Miguel passa o resto da tarde lendo suas falas. Realmente, aquilo não seria uma tarefa fácil. Após ler e reler várias vezes o texto que o professor parecia ter preparado com tanto entusiasmo, Miguel só pode coçar a cabeça e pronunciar as seguintes palavras
    - Estou ferrado
    - Por que? Falas muito difíceis? - pergunta Camila que estava ali no quarto dele, procurando alguns livros.
    - Nem tanto por isso...mas esse personagem não tem nada a ver comigo
    - Ué? Ele não luta com espadas ou coisa assim? Você disse que gosta de fazer isso
    - Mas só tem UMA cena que ele enfrenta uns bandidos com uma espada...e...e o resto é um monte de discurso sobre injustiça social e blá, blá, blá
    - Ah, é...me conta uma coisa...tem alguma cena de beijo? - pergunta Camila, excitada
    - N-Não! - responde Miguel, todo corado - Termina com o príncipe e a princesa na cadeia e só
    - Aaah...então tá
    - Mas isso não deixa a peça menos difícil...
    - Relaxa - diz ela, já encontrando o livro que procurava - Você ainda tem dois meses para ensaiar tudo isso. Opa. Achei o livro que queria
    - E você? Tá bem mais animadinha, né?
    - E estou! Depois que conversei com o Toni ontem, estou me sentindo bem mais aliviada
    - Que bom - é o que ele se limita a dizer - Então ele não forçou a barra, forçou?
    - Não. Ele foi muito fofo. Disse até que esperava eu estar pronta para aceitar namorar com ele
    - Viu? Eu disse que ele gostava de você, não disse?
    - Além disso...
    - Além disso?
    - Se ele se meter a engraçadinho com alguma piriguete por aí...eu caio fora e nunca mais falo com ele!
    - Hauhauha. Essa sim é mais você
    - E o Leandro? Como anda o namoro dele com a Sandra?
    - Parece estar indo bem. Os dois sempre se conectam no jogo juntos
    - Jogam rpg online juntos? É um programa bem...diferente - diz Camila, com um olhar de estranhamento
    - É. É o que a gente gosta
    - Vocês são umas figuras mesmo. Bem...tô descendo para terminar a lição de História. Precisa de alguma coisa?
    - Não. Só vou estudar mais um pouco dessas falas...amanhã já é o dia da aula, não é?
    - É. Vamos ver o que ele vai falar amanhã
     E o dia passa mais rápido do que eles pensavam. Logo, os seis estavam ali na aula de teatro novamente. Camila e Toni pareciam estar se dando bem, do jeito de sempre. Leandro e Sandra estavam juntos como sempre. Danieli estava ali, animada, como sempre.
    - E aí? Deu uma olhadinha nas nossas falas? - pergunta Dani, antes de começar a aula
    - Dei sim. Parece um pouco complicado
    - É nada. Logo você se acostuma com o texto. É só continuar se empenhando
    - Vou tentar
    - Ei, peraí...vocês já tem as falas da peça? - pergunta Leandro
    - O professor entregou para mim ontem. Eu não te falei? - retruca Miguel
    - Não. Como assim? Vocês dois já recebem o texto assim, antes de todo mundo?
    - É que o papel deles já está definido - responde o professor, chegando um pouco atrasado
    - Ei, de onde você saiu?
    - Desculpa chegar assim tão de mansinho...e desculpem o atraso também. Estava imprimindo as falas de todo mundo. Agora sim. Tá todo mundo com texto
    -"O Príncipe Pensador" - lê Sandra, em voz alta - Então vai ser essa peça mesmo?
    - Exato. Hoje faremos mais alguns exercícios, mas gostaria que Miguel e Danieli descem sua opinião para a peça, já que vão ser os principais e receberam o texto primeiro. Querem mudar alguma coisa?
    - Ah, eu gostei. Achei bonitinha
    - Que bom. E é bem rápida. Dura meia-hora, no máximo. E você, Miguel? O que achou?
    Miguel coça a cabeça e responde
    - Bem...não acho que eu combine muito com esse papel...achei as falas um pouco revoltadas demais
    - Mas são revoltadas! É um príncipe revoltado com a pobreza dos camponeses e com o sistema injusto da época
    - Então...não sei se conseguiria manter o mesmo espírito do personagem
    - Claro que consegue...vamos ver...vamos tentar essa fala aqui. Nosso príncipe está discutindo com o pai, o rei, sobre a situação do povo. Essa parte aqui é boa. Você diz: "Pai! Não posso mais aguentar toda essa injustiça! Sairei deste castelo agora e me juntarei aos pobres desafortunados desse mundo!"
    - Ficou meio tosco, não ficou, não? - comenta Leandro
    - Pssiu! Quieto! A gente não viu o contexto da cena! - bronqueia Sandra
    - Vai. Tenta você! - diz professor Platão, tentando ao máximo apoiar Miguel
    - "Pai..."- ele começa, bem travado - "Não posso mais aguentar toda essa injustiça! Sairei deste castelo agora e me juntarei aos pobres...aos pobres... desafortunados desse mundo"
     O resto do público não vê muita emoção na fala do rapaz
    - É...isso aí devia ser mais revoltado  - comenta Toni
    - Ser revoltado não é bem a praia do Miguel, né? - comenta Camila
    - Hmm..Precisa parecer mais revoltado. Tenta gritar
    - O que? - pergunta o rapaz surpreso. Ele disse mesmo, gritar?
    - Dê um grito de revolta. Pense em algo que te deixe revoltado e liberte sua raiva com um grito
    Miguel viu que chegou a um ponto crítico ao se submeter a esse tipo de situação. Por que ele tinha que fazer aquilo? Bem, como seria pior não fazer do que fazer, ele tenta se lembrar de alguma cena que o deixou irritado. Ah, aquele dia que acabou a energia bem na hora de salvar o jogo...ou aquele dia que Toni rasgou uma excelente revista de jogos por ficar fazendo graça com ela...não importava muito a razão. Miguel fecha os olhos e tenta gritar. Embora tenha gritado, ainda não foi um grito de revolta
    - É...ainda precisa melhorar bastante
    - Desculpem
    - Não se desculpe. Apenas treine. Pense como seria uma pessoa revoltada!
    - Uma pessoa revoltada, heim? Tudo bem, tudo bem...eu vou tentar - responde Miguel, não muito animado. Como ele foi aceitar uma coisa dessas?
    - É assim que se fala! - diz Dani, dando uns tapinhas no ombro do amigo   
    - E você, Danieli? Tem alguma fala que gostou mais?
    - Gostei do apelo dramático dessa última
    - Ah. A última frase
    - "Mas se vamos morrer...vamos morrer juntos...e por uma causa nobre!" - diz a ruivinha, colocando toda uma interpretação dramática em cima da frase. Via-se que ela realmente tinha prática como atriz. Miguel olha a garota com uma admiração fantástica. "Simplesmente fantástica", ele pensa.
    - Bom. Pegou bem o espírito da personagem
    - Ela também tem um bom senso de justiça. Os dois formam um casal interessante - ela observa
    Miguel fica corado ao ouvir isso (e também ao ver o olhar malicioso de Leandro e Camila a respeito dessa última frase)
    - B-Bem...ainda temos dois meses, não é professor? - pergunta Miguel, tentando mudar de assunto
    - Claro. E ainda temos que decidir quem vai ser o que em cada cena. Todos vocês, estudem a peça e se quiserem fazer alguma alteração me avisem até a próxima aula. Depois disso, vamos só ensaiar
    Leandro dá umas folheadas no roteiro. Que papel ele teria que fazer?
    - Não tem nenhum papel de poucas falas e pouca ação aqui? Sei lá...tipo a árvore?
    - Leandro! - bronqueia Sandra
    - Hahuaha. Sempre engraçadinho, heim? Bom, você pode ser um dos camponeses pobres
    - Acho que também posso ser um camponês. Vão precisar de mais, não vão? - pergunta Toni
    - Calma, gente. Na próxima aula a gente decide quem vai ser quem, tá bom? Agora...já que o sr. Miguel está tendo problemas em ser uma pessoa revoltada...vamos treinar mais algumas expressões corporais
    Nesses exercícios, Miguel até que tenta bastante se expressar mais, mas a timidez era mais forte do que ele. Ser o protagonista de uma peça realmente seria mais difícil do que ele pensava. Sua última esperança era ensaiar com Danieli. Só ela podia salvá-lo naquela hora. Ao término da aula, Miguel, em uma rara tomada de iniciativa, fala com Danieli
    - Err...Dani?
    - Oi, Miguel.
    - Então...você quer ensaiar mesmo essas falas?
    - Claro. Quais dias você pode?
    - Qualquer um à tarde. Qualquer um mesmo - diz Miguel, o que não era nenhuma mentira, considerando sua posição de estudante adolescente vagabundo.
    - Sério? Segundas, terças e quintas também tô livre. A gente pode ensaiar nesses dias
    - Pra mim tá ótimo
    - Beleza. A gente já pode começar na segunda. Enquanto isso, dá uma treinada em casa...isso ajuda bastante!
    - T-Tudo bem
    Na volta para casa, onde apenas Leandro, Sandra e Camila estavam presentes, não demorou para todos comentarem essa ação de Miguel
    - Aí, Miguel! É assim que se faz! - parabeniza Leandro
    - Do que você tá falando?
    - Ah, pensa que a gente não reparou? Você, você mesmo, Miguelito, combinando de ensaiar com a Danieli!
    - Bem, a ideia foi dela...e, realmente, vou precisar ensaiar
    - Mas isso é bom, Miguel - comenta Sandra - É uma ótima oportunidade, não acha?
    - Não acho que vá conseguir falar alguma coisa
    - Não precisa falar nada ainda. Só de estar mais tempo com ela já é uma baita de uma vantagem, não acha? - responde a namorada de Leandro, com um sorriso otimista no rosto.
    - É. Isso é. Ainda não me sinto nada à vontade com ela
    - Mas também não vá ficar muito à vontade..vê lá o que você vai fazer! - comenta Leandro, quebrando o drama da conversa
    - Ai, Leandro! Cresce um pouco, vai? - critica Sandra
    - Que é isso? So brincadeira!
    Miguel podia ver isso como uma vantagem, mas também como algo assustador. Era o mesmo sentimento de sempre. A vontade de estar junto, e, ao mesmo tempo, o medo de estar junto. O sentimento de inferioridade a alguém tão perfeito como ela e o sentimento de profunda devoção, algo que não podia se libertar tão facilmente. Às vezes Miguel achava ter medo de se aproximar mais de Dani por temer encontrar algum defeito nela, algo que o fizesse deixar de gostar tanto dela. Mesmo que ela já tenha comentado algumas vezes com Miguel de que não sabia cozinhar ou de que era desastrada com tarefas domésticas, ele não conseguia ver isso como defeito. Para Miguel, Dani já não era mais humana e sim deusa. Pelo menos, inconscientemente era assim. Como seriam essas horas de ensaio?
    Na segunda, Miguel e Dani se encontram na entrada da escola, a caminho da aula.
    - É hoje, né? Estudou bem o texto?
    - Sim, sim. Acho que já decorei a história - ele responde. De fato, estudar e decorar não era algo difícil para Miguel.
    - Que bom. Tá confirmado o nosso ensaio de hoje?
    - Claro. À tarde...aqui mesmo na escola?
    - Hmm...não, não. Aqui é muito ruim. Tem um lugar aqui perto que eu acho ótimo para ensaiar. Sempre vou lá
    - Sério? Onde?
    - Praça da Sonhadora. Conhece? É uma praça enooorme, mas fica a uns dois quarteirões daqui
    Miguel sabia onde era. Uma praça bem maior que aquela próxima a sua casa. Realmente era um lugar tranquilo
    - À tarde é uma delícia. Se você puder aparecer lá depois do almoço, lá pelas duas e meia
    - Feito. Apareço sim!
    - Então tá combinado! Ah, me passa o seu celular! Assim fica mais fácil da gente se encontrar
    - T-Tá..
    - Eu te passo o meu também.
    - O..Ok... - diz o rapaz, mal podendo conter sua emoção, enquanto trocavam os números.
    - Beleza. A gente se vê lá, heim? - ela sorri e entra na sala.
    Miguel estava tenso, mas ao mesmo tempo feliz. Ele estaria perto de Danieli...isso já bastava para deixá-lo feliz...e nervoso! Ele tinha o celular dela agora, não que ele usasse muito o aparelho, mas só o fato de poder falar com ela por telefone já o deixava animado...mas, de novo, tenso! Por que isso? Por que esses sentimentos tão contrastantes de amor e medo? Ele ainda estava segurando seu celular, viajando na maionese...até que uma voz o tira do transe
    - Vai matar aula, é? Vai ficar aí parado no corredor até quando?
    - Heim? Ah..professor! É o senhor?
    Era o professor de Filosofia. Passando por ali, já que teria que dar aula em uma sala próxima
    - Estudou bem o texto?
    - S-Sim. Já decorei tudo praticamente
    - Bom. Já é meio caminho andado. Só precisa começar a dar mais sentimento a suas falas. Até mais e boa aula
    "Boa...putz, é verdade! Tenho que entrar!", pensa ele. Esse monte de emoções misturadas já estavam mexendo demais com a cabeça do pobre rapaz...