra mim, de mamãe empurrando as cadeiras da mesa da copa para que ficassem todas alinhadas, papai separando papeladas que levaria para a loja no dia seguinte e meu irmão sendo ele mesmo, carinhoso para com nossa mãe enquanto arrumava as cartas do jogo na respectiva caixinha. Amava observá-los assim.

Rio quando mamãe propositalmente topa em Murilo, enfatizar que ela era deixada de lado era sua tática favorita para que nos jogássemos a seus pés e confessássemos nosso amor incondicional. Essa dona Helena não tinha jeito, é daquelas que precisa ser lembrada disso todos os dias. E provavelmente é lembrada a cada manhã por papai, mas agora perto de suas crias, ela tinha que nos ouvir falar.

– Vocês me enrolaram e não disseram! Mas para o pai de vocês...

– Foi a senhora quem disse para eu parar... eu parei.

– Eu disse para parar as cócegas.

Lá estava ela de pose, de novo, numa falsa indignação.

– Mãe, a senhora quer mesmo ouvir?

– Claro, meu filho.

O que a gente não faz por um sorriso dessa mulher...

– Tá, tá bom... Mãe, nosso amor é do tamanho do universo.

Pequena e satisfeita, mamãe se aninha naquela peste a quem chamo de irmão, dá-lhe um beijo na testa e não deixa o recinto sem dizer o mesmo para nós. Adorando essas coisas, ela não conseguia esconder a felicidade que carregava ao peito por nos ver tão perto dela novamente, nem poderia, não seria minha mãe se fosse o caso.

Mamãe se foi então subindo as escadas com meu pai, sorrindo de algo que baixinho comentaram entre si. Só faltava mais uma pessoa para subir. O dia foi muito muito bom, infelizmente acabava. Com ele, iria minha trégua. As 24h de bônus se esvaíram tão rapidamente que não tinha perspectiva para o dia que nasceria dali umas horas. Mas uma coisa eu faria antes que tudo acabasse.

– Boa noite, Mi.

Não respondi. Não porque estava me mantendo longe, mas porque se falasse, se respondesse o mesmo, não me pareceu palavras justas. Ele ia subir as escadas, não necessariamente esperava algo de mim, então fiz questão de deixá-lo surpreso. Toco-lhe no braço antes que suba o primeiro degrau e deixei um beijo breve em sua bochecha. Era isso que eu queria demonstrar, atitude singela e despretensiosa, como foi com nosso pai.

Internamente o agradeci. Sabia lá no fundo que da mesma forma que eu havia facilitado em alguns momentos para ele no jogo, Murilo havia feito o mesmo por mim, porque era eu, e não era hora de nos destruirmos numa partida. Eu sabia, ele sabia.

Ele só não sabia que isso terminaria ali, naquele segundo para ser mais exata.

E eu não sabia o que poderia vir da suspensa de uma trégua.


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Notas finais do capítulo

Btw, o link de Joli Garçon (a melhor versão): http://www.youtube.com/watch?v=Tf9yxZdHous
Ela gruda, mas é ótima.

Sobre o próximo só digo uma coisa: surpresas.
Hmmmmmmmmm.



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