Cold Sun-Faberry escrita por jeanfeelings


Capítulo 5
Most nights I hardly sleep


Notas iniciais do capítulo

Oi pessoal. Fiquei um tempo fora, mas é porque a faculdade começou e já está tentando matar seus pobres alunos com horários diurnos e noturnos. Estou sofrendo, mas tudo bem, só devo demorar um pouco mais para postar, então por favor, paciência. Vai dar tudo certo.



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Um nevoeiro denso caiu sobre as areias brancas da floresta. Quinn dobrou a esquina de árvores com o fôlego escasso e uma comichão de medo assolando o coração pulsante.

Não sabia o que esperar.

Correu em direção ao norte com o martelo ressonando no bolso gordo e uma chuva de pequenos flocos embrenhando seus cabelos de sol. Ouviu vozes abafadas ao longe quando diminuiu o ritmo e caminhou aos poucos.

Escondeu-se atrás de uma árvore.

Esperou.

A cena que se desenrolava a sua frente era muito surreal e nada acalentadora. Nas margens do rio Main um soldado de cabelos ralos tinha um revólver numa mão e correntes amarradas a um prisioneiro na outra.

Um Judeu idoso.

                                                                                     

“O que me pediu ajuda.” Quinn lembrou.

Era o homem moldado por ossos que fugiu no desfile. Agora estava sendo torturado por um oficial delinquente. Ela vislumbrou o sofrimento dele em silêncio, até que...

“Essa não.” Sussurrou.

Rachel apareceu por trás do soldado a passos surdos e investiu uma vara distorcida contra suas costelas. Ele caiu de lado berrando em agonia enquanto ela repetia o ato por incontáveis vezes.

Paulada.

“Não faça isso.” Quinn saiu do esconderijo e correu até os judeus.

Novamente.

“Está bom.” Gritou.

Para garantir.

“Ele está sangrando, sua maluca.” A alemã arrancou o galho das mãos dela e jogou-o para o lado. “O que você tem na cabeça?”

“Acho que exagerei um pouco!” Deu de ombros.

“Acho que você o matou.” Quinn rebateu.

Checou a veia no pescoço do homem e expirou fundo quando sentiu um pulo embaixo dos dedos.

Vida líquida.

“Obrigado!” Um som rouco chegou até elas. O idoso ajoelhou em lágrimas. Quinn desviou o olhar frio e Rachel aproximou-se para ajudá-lo a ficar de pé. Questionou o destino do velho e ele lhe deu uma breve explicação.

Resumida em uma palavra.

Schwandorf.

Rachel sentiu um arrepio crescer ao ouvir o nome da cidade.

“Boa sorte.”

Ele partiu com as correntes dançantes.

As meninas se entreolharam.

“Estranho você ter vindo.” Rachel sibilou com um meio sorriso.

“Não comece.”

 “Estava preocupada comigo?”

“Claro.” Quinn fez uma cara de deboche. “Não conseguiria dormir se alguma coisa ruim acontecesse a você.” Trancou a expressão a sete chaves. “Vamos embora.”

Nesse momento um tiro passou cambaleando pelas duas. Raspou o pescoço de Rachel e sumiu pela imensidão azul. O soldado recuperou a consciência, marchando até ambas com as botas esmagando a neve abaulada.

Apontou a arma para a testa de Quinn e estacou.

“Eu não conheço você?” O homem questionou.

A judia aproveitou a deixa e chutou neve espalmando pó branco nos olhos inadvertidos dele. Ele cambaleou para trás e prendeu o pé numa vala, caindo e disparando as cegas.

Rachel correu até a arma, mas foi puxada pelo calcanhar.

O soldado ergueu-a no chão e levantou um chicote pesado contra seu rosto. Esticou o objeto no ar e fez força para levá-lo direto no queixo da menina, mas a escuridão tomou suas forças fazendo com que caísse de lado para não acordar de novo.

Quinn ergueu o martelo sangrento.

“Ele é um dos tenentes que trabalha para o meu pai.”

Pegou o rádio no bolso dele e sussurrou sua posição para quem estivesse na outra linha poder oferecer socorro. Jogou o aparelho ao lado e olhou de esguelha para Rachel.

“Nós temos que sair daqui agora.”

-oooooooooo-

Correram desenfreadas pela densa floresta. Quinn tinha os pulmões vazios e gritantes, mas não podia ser dar ao luxo de parar. Vislumbrou uma nuvem nebulosa embaçando o caminho adiante e neve encobrindo as pegadas que deixavam.

O casebre apontou trôpego sobre o pequeno riacho.

“Acha que o soldado pode contar o que aconteceu para o seu pai?” Rachel questionou entre um fôlego e outro. “Delatar-nos?”

“Não sei.” Apoiou-se sobre os joelhos.

Um raio colidiu nos céus da tarde que arrumava suas malas para partir. Quinn entrou na casa e guardou suas coisas, rezando silenciosamente para que o homem não se lembrasse do ocorrido.

Ou pelo menos dela.

Observou a judia pelo canto do olho, ela estava agarrada a uma gaze umedecida com álcool espalhando o líquido fugaz pelo pescoço tenso. Alguns gemidos traiçoeiros lhe escaparam entre os lábios serrados.

“Não parece doer tanto nos filmes.”

A bala que a lambeu de raspão havia aberto uma pequena fenda abaixo do lóbulo da orelha.

Tiros e Judeus.

Coisas com as quais não sabia lidar.

A adrenalina boa que energizou seu corpo impedindo que caísse em um ataque de nervos havia sumido. Todo o desespero da cena passada foi convertido em energia para que aguentasse fugir, mas agora...

...estava sem uma tomada para recarregar a bateria.

Caiu de lado quando o teto girou e fechou os olhos por alguns segundos. A voz de Rachel ajoelhou à sua direita tentando reanimá-la.

“Quinn.” Sibilou. Nada aconteceu. Ela continuava no chão a mercê de uma falta de ar cada vez mais sufocante. Tentou novamente. “Quinn, o que houve?”. Nada. Rachel inclinou-se e tentou uma abordagem mais concreta.

“And anytime you feel the pain

Hey, Jude, refrain

Don't carry the world upon your shoulders.”

            Olhos avelã a encararam, estupefata.

“Conhece essa música?” Rachel prosseguiu vendo que estava dando certo.

“Os Beatles.” Revelou que não só sabia o nome da música como também da banda. “Não sabia que você falava inglês.”

O ritmo cardíaco da alemã começou a amenizar.

“Minha mãe me ensinou um pouco.” Sorriu sentando mais próxima. “Eu sempre sonhei em mudar para a América. Porque lá há algo que infelizmente não temos.” Então seus olhos chocolate ficaram enormes de tanto brilho. “Broadway.”

Isso enfatizou uma pergunta curiosa no cérebro da loira.

“Onde estão seus pais?”

O sorriso no rosto de Rachel morreu.

“Nós acabamos nos perdendo uns dos outros.” Revelou coçando atrás da nuca. “Mas eu sei que estão bem, rezo por eles todas as noites.”

Quinn sentiu que fora um pouco longe demais e mudou de assunto.

“Eu adoro essa música.” Sibilou indiferente.

“Coincidências.” Piscou.

Quinn revirou os olhos.

Parecia uma interação entre amigas.

Coisa que sabia estarem muito longe de ser.

“Preciso ir buscar minha irmã na escola.” Sussurrou levantando e espanando o pó do chão para longe das vestes.

“Desculpe dizer.” Rachel segurava a maçaneta da porta com os lábios ligeiramente envergados. “Mas acho que você não vai a lugar algum.”

Uma tempestade de neve embrulhada por raios cantava no exterior do casebre.

-oooooooooo-

A lona que prendia o teto decrépito do casebre balançou de um lado para outro com extrema violência. Rachel correu para prendê-la melhor com um parafuso longo, grampeou-a na parede impedindo sua fuga.

Caiu de lado com suor empapando a testa.

Por pouco não ficara sem teto.

“Eu preciso ir buscá-la.” Quinn sussurrou bagunçando os cabelos. “Ela não pode ficar sozinha.”

“Não há ninguém na escola que possa tomar conta dela?”

Emma.

Ela sabia que a enfermeira nunca permitiria que Brittany ou qualquer outra criança ficasse desabrigada em tempos como aqueles, muito menos que saíssem para brincar em uma tempestade.

“Vou esperar o temporal amenizar e depois vou encontrá-la.”

Foi uma promessa.

Que teve que ser quebrada.

A tempestade não deu trégua para ninguém naquela noite invernal. Desceu sobre casas e arrancou árvores das raízes. Talvez o homem seja perspicaz e traiçoeiro, mas nunca estará a altura de uma natureza descontente.

Uma arma de fogo é uma fagulha inofensiva perto de um furacão.

Rachel deitou em sua cama e cobriu as pernas nuas observando Quinn sentada no sofá ao lado. O silêncio começou a ficar tedioso e ela resolveu espantá-lo.

“A quem você se referia?”

Quinn trocou as sobrancelhas em confusão.

“Sobre?”

“Mais cedo, antes dos tiros...” Explicou se encolhendo na cama gasta. “De quem falava quando se referiu a um pobre e um rico?”

A alemã trocou os joelhos e sentou-se de frente para a lareira.

“Lembra quando foi me ajudar no dia do bombardeio?” Rachel assentiu. “Aquela menina que salvamos, Marley, é podre de rica e ela trata a menina humilde que a estava ajudando, Kitty, como se fosse lixo. Sempre fica no encalço dela, humilhando-a de todas as formas possíveis.” Bufou descontente. “Não é justo.”

A judia ouviu tudo e lhe deu um meio sorriso. Quinn sentiu as bochechas esquentarem e ficarem manchadas por uma comichão rosa. Girou os olhos para o chão, fugindo daquela sensação estranha.

“Talvez...” Rachel sibilou um pensamento alto. “Ela não saiba se expressar perto dessa menina.”

“Como assim?”

“Bem.” Prosseguiu escolhendo as palavras com cautela. “Quando eu tinha oito anos um garotinho gorducho chamado Collins vivia puxando minhas tranças na escola. Sempre que me via passar fazia uma piada maldosa ou ria com os amigos das roupas que eu estava usando.” Rachel parou para refletir. “Se bem que aqueles suéteres de bichinho...” Estremeceu com a lembrança.

“Suéteres de quê?”

“Continuando.” Revirou os olhos para a zombaria da outra. Toda criança tem sua época negra. “Um dia ele estava sozinho no pátio, brincando com a bola, uma determinada hora chutou-a com tanta força que ela veio parar no meu colo. Levantei, achando que tinha sido de propósito e a joguei com fúria no nariz dele.”

Quinn arregalou os olhos.

“Ele não se feriu, mas veio na minha direção, me abraçou, em seguida, simplesmente fechou os olhos e me beijou.”

 “Deve ter sido horrível.” Quinn completou alargando um sorriso que não lembrava de dar à anos. Até que entendeu o ponto da judia e o apagou de imediato. “Espera um pouco... Está querendo me dizer que Marley trata Kitty com aspereza porque gosta dela e não sabe demonstrar?”

“É uma possibilidade.”

“Que só existe na sua imaginação.” Retrucou carrancuda. “Nunca olhei para a Rose e a vi qualquer sinal de interesse bondoso com relação a mais ninguém que não fosse ela.”

“Talvez você esteja olhando, mas não esteja vendo.”

“Qual a diferença?”

Na vida existem momentos. Todos os segundos são grampeados por um instante de paz ou revolta, mas muitas vezes estamos tão presos a nossas próprias opiniões que ficamos cegos diante de uma verdade que não convém para a nossa razão.

 E o detalhe se perde.

Sendo o mais importe.

“Um dia você vai descobrir.” Dobrou os lábios num sorriso calmo e pensativo. “E, convenhamos...Por que alguém correria atrás de uma pessoa que odeia?”

A alemã deu de ombros e virou a cabeça para o teto. Não podia ser verdade, mas era inegável que fazia sentido. Pessoas normais fogem do que as afrontam, mas nunca houve resistência quando o assunto era Kitty ou Marley.

De nenhuma das duas.

“Está tarde.” Rachel observou. “Melhor irmos dormir.”

Quinn deu um pulo do sofá e ficou de frente para ela.

Já havia passado dos limites.

“Não vou ficar.”

“Está caindo um temporal.” Contrariou-a. “Melhor você passar a noite aqui e ir embora amanhã.”

Mas a outra não lhe deu ouvidos e se encaminhou para a porta.

Tocou a maçaneta e girou-a.

Nada aconteceu.

“Está trancada?” Constatou com a raiva subindo a garganta. “Abra.” Ordenou. Não houve movimentação alguma para libertá-la. “Onde está a chave?”

“Guardada.”

“Se você não abrir essa porta, eu vou...”

“O quê?” Rachel jogou o lençol para o lado e ficou de pé. Peito na frente. Olhos cravados nos avelã. “O que você vai fazer?”

Ficaram paradas no silêncio que prosseguiu. Quinn não esperava uma reação dessas. Aquela menina não tinha medo dela. O que era surpreendente em tempos como aqueles. Ninguém nunca havia contrariado-a de maneira tão enérgica. Podia sofrer implicações constantes de Marley, mas sempre que a encarava ela perdia alguns centímetros e sucumbia ao medo.

Rachel era... corajosa.

De repente uma corrente de faíscas inundou os hemisférios mais frios de Quinn e ela sentiu aquela sensação de alento que nunca experimentara. Calor. Emanando por todos os lados. Consumindo-a como uma chuva de verão incandescente.

Deu passo para trás, fugindo.

“Vou dormir no sofá.” Ditou com a voz seca e pele trêmula.

“Como preferir.” A judia pulou na cama e retirou uma manta do outro lado dobrando-a com cuidado. “Está muito frio.”

“Não preciso da sua caridade, obrigada.” Quinn virou de lado com birra.

“Você vai congelar.”

Não houve resposta.

Rachel revirou os olhos e colocou a manta enrolada no chão ao pé da cama, caso -ela certamente- pretendesse mudar de ideia. Enrolou-se nas próprias cobertas e fechou os olhos.

 Alguns minutos passaram.

O frio desceu rastejando dos céus.

Quinn começou a tremer. Abriu os olhos lentamente e vasculhou o quarto fúnebre. Umidade estremecia suas laterais de uma forma traiçoeira e hostil. Encontrou a manta dobrada e lançou um olhar na cama.

Os olhos chocolate permaneciam fechados.

“Não preciso disso.” Sussurro muda. “Sou forte, estou bem.” Mas suas entranhas se contorceram traindo o orgulho alemão desprendido. Bufou lentamente e arrastou os pés em silêncio até o pano. Mergulhou para pegá-lo tomando o cuidado para não deixar escapar algum ruído. Rumou até o sofá e se cobriu.

No mesmo um instante um sorriso foi formado do outro lado.

Ela corou fortemente.

“Não diga uma palavra.” Rosnou revirando os olhos.

“Tudo bem.”

“Acabou de falar.” Quinn se irritou e jogou o único travesseiro que tinha nela. Rachel levantou com o queixo caído. A alemã ficou púrpura. “Eu não pretendia fazer...” Mas foi muito lenta em suas desculpas sem sentido, pois o travesseiro voou de volta, acertando-a no nariz. “Você jogou o travesseiro em mim!”

“Quer dizer que recitar coisas óbvias também é um talento seu?” Rachel imitou a voz dela com convicção, jogando de volta uma frase da mesma.

Viu-se sem argumentos.

Girou para o teto e ficou-o espiando por alguns segundos de silêncio que logo foram quebrados.

“Deve ser difícil dormir de olhos abertos.” Rachel sibilou observando-a.

“Sério?” Quinn fez uma cara de falso espanto. “Então porque você não fecha os seus? E aproveita para fechar a boca junto?” Rebateu seca. Fora um pouco dura e percebeu um certo desconforto pairando no ar quando resolver reverter o mal estar. “Eu quase nunca durmo.” Sussurrou.

“Por quê?”

“Pesadelos.” Limitou-se a dizer.

Rachel pensou por alguns segundos e teve uma ideia simples que talvez pudesse ajudá-la. “Feche os seus olhos.” Quinn riu um deboche óbvio e cheio de zombaria, mas a judia insistiu docemente. “Quero tentar uma coisa.”

Quinn olhou-a seriamente. Não sabia o que fazer numa situação daquelas e o que poderia suceder caso ela obedecesse. Engoliu em seco e pensou em milhões de coisas sem sentido.

Mas mesmo assim. Arriscou.

Fechou os olhos em desconfiança.

E o mundo foi reconstruido por notas.

“You were made to go out and get her

The minute you let her under your skin

Then you begin to make it better.”

            Joelhos soltaram-se em imensidão de conforto. Quinn deixou os olhos caírem e correrem em luzes difusas até que a escuridão acalmou seu coração errante. Todas as terminações ficaram imersas em alento.

            Não percebeu o sono chegando.

            Mas nunca deixou a canção de ninar ir embora.

-ooooooooo-

            Raios ínfimos de sol preencheram os contornos do teto e pairaram calmamente sobre os olhos verdes relaxados. Quinn ergueu a cabeça alienada nos primeiros segundos até que as lembranças da noite anterior lhe abraçaram.

            Dormira sob o teto de uma inimiga.

            Que aparentemente não lhe queria mal.

            Acreditar naquela situação lhe parecia uma ironia surreal.

            Mas o mais incrível que pôde constatar nos primeiros sopros da manhã foi que depois de incontáveis anos de noites cortadas por pesadelos, finalmente tivera uma completa. Inquebrável.

            Sem acordar uma só vez.

            “Bom dia.” Rachel adentrou a porta com o sorriso costumeiro. “Trouxe alguns pães quentes e chá para o café da manhã.” Colocou uma sacola curta sobre a cama. “Dormiu bem?”

            “Sim.” Sussurrou como se não acreditasse.

           

            A judia cravou os olhos nela e se espantou ao ver um resquício de sorriso, alegria e talvez satisfação.

            “Por que está sorrindo?”

            “Não sei do que está falando.” Quinn tratou de fechar o rosto.

            Rachel jogou as mãos para o alto simulando rendição.

            “Certo.” Encheu duas xícaras lascadas. Depositou uma gentilmente ao lado do sofá e cortou um pão açucarado ao meio para que a visita pudesse desfrutar. “Coma e se apronte. Imagino que queira ver a sua irmã.”

            Tomaram o café em extremo silêncio, mas havia familiaridade no ar de uma maneira desengonçada e errônea. Quinn se sentiu muito a vontade naquela manhã, provavelmente porque conseguira ter uma boa noite de sono.

            Não pôde deixar de pensar no por quê.

Teria sido o ambiente? A música?

Ou talvez... Rachel?

“Não pode ser.” Sussurrou alto sem perceber.

“O quê?”

“Nada que seja do seu interesse.” Retrucou com o mau humor que carregava na bagagem. Logo após sentiu-se péssima, uma afronta a alguém que sem querer fizera com que sua noite fosse uma das melhores nos últimos anos. “Desculpe.” Sussurrou quase inaudível.

Rachel ouviu, mas permaneceu quieta.

Os minutos passaram quando Quinn guardou as coisas e caminhou até a porta. O lado de fora da casa estava uma bagunça de árvores caídas e folhas emboladas sobre a os botões de neve.

Fora um verdadeiro milagre o casebre ter conseguido ficar de pé.

Passou pela soleira da porta, mas se deteve para algo rabiscado na madeira que, até então, passara totalmente despercebido.

Um número.

Pesado.

“190649.” Sussurrou a conta. Virou-se para a judia. “O que é isso?”

“Uma lembrança.”

Quinn deu de ombros e gravou-o na memória. Ficou repetindo involuntariamente durante todo caminho para casa e não soube explicar, mas aquela combinação não lhe era estranha.

A pergunta era: Por quê?

-oooooooooo-

Russel ligou numa manhã de quinta pouco tumultuada no trabalho. Desde o bombardeio tentara se comunicar com as filhas sem sucesso. Quinn atendeu o telefone, vislumbrou um resquício de saudade e tristeza inundando a voz dele, mas se manteve firme o melhor pôde.

“Não sei quando vou voltar, mas deve ser em breve.” Houve um momento de hesitação e silêncio na linha. “Cuide da sua irmã.”

“Sim, senhor.”

Despediram-se de uma forma casual.

Esquecendo-se que estavam em guerra, pelo menos, por alguns instantes.

Quinn desligou e rumou para o quarto. No meio do caminho tropeçou e caiu por cima de algo sólido que a fitou com grandes olhos azuis.

“Você precisa de óculos.” Britanny sibilou.

“Com tantos lugares na casa para desenhar, porque tinha que escolher o chão?”

A irmã menor deu de ombros e voltou a sua tarefa. Estava rabiscando traços num sol sorridente. As canetas ganharam características novas que Quinn não reconheceu. Em cada uma agora jazia em destaque uma letra B negra.

“O que você fez com as canetas?”

“Marquei com a minha inicial.” Explicou o óbvio. “Sempre fiz isso para que ninguém confundisse e levasse as minhas por engano.”

“E mesmo assim perdeu a primeira remessa que papai comprou.” Lembrou-se das canetas que desapareceram no dia do desfile.

Britanny ouviu calada e ignorou-a. Deu uma ultima olhada para a porta do quarto da irmã quando foi fechada e mostrou a língua antes de voltar para o calor do seu sol.

-oooooooooo-

Uma bala atiçou a arma enferrujada, voou em direção a mulher de cabelos dourados enquanto a menina de cabelos curtos assistia inutilmente, deu um grito de socorro e vislumbrou um rabisco no braço armado antes de tudo virar caos.

Quinn acordou dando um pulo na cama.

O pesadelo a alcançara de forma implacável.

Olhou para o relógio, esperançosa e constatou emburrada que ainda era noite, nem mesmo madrugada. Miseras horas de sono a deixavam com o humor deveras pior e a cabeça latejando com força.

“Odeio isso.” Jogou os lençóis para o lado, pisou duro até a cozinha em busca de uma caixinha de comprimidos para enxaqueca, mas parou na soleira da porta. Uma sombra minúscula se mexia no interior do recinto, próxima a entrada. Não dava para distinguir quem era. Quinn fechou os punhos e apanhou uma bengala deixada num vaso. Tomou um gole de ar e se preparou para o ataque.

Um clique ecoou.

A porta para o jardim foi aberta com cuidado.

E a alemã ascendeu a luz para surpreender a sombra de...

“Britanny.” Sibilou um ar esgotado. “Que diabos está fazendo acordada essa...” Mas se deteve e olhou para o lado da irmã. “Você abriu a porta?”

“Não.” Mentiu olhando para o chão.

“Britanny.” Repreendeu.

“Desculpe, desculpe, desculpe.” Gritou jogando as mãozinhas no rosto corado. “Não me bata, por favor.”

Quinn nunca a viu tão assustada, abaixou a bengala e coçou atrás da nuca. Não levantaria um dedo contra ela, mas queria entender o que tinha na cabeça para deixar a porta aberta de propósito.

“Não é a primeira vez que faz isso, certo?”

“Bom...não.” Sibilou baixinho. “Só algumas vezes.” Quinn esticou as sobrancelhas. “Ok, todas as vezes que você encontrava a porta aberta.”

“Por quê?” Quis saber de queixo caído. “Para me irritar?”

Brittany jogou as mãos nas costas e andou até ela com a cabeça baixa, vergonha por ter sido descoberta escorria por todos os seus poros.

“Não.” Deu de ombros. “Foi por uma boa causa.”

Estava prestes a perguntar “qual”, obviamente, mas não teve tempo. A porta rangeu alto e parou. Outra sombra estava no pé da entrada, mais alta, encarando-as no escuro. Quinn jogou a irmã para o lado tomada por uma onda aterradora de medo e voou em direção ao intruso.

Escorregou de lado com a bengala presa entre os dedos.

A sombra correu para o portão.

Tudo era breu.

“Volte aqui.” Ergueu-se, mas era tarde. Mudou os pés e arrumou os cabelos o melhor que pôde. Voltou para dentro e trancou a porta com todas as fechaduras que encontrou. “Quem era?”

“Não sei.” Era apenas uma meia-mentira.

Quinn ficou mais alta naquele momento, assumindo o papel de irmã mais velha e responsável pela casa até o retorno do pai. Levantou um dedo para indicar a seriedade da situação.

“Nunca mais deixe estranhos entrarem aqui.” Ordenou seca. “Se fizer isso de novo, não repondo por mim. Entendeu?”

Brittany assentiu tristemente.

-ooooooooo-

Junho caiu como luva para descongelar as margens de pedra do rio Main. O frio ainda predominava na região, mas não tão dominador, pois o sol estava lutando por espaço.

Quinn agradeceu mentalmente.

Preferia o calor, mesmo que o tivesse encontrado em poucos lugares.

Bem inusitados.

“Wilde.” A voz da treinadora Beiste invadiu seus tímpanos e a trouxe de volta para o frio cortante. Kitty ajeitou as lentes de ferro da armação de tartaruga e correu para a primeira fila meio desengonçada. “Fique em posição, sua porca sem modos.”

A menina tremia diante da rejeição e estava tão concentrada nos insultos da treinadora que não percebeu o caderninho que deixou cair do bolso, diretamente na neve enlameada.

Quinn pensou em pega-lo, mas uma mão foi mais rápida.

Marley arrebatou-o sem que ninguém mais percebesse e o guardou no bolso.

“Droga.” Ela sabia que Kitty nunca mais o veria.

“Dêem vinte voltas para aquecer.”

E começou o inferno de diversão da treinadora da juventude.

Seu corpo todo estava dolorido depois de tomar banho e se encaminhar para os armários. Abriu-o com indelicadeza e jogou os livros de qualquer maneira para dentro. Amaldiçoou-se ao lembrar que teria que terminar de “morrer” arrumando o telhado da casa da judia.

“Porque não me enterram de uma vez?” Sussurrou fechando o armário.

“Não me dê ideias, Fabray.” Marley a alcançou. Olhou-a de cima a baixo com escárnio e seguiu seu caminho para a saída. Ela suspirou fundo e lembrou-se do que Rachel falara sobre a garota de olhos azuis ter uma parte “boa” escondida e não saber usar, mas honestamente, ela não via isso em lugar algum.

Virou nos calcanhares e deu de cara com Kitty e um sorriso gentil.

“Olá, Quinn.” Cumprimentou com bondade. “Ela estava te amolando?”

“Ela tentou.” Deu de ombros. “Porque está tão sorridente?”

“Eu havia perdido um caderninho onde escrevo algumas coisas...complicadas.” Corou e prosseguiu. “Achei que nunca mais fosse vê-lo até que abri meu armário e o encontrei.”

 Ela puxou um livreto meio gasto e mostrou a menina de olhos avelã.

“Não sei quem devolveu, mas fico muito agradecida.”

Partiu depois de um tempo, mas Quinn ficou. Estagnada. Sem fala. Não parecia real, porque em que mundo Marley prestaria um favor para uma pessoa que odiava?

Não podia ser verdade.

Devia haver alguma outra explicação.

Racional, de preferência.

“Só pode ser brincadeira.” Arregalou os olhos diante de uma constatação absurda e de repente Rachel voltou a tomar conta do seu pensamento. “Ela estava certa.”

-oooooooooo-

O bosque de árvores gigantescas foi contornado com vigor. A alemã subiu a pequena inclinação e culminou no vale que abrigava o casebre. Rachel estava debruçada sobre o telhado terminando de arrebatar uma última remessa de telhas.

“Você não vai acreditar.” Quinn gritou lá de baixo.

Olhos brilhando em incredulidade.

A judia desceu pela escada e culminou na varanda. Ouviu toda história do caderno com um sorriso cada vez mais proeminente e reparou o quão diferente e entusiasmada Quinn parecia naquele dia.

“Eu disse que era o mesmo caso do Collins.”

“Mas...” Enrugou as sobrancelhas, pensativa. “Esse garoto te beijou na boca.”

“Sim, não disse que elas se gostam exatamente igual a ele com relação a mim, mas e se gostassem?”

Quinn deu de ombros.

Não tinha realmente o que dizer sobre isso.

“Bom.” Rachel ofereceu um sorriso calmo e o silêncio as inundou. Ficaram alguns segundos se fitando até que o olhar de Quinn quebrou o contato partindo para longe. “Estamos quase acabando o telhado.” A judia mudou de assuntou. “Você pode pegar uns pregos extras dentro da caixa de papelão?”

Quinn jogou a mochila no chão da varanda e se encaminhou para dentro. Abaixou perto da mesinha e abriu a aba. Uma caixinha de pregos jazia no fundo ao lado de vários objetos.

Pegou-os com cuidado para não se machucar.

Mas se deteve em uma peça peculiar.

Uma coleção de cores estava espalhada, forrando o fundo. Canetas coloridas, mas o que fez seu coração parar foi a marca que rubricava cada uma delas.

Um B carimbado em preto.

“Por que a demora? Precisa de ajuda para carregar uma caixa leve de papelão?” Rachel adentrou o recinto fazendo uma brincadeira, mas parou no momento em que viu a caneta trêmula nas mãos pálidas e olhos de gelo a encarando com fúria.

“Você pode me dizer o que está fazendo com os pertences da minha irmã?”  


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Notas finais do capítulo

Obrigada a todos que me seguem até aqui. Tenham uma boa semana e até o próximo.



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