O Corvo de Vidro escrita por ernanivalente


Capítulo 2
Capítulo 2




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Era noite.

Todo bom conto começa assim, com o cair do manto obscuro propagado por frios vultos sem esperança. A luz quente da aurora jaz ao longe, cercada de trevas e lamúrias ávidas. Junto com o tom negro que aquarelava o céu quase que encobrindo as mínimas estrelas que sorriam de medo no vasto universo, havia um silêncio. Como sempre, era noite nos sonhos de Alec. E a luz nunca tocava o horizonte, nunca.

Ele não via o chão, era uma espécie de esfumaçado cor de carbono e poeira esvoaçada sob suas botas. Ao olhar a sua frente, não via nada a não ser a vasta escuridão.  O que dizia sua forte audição? Alec fora um rapaz ouvinte a vida inteira por não ter ninguém com quem compartilhar. Vivia das experiências alheias e seus ouvidos nunca falhavam, mas neste momento, eles estavam surdos em tom agudo.

Uma aura desconhecida começara a se manifestar ao vasto horizonte do local desconhecido onde Alec se encontrava. Lembrara da experiência que tivera mais cedo, mas não teve tempo de sentir o arrepio em sua espinha por estar assustado. Alec estava caindo. A névoa tornou-se insubstancial e estava arrastando-o para um buraco sem fundo. Estava submergindo.

Alec acordara naquela madrugada com a sensação de afogamento. Nunca ocorrera coisa parecida anteriormente, a vontade de chorar e de se esconder era tão grande naquele momento que Alec não conseguia parar de tremer em sua cama.

Eram 3:45 da manhã de uma quinta-feira, ele estava assustado mas não queria ficar ali onde tivera o pesadelo terrível. Desde o começo da semana, coisas estranhas vinham acontecendo com ele e não queria arriscar de maneira alguma que a tal alma brilhante reaparecesse ali para ele durante a noite. Alec levantou de sua cama e se pôs a olhar através do espelho. Como mudara com o tempo, uma aparência mais forte e mais sombria até. Os cabelos negros como café fumegante estavam bagunçados de forma aleatória e seus ombros aparentavam estar mais largos que o normal. Suas cicatrizes em formas de símbolos estavam mais visíveis no pescoço e no abdômen constrastando com a pele branca, isso o fazia lembrar de batalhas passadas pelas quais ele teve que passar na sombra dos amigos.

Andava com cautela pelos corredores do Instituto prestando pouca atenção por onde passava. Estava mais concentrado em seus pensamentos e medos e o que significavam todas aquelas visões. Não podiam ser comuns, e só de pensar no que significariam para ele se procurasse saber, já sentia um arrepio mortal na espinha.

Sem perceber, viu-se iluminado por uma luz amarela saída do chão em algum lugar de onde estava. Logo identificou o lugar: estava na estufa. Não sabia o porquê de ter ido parar lá, talvez saudades de seu companheiro Jace que adorava a visão nova iorquina durante a madrugada. Há dias que não falava com seu companheiro Parabatai*. Apesar de todos os sentimentos, Alec já não sentia mais a paixão secreta por Jace. O via como um irmão, nos últimos dias estava mais para um estranho nômade que só aparecia de vez em quando na catedral do Instituto.

- Alec. Sabia que era você. Reconheci pelos passos leves.

- Jace? O que faz aqui? Não o vejo há dias. – Alec estava esperando que Jace aparecesse entre os vasos de planta localizados na estufa. Estava muito escuro e mesmo com a clareira de vidro, não era possível identificar a localização dele.

- Eu precisei de um tempo sozinho. Refletir sobre como andam as coisas e como serão daqui para frente. – Jace tinha um tom sofrido em sua voz. Havia aparecido ao lado das plantas brilhantes amarelas que se localizavam no canto oeste da estufa. Seus olhos estavam num tom vívido dourado por causa da luz, mas suas olheiras denunciavam seu cansaço. Alec não entendia como aquelas plantas brilhavam mas também não se interessava por flores lâmpadas.

- Jace, este é seu lar. Sabe que pode contar conosco para qualquer coisa, somos seus irmãos de batalha e criação.

- Alec, esse problema é meu. Valentim pretende sabe-se lá o que fazer com o Cálice e eu não sei se seria capaz de ataca-lo depois de tudo. – O sofrimento era perceptível em sua voz junto com um chiado de raiva.

- Tudo bem, eu entendo. – Respondeu Alec sem saber o que dizer.

- Não, não entende. Ninguém entende. Por isso eu quero ficar longe por um tempo, preciso saber o que fazer e o que me perturba tanto. – Jace respondeu com confusão explícita e saiu do cômodo logo em seguida.

Alec sofria por Jace. Ele era seu irmão de criação, seu melhor amigo e parabatai, mas não podia fazer nada para melhorar seu ânimo. Só mesmo o tempo poderia curar aquele coração ferido, nem mesmo uma estela poderia conserta-lo. Uma vez, ouvira entre paredes que “amar é destruir e ser amado é ser destruído”. Sabia que Jace estava despedaçado por vários motivos, mas o fator base era o amor.

A noite caía e o tempo não passava. Alec passou pela cozinha mas não tinha apetite nenhum para beliscar qualquer coisa presente lá, principalmente porque sua irmã é que havia cozinhado a tal lula que mais cedo estava com um cheiro metálico venenoso. Resolveu voltar à biblioteca do Instituto para ver se o conhecimento passado pelos livros o traria alguma luz naquele momento de escuridão contínua.

Alec adorava ler. Seus maiores companheiros sempre foram os livros antigos. Seus maiores consoladores, os antigos escritores de fábulas, eram maravilhosos e tão utópicos que faziam ele ficar com olhos marejados só de lembrar. Seu romance favorito era O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas que, por sua vez, era metade Nephilim. Alec sempre desconfiara de que sua habilidade de escrita não era mera coincidência. Sabe-se que os Nephilim, filhos de anjos com humanos, eram de alto poderio intelectual comparado aos mundanos. Alec era vidrado no protagonista da história, Edmond Dantès, vítima e vingador.

Para Alec, a vingança era uma adaga sem fio no peito do inimigo: Sem corte, a dor penetra mais profana.

Se pôs a sentar no velho sofá da biblioteca e pensou num livro para refletir. Infelizmente, o único que vinha à mente no momento era Apólogos Mortiços, o livro que lera mais cedo o qual vira informações sobre Norderic. Só de pensar no nome, um calafrio se pôs a percorrer pelos braços. Levantou-se, pegou o livro escondido atrás do velho sofá e o fitou por instantes.

O livro parecia mais antigo que o normal, sua capa de couro envelhecido estava mais ácida, as dobradiças douradas mais gastas e as páginas aparentavam estar mais enrugadas que de costume. Abriu em uma página qualquer e, antes de começar a ler, encarava pela janela a lua que agora estava visível. Tão bela a sua luz fantasmagórica, transformava seus olhos numa alegoria de tons azulados que aparentavam estar impressionados com a beleza solitária do satélite.

“(...) Sua conversão foi assombrosa. Naquela noite, o bando de vampiros havia pego o mundano para torturar e provocar a Clave através da quebra dos pactos. Norderic relatou que já considerava-se morto depois de apanhar, ficar preso a correntes, ter perdido totalmente os sentidos. O que ocorreu em seguida foi uma ação jamais vista na história das criaturas.

(...) Dois vampiros morderam as veias de Norderic ao mesmo tempo e seus venenos penetraram em conjunto no organismo do mundano. Horas depois, todos os vampiros do bando foram mortos e esquartejados, todos. Norderic sabia que, a partir daquela noite, teria que carregar a maldição de duas criaturas perdidas. Mas também sabia que sua força valeria por mil dessas criaturas. Sua alma pereceria em danação eterna.”

Alec mal conseguia sentir as pontas dos dedos. O ambiente ficara frio de repente. Mal conseguia manter o calor de sua respiração, sentia que seus olhos poderiam pular de seu rosto a qualquer momento a procura de uma lareira.

O frio aumentou absurdamente. Havia uma mão gélida em inércia sobre o ombro de Alec. Uma mão morta. Não humana.


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Notas finais do capítulo

*Nephilim: Filhos de anjos com humanos.

*Parabatai: São um par de Nephilim que lutam juntos e são mais próximos que irmãos.

Espero que estejam gostando e acompanhando. Comentários são bem vindos =)