Ad Limina Portis escrita por Karla Vieira


Capítulo 10
Orfeu e Eurídice




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Ethan Williams POV – Manhã de 08 de Novembro.

Voltei ao banheiro rapidamente e limpei a boca. Retornei quase correndo ao quarto.

- Andrew, respira. – Eu disse, se agachando na frente dele. – Como assim, os monstros levaram Kensi?

Ele tentava parar de chorar, soluçando, para me responder.  

- Ainda estava escuro, não tinha amanhecido. A gente ainda estava dormindo! – Ele disse, com a voz trêmula. – Então do nada aquelas duas coisas surgiram pela janela, quebrando-a. A gente tentou lutar, mas quando um dos monstros agarrou Kensi, ela não conseguia mais se transformar, e então o monstro saiu pela janela, levando-a presa nas garras, voando.

- Você viu para onde?

- Eles estavam indo para o oceano. E antes da segunda besta sair, ela disse: “Venha buscar a sua amada”, e gargalhou! Eles querem que eu vá atrás dela! Mas onde?

E então começou a soluçar mais forte. Marie o abraçou. Ele devia estar devastado. Há dois dias havia me dito que iria ao inferno buscá-la, se necessário. Andrew havia admitido que a amava, mais do que a si mesmo, mais do que tudo no mundo. Eu sabia exatamente como ele se sentia. 

- Como eram os monstros? – Perguntei. – Isso pode ajudar a encontrar o ninho.

- Eram grifos.

- Grifos? – Perguntou Marie, confusa.

- Corpos humanos, asas com penas tão fortes e cortantes como ferro, rabo e presas de leão. Alguns têm veneno de cobra nas presas, outros não, mas isso nunca dá pra saber até ser mordido. – Expliquei, visualizando as bestas. – Existem muitos grifos na Irlanda. Gostam dos antigos castelos, vales e colinas para fazerem seus ninhos. Seria difícil encontrar o certo.

- Mas nós temos que encontrar! – Gritou Andrew. – Kensi corre perigo, Ethan! Ela pode morrer! E se fosse Marie? O que você faria?

- Calma, Andrew. Eu disse que vai ser difícil, não que vai ser impossível nem que nós vamos desistir. Nós todos vamos atrás dela, vamos encontrá-la e trazê-la em segurança pros teus braços. Isso é uma promessa. – Eu disse, olhando nos seus olhos e segurando seus ombros. Virei-me para Marie. – Anjo, corra para chamar Styles e Fred. Eu vou contatar a sua mãe.

- Minha mãe? Por quê? – Perguntou ela, confusa e aflita.

- Eu tenho um pressentimento que ela pode nos ajudar.

Marie saiu correndo do quarto, enquanto eu fui ao espelho pendurado na parede. Recitei uma frase em latim e a imagem no espelho passou a ser a sala de estar da casa de Amelia.

- Amelia? – Chamei. – Você está aí?

- Ethan? – Ouvi a voz dela, confusa. – Onde você está?

- Espelho!

Então a imagem de Amelia, enrolada em um roupão azul marinho, segurando uma xícara de café, apareceu.

- O que houve? Vocês estão bem? Marie está bem? – Ela começou a me bombardear de perguntas.

- Estamos bem. Quer dizer, eu acho. Aconteceu uma coisa.

- O quê?

- Kensi foi levada por dois grifos para além do oceano, lá para Irlanda. Estamos em Blackpool. O que nós podemos fazer para encontrar o ninho?

- Estranho. Grifos migram nesta época do ano para um local mais quente. Como foi isso?

Contei rapidamente o que acontecera. Amelia ficou aflita. Andrew se levantou e se trancou no banheiro. Eu ainda podia ouvi-lo soluçar.

- Estou preocupado, Amelia. Andrew está devastado. Há dois dias ele admitiu para mim que a ama! Inclusive disse que faria tudo por ela. Se necessário, iria ao inferno buscá-la!

Amelia paralisou, como se algo passasse por sua mente.

- Ao inferno... Buscá-la? – Perguntou lentamente. Assenti. – Ah, não.

- O que foi?

- Ethan, você conhece o mito grego de Orfeu e Eurídice?

- Não me lembro.

- Eurídice era uma ninfa muito bonita, e amava Orfeu, um músico que fora agraciado pelo deus Apolo com uma harpa. Entretanto, Eurídice também havia conquistado o amor de Aristeu, um pastor, e este sentia muito ciúmes deles. Um dia, enquanto Eurídice passeava pelos bosques, foi picada por uma cobra e morreu. Orfeu ficou devastado, então...

- Tentou descer ao Mundo Inferior para buscar a alma de Eurídice e trazê-la de volta a vida. – Completei, lembrando-me do resto do mito. – Ele teve apenas uma chance. Se durante o caminho de volta, ele olhasse para trás, ele a perderia para sempre. Quase voltando à superfície, ele sucumbiu a tentação e olhou-a, perdendo-a.

- Exato.

- Mas como isso se encaixa com Andrew e Kensi? – Perguntei, confuso.

- Tem uma parte do mito que não é contada nos livros. Não os comuns, pelo menos. – Ela sorriu levemente, referindo-se aos livros de magia. – Dizem que ao ser levada de volta ao Mundo Inferior, Eurídice se rebelou contra a Mortem. Ela se juntou a outras almas e tentou abrir os portões, para que ela pudesse sair e voltar para os braços de Orfeu. Porém, a Mortem a impediu, e condenou-a a prestar um serviço por toda a eternidade.

- Que serviço? – Perguntei curioso, querendo saber qual seria a ligação do mito com os dois amigos.

- Ela teria de aplicar provações em algumas pessoas que quisessem chegar aos portões. E nunca, em hipótese alguma, deveria deixar a casa onde a Mortem a aprisionara, junto com os grifos que a serviriam.

- Tá, mas e qual é a ligação?

- Orfeu também disse que buscaria a amada no inferno. Eurídice quer pôr a prova o amor de Andrew por Kensi. Eurídice quer que Andrew vá até a casa e busque Kensi. Mas...

Amelia hesitou, empalidecendo um pouco.

- Mas...? – Perguntei.

- Mas não antes de fazê-lo sentir o que é o inferno.

- E se ele não conseguir?

Um calafrio de horror e preocupação percorreu minha espinha quando Amelia respondeu.

- Eurídice matará Kensi.

Andrew Cooper POV – Manhã de 08 de Novembro.

Havíamos embarcado na balsa que nos levaria até Dublin. Ethan havia acabado de me contar sua teoria sobre o que havia acontecido e eu de certa forma esperava que não fosse verdade. Não poderia suportar a ideia de uma ninfa louca desvairada estivesse fazendo a minha Kensi sofrer. Eu não poderia suportar se algo acontecesse àquela mulher.

A balsa estava indo o mais rápido o que podia, porém para mim parecia que não nos movimentávamos. Era tudo muito devagar. A qualquer momento, minha garota poderia morrer, e aquela balsa não andava.

- Mas não temos certeza que é isso mesmo o que houve. – Disse Marie. – Pode ser outra coisa.

No fundo do meu ser, eu sabia que era exatamente isso o que havia acontecido. A ninfa havia sequestrado Kensi.

- É isso sim.  – Eu disse. – Eu sei que é.

- Como você pode ter certeza? – Perguntou Fred.

- Eu simplesmente... Sei.

Olhei para o horizonte. O céu estava completamente azul, límpido, quase sem nuvens, e o sol estava refletindo-se nas águas azuis, brilhando. Ocasionalmente, uma gaivota passava grasnando acima da balsa, uma ou outra pousava no teto da cabine do capitão. Seria tudo muito lindo se Kensi estivesse segura ao meu lado.

- E como vamos encontrar a casa? – Perguntou Harry.

- Eu não sei... – Respondi, me sentindo vazio e perdido. Eu não conseguia mais chorar. Mas em nenhuma maneira me sentia melhor. Se fosse preciso, eu daria a minha vida sem pensar duas vezes para que Kensi pudesse ficar bem, todavia eu precisava encontrá-la primeiro.

- Onde você está, tigresa? Onde? – Sussurrei olhando para o horizonte. “Eu vou encontrá-la, vou salvá-la, eu juro” pensei.

Algumas horas depois, a balsa chegou ao seu destino, em um caís em Dublin. Desci do barco e olhei ao redor. As casas e lojas ali perto eram de estilo georgiano, as ruas de lajotas pequenas, as pessoas andando de um lado para o outro falando alegres com aquele mesmo sotaque do irritante do Ethan, apenas um pouco mais acentuado. Pessoas pacíficas, alegres, sem desconfiar da metade do que o mundo realmente era, do que realmente acontecia. Eu as invejava.

- Ok. Por onde começamos? – Perguntou Harry, parando ao meu lado e olhando ao redor. – Alguma ideia?

Andrew!” ouvi a voz de Kensi.

- Vocês ouviram isso? – Perguntei. Os outros me olharam confusos.

- Isso o quê? – Perguntou Fred.

“Andrew! Tigrão!” chamou Kensi novamente.

- Kensi! Me chamando!

- Andrew, não estamos ouvindo nada. – Disse Marie, com cautela. Estaria eu imaginando coisas?

“Andrew! Aqui! Em Dublin!” continuou Kensi. “Por favor, me ajude!”.

Desatei a correr para dentro da cidade. A voz de Kensi ia me orientando vez ou outra, com conselhos do estilo “direita, esquerda, entra na rua 23”. Eu ouvia os outros correndo atrás de mim, me chamando, mas não conseguia prestar atenção. Tudo o que eu ouvia era a voz de Kensi. Eu precisava encontrá-la.

Estava já na parte mais antiga e feia da cidade. As casas eram maiores, mais velhas, algumas um pouco melhores cuidadas do que as outras. O mato crescia por entre as lajotas das calçadas e da estrada. E ainda sim, eu continuava correndo para dentro de Dublin.

- Onde você está, tigresa? Como você está falando comigo? – Perguntei baixinho.

“É um feitiço de Eurídice. Me ajude! Eu não quero morrer, Andrew, não quero!” respondeu Kensi na minha mente.

- E você não vai, tigresa, eu juro...

Continuei correndo, entrando em ruas e mais ruas, becos e vielas, até parar na frente de uma casa. Uma mansão, na verdade. O terreno era enorme, mal cuidado. A grama crescia até a altura da minha cintura, mais ou menos. As árvores pareciam apodrecidas, e as flores que ainda resistiam em arbustos estavam murchas. A mansão era no estilo vitoriano, cinza, quase preta de umidade, velhice. A tinta estava descascada, e a porta enorme estava arranhada. De longe eu conseguia ver o desgaste feito pelos cupins. Os portões eram de ferro, com uns trabalhados que seriam muito bonitos se a tinta não estivesse descascando e o ferro, enferrujado. E para completar a adorável visão, dois grifos estavam pendurados na grade na sacada, observando-nos.

- É aqui. – Eu disse, quando os outros me alcançaram, cansados, esbaforidos. – Kensi está aqui.

- Como você tem certeza? – Perguntou Fred.

- Kensi falou comigo por um feitiço. Eu sei que ela está lá.

Aproximei-me dos portões e tentei abri-los, mas uma força me empurrou para trás. Uma risada estridente e maligna ecoou ao redor.

- Auto lá! Quem tenta entrar nos domínios de Eurídice? – Perguntou uma mulher, aparecendo sentada no muro, ao lado dos portões. Tinha a pele branca, de um tom quase transparente de tão pálido. Seus olhos eram cinza escuro, como o céu em dia de tempestade, e seus cabelos eram ondulados e negros como a noite mais escura; suas orelhas eram pontudinhas e sustentava um sorriso perverso.

- Você é Eurídice, não é? – Perguntei. Ela assentiu, descendo flutuando do alto do muro, parando na frente dos portões, me olhando. De pé, ela era baixa, chegando à altura do meu peito. Mas, mesmo baixa, ela não passava a imagem de frágil e fraca. Ela era poderosa, disso eu tinha certeza.

- E você, quem é? – Perguntou ela, com desdém.

- O cara que veio tirar a namorada das suas garras, sua ninfa desgraçada! – Avancei para cima dela, porém Ethan e Fred me seguraram.

- Olha o respeito, Orfeuzinho... Ainda bem que seus amigos têm mais juízo do que você, hein? – Eurídice retrucou, rindo. – Isso é só as consequências das suas escolhas. Você escolheu fazer essa viagem para os portões da Mortem... Você escolheu amá-la...

- Amor não é uma questão de escolha, ninfa, e você sabe disso. – Retruquei.

 - Cale-se, eu ainda não terminei de falar! – Ela disse agressiva, e seus olhos ficaram vermelhos. – E você escolheu fazer de tudo por ela. Você quem disse que iria ao inferno buscá-la, se fosse necessário. E é meu trabalho por isso a prova! Se você não passar nos meus testes, a sua preciosa Kensi Green irá morrer, Andrew Cooper!

- Ah, eu vou passar sim. E farei você pagar caro por isso, ninfa! – Rosnei, entredentes. Eurídice apenas riu.

- Se você diz... Andrew Cooper, bem vindo ao inferno.

Com um aceno de mão dela, os portões se abriram. Passei por eles sem olhar para trás. 


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