Radioactive. escrita por nsengelhardt


Capítulo 2
Salvo minha professora de uma sala em chamas




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Durante todo o trajeto até o hospital eu fiquei calada. Minha cabeça doía muito mais do que quando saí do salão de festas. Desde a hora que eu saí do carro até a chegada da minha mãe ao hospital eu não me lembro de nada, só de uma pequena picada no meu braço, ouvi Alice falar algo sobre soro naquela hora.

Mas isso tudo não importa, o que importa é que minha mãe estava furiosa comigo. Ela não gostava nem um pouco do fato de eu ajudar tanto as pessoas, e o ocorrido de hoje não a deixara muito feliz.

Ela entrou no quarto do hospital onde eu estava, batendo os pés com raiva no chão de mármore. Ao contrário das outras pessoas, que a enxergavam como uma mulher de quarenta anos usando um casaco e uma calça de moletom e botas térmicas, com seus cabelos ruivos presos em um rabo de cavalo bagunçado e jogado pro ombro esquerdo, eu a via de outro jeito. Sua forma verdadeira e normal: seus longos cabelos avermelhados soltos e caídos em cascata, unicamente, sobre seu ombro direito, saia preta, acompanhada de uma blusa branca, com botões dourados, com um impecável blazer preto sobrepondo-se à blusa. 

Eu não suportava a ideia de vê-la em sua forma verdadeira. Eu não gostava de vê-la como o demônio que ela é, literalmente. Ninguém sabia, mas eu sou filha de Chex Sheba aut Baal-Malphus ou, simplificando, Sheba.

Minha mãe é quase que um demônio mediano da destruição e do caos. Por puro azar, em uma de suas vindas à Terra para plantar a discórdia em um lugarzinho no fim do mundo, ela conheceu um jovem mediúnico, que a reconheceu como demônio mediano. Não faz sentido nenhum, mas ela deixou de lado todo o mal e caos para viver uma vida normal com ele. Alguns tempos depois, eu nasci.

Eu nasci com esse "dom" de ver e ouvir coisas que pouca gente consegue o fazer. Essa pouca gente é chamada de mediúnica. A mediunidade tem vários níveis. No meu caso, o que eu faço é ouvir conversas de pessoas que estão à metros e, até mesmo, à quilômetros de distância de mim, eu vejo coisas que ninguém vê, como minha falecida avó paterna.

Já não bastava eu nascer mediúnica, eu tive de nascer com uma estranha heterocromia.

Apesar dos meus dois olhos serem de um tom cobalto, meu olho direito era esverdeado, enquanto o esquerdo era azulado. Não sei se é isso ou o fato de eu ter nascido com meus cabelos quase brancos. Não aquele louro perfeito, nem aquele platinado, sonho de qualquer "hipster", mas um loura esbranquiçado que dava impressão de que eu era frágil demais. Por sorte, eu podia pintar meu cabelo sempre de um tom avermelhado, como os cabelos de minha mãe e às vezes, completamente, de verde ou azul.

Lembro-me da primeira vez em que eu deixei meu cabelo voltar totalmente ao seu tom esbranquiçado e anormal. Foi o pior dia da minha vida, mas foi naquele dia em que eu conheci Dave e Alice, meus melhores amigos até hoje.

Um estalo de dedos me fez voltar à realidade. Minha mãe me encarava como se tudo o que eu fiz naquela noite havia sido um erro. E foi mesmo.

- Lie, vou te dizer só uma única vez - ela rosnou. - Nunca mais tente ajudar as pessoas, não desse jeito.

- E por que eu deixaria de ajudá-las? - falei, calmamente. O que irritou mais ainda Sheba. Ela odiava esse meu tom de voz calmo, mesmo quando a situação era de extremo perigo.

- Por quê? Porque o meu trabalho é acabar com pessoas assim... Inocentes demais.

- Ah, ok. Da próxima vez eu deixo todos os meus amigos morrerem e ainda morro junto. Você vai ficar feliz finalmente?

- Eu nunca estou feliz, Lieni. - Ela apertou seus olhos na direção dos meus. - Nunca.

Ela saiu do quarto de hospital. Provavelmente estava liberada daquele lugar.

Me sentei na maca em que eu estava. Minha cabeça ainda doía. Pensamentos.

Pensamentos vindos de todos os lugares. No quarto ao lado, uma enfermeira estava à ponto de chorar de pena de um paciente. O paciente... Ele estava com alguma coisa. Alguma coisa que poderia matá-lo caso o médico não chegasse logo e o preparasse para ser levado à sala de cirurgia.

A sala de cirurgias...

Uma mulher tendo um de seus pulmões "tirados" fora. Ela tinha um filho de 5 anos e seu marido estava do lado de fora da sala, se lamentando.

Pisquei meus olhos. Eu já estava cansada de ouvir e ver tudo aquilo.

Levantei-me da maca. Andando pelos corredores até a saída, eu passei pela maternidade.

Uma das crianças havia nascido com apenas um rim. Algo como um falshback passou em minha cabeça. Aquela criança também desenvolveria mediunidade no futuro. Com seus 11 anos já completos.

Sim, eu posso ver o futuro. O que não é nada legal, mesmo tendo grandes chances de saber todas as respostas de uma importante prova.

Eu precisava sair daquele hospital. Havia muita gente ali, eu não podia ficar muito tempo ali.

Sai correndo em direção à porta de saída. Finalmente livre, deixei que meus pulmões se enchessem com o ar puro e gélido daquela madrugada.

Andei até o carro da minha mãe. Ela estava encostada na porta do motorista, lendo um livro de capa preta.

Ela levantou seus olhos azul-cobalto pra mim.

- Finalmente, hein. - ela fechou o livro e entrou no carro. - Não vai entrar?

Revirei os olhos e então me sentei no banco de trás do velho Camaro preto de Sheba.

Recostei minha cabeça na janela. Senti algo cair no meu colo. Olhei pra baixo.

- Meu iPod? - murmurei.

- Resolvi te devolver, agora tente não fazer algo que chame mais atenção, tipo salvar pessoas de um incêndio. - Sheba me encarava pelo retrovisor. Então ela voltou sua atenção para a rua de saída do hospital.

Coloquei meus fones e liguei o iPod.

- It's time to begin, isn't? - sussurrei antes de pegar no sono.

. . . 

Quando eu acordei, estava deitada na minha cama. Um feixe de luz entrava por uma fresta da cortina.

Cocei meus olhos antes de lembrar de tudo o que aconteceu na noite anterior.

Como ontem era sexta-feira, dia do baile de formatura dos alunos do ultimo ano,  e todos os sábados os alunos se reúnem com seus grupos de cursos extracurriculares, a reunião do grupo do meu curso de química só começava às duas da tarde.

Olhei para o meu relógio no criado mudo. Eu ainda tinha quatro horas até a reunião.

Levantei e fui até o banheiro. Entrei de baixo do chuveiro.

Só então, após alguns instantes, eu percebi que ainda estava com a roupa de baixo. Tirei-a e a joguei para o lado de fora do box do chuveiro.

Quatro horas. Eu podia fazer muita coisa em quatro horas. Assim que saí do banho, fui até a pequena extensão do meu quarto, que era usada como closet/escritório. Estávamos no início do inverno. Coloquei uma velha calça preta e um moletom por cima do meu sutiã. Meias e botas térmicas para o meu pequeno problema de "pés frios".

Sentei na cadeira em frente à minha escrivaninha. Sempre que eu olhava para aquela escrivaninha, eu tentava imaginar no que papai estava pensando quando ali instalou um dekstop, dois notebooks, uma mesa digitalizadora e uma câmera fotográfica profissional.

Eu não queria tudo aquilo, não mesmo. Eu tenho só 15 anos, pra quê tantas coisas? No máximo eu preciso do meu velho iPod e de um notebook. Mas não, por ser rico, papai deve achar que tem de comprar tudo que lhe aparece na frente.

Agarrei um dos notebooks - o meu preferido, um preto e simples - e fui até minha cama.

Enfiei-me embaixo das cobertas com o computador no colo. Ouvi passos do lado de fora do meu quarto, então uma das empregadas, Rose, entrou com uma bandeja com uma xícara de chá e uma torrada.

Rose era a empregada que mais cuidava de mim e que mais me entendia. Ela tinha um pouco mais de sessenta anos, e só continuava a trabalhar porque gostava de ficar perto de mim.

Seus pensamentos eram dóceis e não pareciam ser tão altos quanto os dos outros.

- Bom dia, princesa do azar! - ela jogou as cortinas pros lados, fazendo com que a luz fraca daquele dia nublado entrasse no meu quarto.

A mudança de luminosidade fez com que eu ficasse um pouco tonta. Larguei o notebook e fui tomar meu chá.

Rose saiu do quarto, me deixando sozinha naquela imensidão chamada "lar". Eu não via importância em ter tantas coisas, em ter uma casa enorme, com cômodos e piscina enormes. Eu poderia muito bem viver em um apartamento simples por ai.

Assim que terminei meu chá, corri pro banheiro. Na frente do espelho, verifiquei a cor do meus cabelos.

O laranja escuro estava desbotando e a raiz loura esbranquiçada já estava grande demais pra ser vista de longe. Abri uma das gavetas no balcão da pia, de lá tirei um cesto com vários tubos de tinta e descolorantes.

Pelo primeira vez na minha vida eu havia decidido tingir meus cabelos de verde. Um verde turquesa combinaria comigo. Ou não.

Assim que eu terminei todo o processo de tingimento, eu lavei meu cabelo. Me encarei no espelho.

- Você nunca vai ser normal, Lie. - falei pra mim mesma. - Nunca.

. . .

Eu fui a primeira a chegar na aula de química de hoje. Pude escolher o melhor lugar na sala toda: um balcão pequeno com tampo de mármore, ao lado de uma grande janela.

Cobri minha cabeça com o capuz do moletom assim que o restante dos alunos entrou na sala. Coloquei a mão direita no bolso do moletom e lá apertei o botão de "play" do iPod.

Conversas chatas de alunos chatos. A professora havia faltado de novo, o que não é novidade. Mas eu só precisei me fechar e colocar meus fones pra fugir daquilo tudo.

O som de It's Time, da banda Imagine Dragons, ecoava na minha cabeça. Eu tinha também, por sorte, meu exemplar de Evermore guardado na bolsa. Meu olhos corriam pelas páginas, capitulo por capítulo. Até que ouvi o som do sinal tocar. Fim da aula. Ou não.

Não era o sinal que anunciava o fim da aula. Era o sinal de emergência de um dos laboratórios ao lado do qual eu estava. Larguei o livro e o iPod dentro da minha mochila e joguei-a no ombro. Saí junto com os outros alunos.

O laboratório que estava pegando fogo ficava no final do corredor. Alguém havia derrubado álcool em um dos balcões e... Eu não podia ajudar. Ordens de Sheba.

Olhei pro final do corredor. Aproveitei que o alunos corriam para o outro lado e fui até a sala. Ainda havia alguém lá. Larguei minha mochila ao lado de um bebedor e então chutei a porta.

Foi fácil derrubá-la. Quando se está com o corpo entupido de adrenalina, você faz qualquer coisa.

Cobri minha boca e nariz com a manga do casaco enquanto eu andava pela sala. O fogo ainda estava baixo, mas atingira grande parte da sala. Alguém estava ali, eu só não conseguia ver a pessoa. Ouvi a pessoa tossir duas vezes. Tentei seguir o som das tossidas.

A pessoa era minha antiga professora de química, Sra. Tolman. Andei pela sala até encontrá-la deitada no chão próxima à um balcão em chamas. Agarrei-a pelo braço e a arrastei pra fora da sala.

Sheba deixou claro que eu não deveria apagar incêndios nem nada, mas ela não disse que eu não podia tentar evacuar o lugar que estava se incendiando.

Consegui carregar Tolman até metade do corredor, então coloquei-a num banco que ficava ali. Antes que eu pudesse ir buscar ajuda, Marco Rancy cutucou meu ombro, o que me fez pular e gritar de susto.

- Desculpe... Lie? - disse.

- Tudo bem. - falei, olhando para a Sra. Tolman. - Não se preocupe comigo, tenta levá-la para a enfermaria, ela está desmaiada desde que eu a tirei do laboratório.

- Ok. Mas você tá bem? - perguntou ele.

- Um pouco, só me sinto cansada. A fumaça do incêndio não fez grande efeito em mim. Não se preocupe.

- Não tem com não me preocupar. - murmurou Marco.

- Como? - perguntei.

- Nada não. - Então ele saiu carregando a Sra. Tolman no colo pelo corredor.

Ele é um cara legal, o que fazia as pessoas pensarem o contrário era influência de seus amigos. Um bando de babacas do time de futebol do colégio. Enquanto eu voltava pelo corredor pra pegar minha mochila, um grupo de quatro bombeiros entrara no laboratório pra controlar o incêndio.

Alguns superiores da escola tentaram falar comigo, mas eu saí correndo. Não queria ali nem mais um minuto.


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Notas finais do capítulo

Segundo capítulo da história. Espero que gostem (: