A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 29
Acima de tudo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/38928/chapter/29

Belthor sabia que não haveria nada para ser comemorado naquele dia.

Sabrina e Dart voltaram logo pela manhã. A sensação dos guerreiros ao receberem a notícia variou bastante. Belthor quis matar Dart imediatamente. Não aceitava, não queria, não permitia e condenava esse namoro. Era uma relação condenada, era claro. Simplesmente não combinavam. Ele, com mais de um metro e noventa e ela com seus humildes um e sessenta.

Íris não concordava, mas também não dizia nada. Claramente não tinha gostado e sentia pena por Sabrina confiar tanto que daria certo.

Já para Mia, a notícia soou como um telefonema cheio de boas notícias bem na hora da pior e mais importante reportagem do telejornal.

Essa reportagem era a luta de Nicka e Mirian contra Nely e Nacknar.

Seus corações batiam acelerados e apertados. O medo era grande, mas a falsa coragem, que obrigaram suas mentes a produzir causava certo conforto.

Sabrina namorando Dart? Que horas é a luta mesmo?

Hebel parecia ainda mais apreensivo que todos os demais. Nicka lutaria e ele não sabia que estranha sensação era aquela que lhe afligia o peito como uma faca congelada.

Saíram da confortável casa em direção a luta que marcaria a vida de cada um dos humanos.

Nicka e Mirian só queriam ter a chance de voltar a pisar naquela casa.

O medo que sentiam era tão grande que preferiam não dizer nada. O guardavam cada uma para si. Não sabiam, não tinham a menor idéia de como matar quem já está morto. E nem conversavam sobre isso. Na verdade não tinham aberto a boca desde o início do dia. A manhã tinha cheiro de orvalho. As cores eram mais vivas que o normal. Já estavam na Ilha Eid, mas a vontade era de voltar. De apreciar a vida um pouco mais. De aproveitar. A sensação de que a morte andava no encalço de suas sombras às faziam tremer dos pés á cabeça. Aqueles que iriam enfrentar mataram seus adversários com golpes que elas desconheciam. E mesmo o mais banal dos chutes, o mais simples dos socos que deram e foram suficientes para matar seus adversários, se por Nicka e Mirian tivessem sido dados, nem arranhões teriam feito a lutadores do nível dos inimigos dos dois mortos vivos.

A verdade é que entravam para sobreviver, e não para ganhar.

Finalmente chegaram ao estádio. Desejaram não ter chegado.

Hebel puxou Nicka pelo braço e a olhou nos olhos.

- Eu ainda quero te provar que falava sério quando disse que te amava. Prometa que vai dar tudo de si.

Nicka afirmou com a cabeça com os olhos enchendo-se de lágrimas. Queria abraçá-lo e dizer que sentia o mesmo. Mas algo a impediu. Uma bola parecia querer subir por sua garganta quanto mais a vontade de chorar era impedida.

Se pudesse desejar alguma coisa, desejaria que Flértis estivesse ali. Toda sua vida ao lado dele tinha se acabado? Não o veria mais? Queria poder agradecer por tudo que tinha feito, ter mais uma chance de dizer que o amava como um pai. Tantas risadas deram juntos, tantas vezes em que se ajudaram, em que aprendeu coisas com ele. Tantas vezes foi feliz ao lado dele…

Mirian olhou para Sabrina. Sua amiga há tanto tempo. Era engraçado que tivessem que encarar o fato de que corriam risco sério de vida. Adolescentes não morrem! Colegas da classe não morrem. Jamais. Isso era tão fora de questão que encarar essa realidade era como se sentirem adultas.

- Conseguiu um namorado de primeira linha heim? – elogiou Mirian, escondendo sem o menor sucesso toda sua apreensão.

Sabrina a abraçou imediatamente e as duas choraram juntas até a hora de Mirian entrar no estádio. Por que aquilo parecia uma despedida?

Iam todos entrando juntos, quando Belthor parou os demais guerreiros. Os outros não podiam nem queria ouvir a conversa.

- Sorah não está aqui. – relatou Belthor apreensivo.

- Isso dá pra notar. Estou com medo. Sem ela pra evitar o pior… - temeu Íris.

- Será como Yume deseja. Mas e quanto à…? – conformou-se Mia.

- Deixe-a comigo. – tranqüilizou Belthor.

As duas guerreiras partiram para o estádio e o único homem dentre os guerreiros chamou por Sabrina, que andava de mãos dadas com Dart.

- Você precisa ser forte independente do que for acontecer aqui. – avisou Belthor pesaroso – Não sei o resultado dessa luta, antes que me pergunte. Mas você precisa prometer que não importa o que acontecer, vai continuar sendo uma guardiã. Vai continuar lutando. Vai seguir em frente. Não irá chorar. E mais do que continuar forte, se tornará ainda mais poderosa. Estará preparada para tudo.

Para Sabrina e para qualquer um que ouvisse, soava como uma declaração de que uma das duas morreria.

- Elas vão morrer?! O que quer dizer com isso? Por que está me dizendo isso!?

- Eu não sei o que vai acontecer. Só estou dizendo que para a pior das hipóteses, você precisa ser forte. Prometa isso. Prometa que não desistirá de nada.

- Eu prometo. Mas não queria ter de prometer. Não hoje.

 

                                                 ***

 

Os monstros faziam um barulho ensurdecedor. Pareciam comemorar suas vidas. Na visão de Mirian e Nicka, riam delas, pois estavam seguros de que viveriam o dia seguinte. Privilégio que não se estendia às duas.

Suas cabeças doíam. O barulho todo só as deixava mais nervosas.

Nely e Nacknar já estavam do outro lado. Nely e sua figura de um vencedor. Apenas sua imagem já parecia imortal, impossível de se derrotar. Seu rosto parecia ser desenhado para pertencer a alguém que tinha o mundo nas mãos. E qualquer um que tentasse tirar isso dele, seria morto impiedosamente. Qualquer um. Afinal, parecia que ninguém era capaz de encostar um único dedo nele.

Já Nacknar era um criado demasiado forte. Expressão corajosa. Tentava amedrontar. E por seu poder todo, conseguia. Sua força não se equiparava à de Nely, mas ainda sim era muito maior que a das meninas juntas. E elas sabiam disso. E essa era a pior parte.

Tiveram vontade de implorara à juíza que não desse o sinal para se aproximarem.

Nacknar foi o primeiro a subir no tatame. Nicka virou-se para Mirian, com os olhos vermelhos.

- Pode deixar que eu me viro com Nely.

Mirian quis recusar. Mas tinha perdido a última luta. Não podia dar palpites.

Subiu no tatame temerosa. Quis avançar no tempo e ver logo de uma vez se tinha sobrevivido. Sabia que Nacknar só costumava parar quando o adversário estivesse morto.

Ele ainda usava prepotentemente a veste de guerreiro de Yume. Mirian teve náuseas ao sentir o cheiro de cadáver. Sabia que por debaixo do tecido negro uma enorme cicatriz repleta de larvas, com carne em decomposição se escondia.

Nacknar sorria, sem o menor temor. Era apenas mais uma luta, é claro. Qual a diferença?

O sinal foi dado. A luta teve início.

- Esperei muito tempo para revê-la. Nosso último encontro foi muito curto, não é?

- Desgraçado.

Ele riu como se tivesse de sentir pena dela. Estava com os dias contados e ainda assim ainda o ofende.

- Se pedir muito eu posso pensar em te matar de forma rápida e indolor. O que acha? Mas é claro que eu posso te deixar viver. Se me disser por que a Lágrima não se junta.

Daquela vez era diferente. Ela sabia. Sabia que faltava a alma que estava em Íris para unir as demais. Mas não podia dizer. Não podia entregá-la dessa forma.

- Eu não sei. E se soubesse não diria.

- Resposta errada.

Ele mal terminou de falar e acertou um soco em Mirian. Não foi o suficiente para mandá-la para muito longe. Mas ele logo correu para emendar outro.

Não a acertou.

Mirian era uma forma humanóide de água. O punho de Nacknar atravessou sua cabeça como se a mesma não existisse.

- É um belo truque. Mas esta luta não vai durar muito tempo. Não pode durar.

Mirian voltou à forma humana e o encarou. Ainda ria para ela. Não suportava a forma com que ele a olhava, como se fosse apenas um empecilho.

- Ainda vou matá-lo! – avisou Mirian.

- Quem sabe numa próxima encarnação. Se bem que se eu não morrer não tem como haver outra reencarnação não é? Sabe, esse seu truque da água é muito bom, mas… é apenas uma defesa. Seu golpe fica muito fraco quando está naquela forma.

- Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

- Essa foi boa. Não conhecia ainda. Mas eu discordo. Bom, chega disso tudo. Tenho ordens para matá-la imediatamente, se acaso não dissesse como unir a Lágrima. E como não quer cooperar…

Nacknar correu mais rápido que qualquer olho humano poderia ver. Quando Mirian notou, já estava sendo erguida pelo pescoço. A perguntar-se de onde veio o ataque.

Nacknar sorriu antes de realizar o ataque que realmente desejava dar. O corpo de Mirian parecia estar sendo invadido por uma enorme corrente elétrica. Suas forças a abandonavam. Sua face ia perdendo a cor. Estava cada vez mais pálida. Sentia sua energia elemental a abandonando. A espada que recebera e que sempre deixava em seu quarto, hoje, não serviria de nada. Até serviria se tivesse se lembrado a tempo que a espada, mesmo em forma de água, é dura e pode perfeitamente cortar. Um erro fatal.

Quando achou que iria morrer, Nacknar a largou no chão. Mal tinha forças para piscar os olhos.

- Achou que eu te mataria não é? Essa habilidade não me permite matar. Eu drenei toda sua energia. Não há como se transformar em água agora. – ele riu com suas próprias palavras – Ora, sejamos francos, não há nem como se mexer! Tudo que tem agora é um pequeno resto de energia vital. Só o suficiente para mantê-la viva. Não gaste muito respirando, ela pode acabar. E eu quero te matar com minhas próprias mãos.

Nacknar olhou para a face pálida e quase inconsciente de Mirian. Aproximou-se de sua cabeça. Seu corpo estava ali jogado de qualquer forma. Esparramado sobre o tatame. As veias em seu rosto apareciam nitidamente.

Seus pensamentos estavam lentos. Sentiu como se estivesse drogada. Não se importava com o mundo. Pra que se importar? Tudo vai acabar agora mesmo… sem forças nem para lamentar o rápido e triste fim.

O morto vivo riu uma última vez e preparou o que seria um fortíssimo chute direto contra o crânio de Mirian. Seus últimos segundos viva?

O medo a moveu. Nada mais. Apenas o medo e a vontade de viver a moveram a pressionar sua espada com todo o resto de energia que lhe sobrou.

Sentiu uma dor aguda na têmpora. O resto sumiu. Fora preenchida por uma imensa, silenciosa e infinita escuridão.

Os espectadores, por sua vez, viram bem o que aconteceu.

Mirian por uma incrível sorte, lembrara-se de que no dia em que pegou sua espada elemental, Dart mencionara que estas tinham uma energia própria. Tudo que fez foi sugar essa força o suficiente para transformar-se em água a tempo de que sua cabeça não fosse estourada em mil pedaços pelo chute de Nacknar, apesar não ter sido capaz de evitar que fosse atingida. Estava desmaiada e quase sem forças para respirar. Mas sem risco de vida.

Nicka viu que Nacknar irritara-se por não conseguir matá-la e claramente não sabia de onde ela tirara forças. Ia acertá-la outra vez.

- Juíza! Mirian já está inconsciente, já pode iniciar a contagem!

Meio tonta com tudo que estava acontecendo, a juíza correu até lá e o impediu de atacar para fazer a contagem. Mirian não se levantou. Fim da luta.

Início da guerra.

Era a vez de Nicka enfrentar Nely.

Hebel desceu das arquibancadas com a desculpa de ir cuidar de Mirian, mas todos sabiam que ia ficar mais próximo de Nicka.

A juíza chamou os dois ao centro do tatame. Nely media quase dois metros de músculo. A pele meio azulada era devido ao fato de que já estava morto. O fedor era parecido ao de Nacknar. Tinha cabelos verde-musgo. Não sorria e dava a impressão de ser inteligente. A expressão era de alguém que está sempre meditando sobre o próximo passo.

Ele olhava para baixo para olhar nos olhos de Nicka. Provavelmente já sabia sua energia e não parecia muito ansioso. Queria acabar com tudo logo de uma vez.

A juíza deu o sinal, mas nenhum dos dois se moveu. Os monstros começaram a vaiar.

- Diga logo se vai ou não contar por que a Lágrima não se junta.

- É claro que não!

- Nacknar gosta de enrolar um pouco com suas vítimas. – comentou, andando lentamente na direção de Nicka, que recuava – Eu prefiro acabar com tudo de uma só vez. Encurralando a presa. Espero que já tenha dado adeus aos seus amigos.

Nicka mal tinha percebido, mas já estava na ponta do tatame, tendo de se equilibrar para não cair.

- Como vê, as criaturas têm medo de mim. – informou como se nada estivesse acontecendo, em tom apático.

Nicka fechou o punho e acertou um soco contra o estômago de Nely, dando uma cambalhota até parar atrás dele. O ataque não surtiu efeito nenhum. Mas essa não era a intenção.

- Deve ter assistido minha última luta. Acabei de depositar uma semente em você. Ela vai crescer conforme eu queira. Até te explodir, seu desgraçado!

Nely não riu. Mas também não ficou muito preocupado. Fez cara de decepção e tédio. Balançou a cabeça negativamente e a olhou nos olhos.

- E essa é a parte em que eu fico amedrontado. De acordo com você.

Nicka o observada incrédula. A esta altura, a dor em seu estômago deveria ser insuportável.

O que Nely fez em seguida forçou todos os espectadores e inclusive à juíza a esticar o pescoço. Não podia ser verdade o que viam. Simplesmente impossível que um ser humano comum fizesse aquilo. Mas ele não era comum.

Como se não fosse nele mesmo, enfiou a mão no estômago, rasgando a carne do peito, e foi atravessando até retirar uma planta que crescia vagarosa e continuamente. Ao entrar em contato com o mundo exterior, a planta fez um chiado e murchou imediatamente.

- Eu estou morto, menina. Você não pode me matar. Mas eu posso matá-la. Aliás, esse é o maior defeito da vida. A morte.

Nely esticou o braço na direção de Nicka. Apontou o dedo indicador. Uma pequena bola de energia reluzente formou-se ali na ponta. Cresceu apenas alguns centímetros até ficar do tamanho de uma bola de sinuca. Podia não parecer muito, mas balas são menores e mesmo assim capazes de matar.

Ele andou em sua direção, novamente, sempre com a energia apontada diretamente para a testa da garota.

- Eu prefiro não correr. Não usar de velocidade. Assim posso ouvir o coração de minhas vítimas tocando uma sonora marcha fúnebre ao me ver cada vez mais perto. Claro que elas não podem ouvir. Tudo que ouvem é a própria respiração misturada a gemidos de agonia. As pernas travam – nesse momento Nicka caíra e começara a se arrastar – Não podem pedir piedade pois até a fala é difícil. E então… elas morrem…

O coração de Hebel bateu mais rápido, mais forte. Viu Nicka levantar-se e correr de Nely. Ele deu um curto sorriso. Seu próximo gesto foi instintivo. Partiu de onde estava e correu na direção de Nicka. Não havia mais som. Tudo parecia um filme mudo em câmera lenta. Seus passos soavam insuficientes. Seu coração era a única coisa que podia escutar, fazendo um eco em sua cabeça. Quando a energia foi lançada, seu corpo foi jogado o mais longe que a velocidade em que estava lhe permitia.

Os dois corpos caíram num único baque seco contra o chão. Dividindo a mesma poça de sangue.

A energia não só atravessou o corpo de Nicka como o de Hebel também, que saltara em sua frente na intenção de evitar sua morte. Em vão.

- Nicka…

- Hebel… não cumpri minha promessa…

- Cumpriu sim. Essa é a prova… de que te amo…

- Provar-lhe-ei meu amor quando nos encontrarmos na próxima vida.

- Estarei esperando.

A cabeça do garoto repousou com um sorriso. Sua face já estava pálida. Nicka soltou uma lágrima que desceu em forma de sangue. Fechou os olhos, pesarosa.

Nunca mais os abriria.

 

Sabrina quase caiu na descida das arquibancadas. Mirian ainda estava pálida e inconsciente. Belthor passou por ela e a levou para junto dos dois corpos. Nenhum dos guerreiros chorou. Dart apenas tomou uma expressão de incredulidade e tristeza, mas não derramou uma única lágrima. Apenas Sabrina estava lá para lamentar. Apenas ela abraçara os dois corpos, sujando-se do sangue. As cabeças pendiam para trás, moles. As peles perderam a cor. Não se mexiam. Não emitiam som. Não respiravam. Seus corações não batiam. Não riam. Não choravam. Não sentiam dor. Não sabiam o tamanho do sofrimento que deixaram ao partirem.

Estavam mortos. E nada poderia mudar o fato.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Lágrima Escarlate" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.