O Príncipe Cinza escrita por Micaela Salvya


Capítulo 4
Risadas Irritantemente Irritantes




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Apoiei meio quadril na borda da mesa de madeira escura e suspirei entediado. - A senhorita poderia me ajudar?

– Claro, qualquer coisa. -respondeu a jovem abrindo um sorriso pelo meu "senhorita".

– Eu vim pegar uns documentos de uma aluna, hum... Laura Hunter. - Cruzei os bracos no

– Me desculpe, e... voce eh?

– Eu sou namorado dela.- A mulher sentada devia ter seus vinte e quatro anos.

– Ela deve ser uma moça de sorte. - disse a secretária com um sorriso mais opaco, soando mais invejosa do que amável. - Mas mesmo assim eu não posso dar nada para ninguém que não seja da família, sabe como funcionam as coisas, protocolo da escola.

Encarei a cor horrivel da parede. Um amarelo tao sujo que parecia que alguém tinha bebido muita água e eliminado os fluidos na parede. Suspirei. Eu poderia estar fazendo milhares de outras coisas mais úteis. Porem, aqui estava eu.

– Tudo bem, eu sei que voce só está fazendo a sua parte. Mas, entenda o meu lado. Ela adora surpresas e eu queria muito fazer essa para ela. - me apoiei melhor na mesa.

– Surpresa? Que surpresa? -olhei ela de soslaio e sorri, sabia que podia convence-la.

– Ah só uma coisinha que eu tinha preparado para ela. Ela torceu o tornozelo descendo as escadas, ela pode ser muito desajeitada, sabe, ...Gillian? -li a placa sobre a mesa. - Posso te chamar te Gillian, nao é? - subi o olhar de encontro ao seu olhos chocolate.

– Claro, qualquer coisa. Q-quero dizer, claro.

– Você sabe como é dificil surpreender as mulheres independentes de hoje em dia. Foi por isso que decidi fazer esse favorzinho, já que ela vai ter que ficar três semanas sem poder caminhar.

– Três semanas? Uau, deve ter sido bem grave. - disse Gillian abrindo um sorriso maior.

– Exatamente. Vê porque quero deixá-la feliz? Ela está tão triste, sem mal poder sair de casa. - fiz uma careta interior. Soou dramático demais ateh pra mim.

– Ah, já que é assim, nesse caso eu posso abrir uma excessão. Sabe como é dificil achar homens que ainda querem nos deixar felizes? Que querem fazer surpresas? Ah que romântico! Com toda certeza posso ajudar os dois pombinhos. -apesar de Gillian parecer um pessoa um pouco superficial ainda possuía um bom coração. Pena que ela não fazia ideia da verdade.

–---

Avistei a propriedade e logo em seguida a construção grande rodeada por concreto que daqui para frente não veria com a mesma frequência que eu havia visto nos últimos anos. As grandes paredes eram beges e relativamente antigas, não era uma construção suntuosa ou glamurosa, mas afinal uma escola devia ser eficiente e não bonita, apesar do último fator ajudar bastante no marketing da instituição.

Eu sentiria falta de tudo apesar de nunca ter exatamente amado o período escolar da minha vida. Andei pela grama verde onde a alguns dias atrás fora minha cerimônia de formatura. O sol se escondia hoje, e apesar de serem onze da manhã poucas pessoas trabalhavam, já que era manhã de pleno sabado. Passei pelos três degraus até o hal de entrada virando a esquerda para chegar a recepção onde eu viera falar com a secretária para que meus últimos documentos fossem entregues a mim. Na verdade eu chegara meio cedo já que onze e meia da manhã Gilly começava seu expediente. Me sentei, então, na recepção esperando por sua chegada já preparada para o tédio da espera. Tirei um exemplar de dentro da bolsa, pertencente a biblioteca da minha tia.

Um livro exercia seu papel nessas horas melhor que qualquer outra coisa poderia. Abri e comecei a lê-lo esquecendo o resto do mundo como sempre.

–--

Acordei de meus devaneios quando ouvi vozes vindo da sala fechada de Gilly. Será que ela já tinha chegado? Eu estava esperando a vinte minutos pensando que Gilly ainda não estava, quando na verdade ela tinha chegado mais cedo desde o começo? De qualquer maneira a porta estava fechada, eu teria que esperar mesmo assim. Suspirei guardando o livro em minha bolsa. Será que a demora seria longa? Eu estava começando a ficar com fome, e minha barriga roncava como prova disso.

Por alguma razão olhos azuis vieram a minha mente...de novo. Como se eu tivesse passado algum minuto desse dia, desde a noite passada, sem pensar a respeito. Como uma pessoa, no mínimo insana devo dizer, consegue ficar divagando sobre os olhos e a voz profunda de uma pessoa que invadiu sua casa durante a noite? Eu estava enlouquecendo e parecia que minha sanidade tinha ido embora com meu respeito próprio. Eu devia ter problemas com relacionamentos como aquelas mulheres que sempre se envolviam com caras problemas ou da máfia e acabavam com o coração destroçado sempre. Bem, no caso da máfia talvez fosse no sentido literal da palavra. Balancei minha cabeca mentalmente, ah eu tinha que parar de pensar sobre isso.

Tormentas.

Meu Deus. Eu estava até sentindo coisas no ar? Dizem que a mente é poderosa, as pessoas que inventaram isso não estavam de brincadeira.

Me concentrei em me desligar do mundo ao meu redor. Eu tinha o hábito de "meditar" quando estava muito ansiosa, cansada ou irritada. Sempre me acalmava. Esse "meditar" consistia em sentir as coisas. Os cheiros, as sensações que emanam das outras pessoas, sons ao meu redor, a presença e a essência das pessoas. Era um hábito tão comum que eu mal percebia que o fazia. Era como puro instinto.

Tormentas.

Desafio e coragem.

Obstinação e solidão.

De onde tudo isso estava vindo?! Me levantei de súbito quase com raiva por pregar essas peças em mim mesma. O que estava acontecendo comigo? Comecei a andar de um lado para o outro na pequena recepção, manejei andar no pequeno espaço dividindo o lugar com cinco cadeira e um bebedouro.

De repente a porta da secretária se abriu e eu fui de encontro com quem quer que seja que estava saindo. Documentos voaram por todo lado e eu em meio a " me desculpe" e "eu não te vi" e "eu sei que foi minha culpa" recolhi os papéis espalhados pelo chão. Às vezes eu podia ser muito atrapalhada. Entre tantas folhas reconheci minha foto da quinta série anexada a um documento.

– Mas, o que-? -indaguei encontrando um rosto a centímetros do meu.

Se eu não estivesse surpresa pela tal foto, admito que eu ficaria ainda mais surpresa pela pessoa que se encontrava a minha frente. Seu cabelo era preto bagunçado de forma que alguns fios teimavam em cobrir seu olho esquerdo, seu nariz era levemente arrebitado e sua mandibula era extremamente forte, completamente maravilhoso, quero dizer, para alguns, não para mim . Tudo bem, se fôssemos analisar os fatores separados diríamos que ele era uma pessoa singular. Um garoto de 19 não muito diferente do que vemos por aí. Mas juntando tudo, colocando cada traço numa única pessoa eu admito que nem mesmo o mais novo ídolo adolescente do momento causaria esse efeito em mim. Eu sei, meu caso era grave. O estranho usava Ray-Bans que cobriam seus olhos e usava uma jaqueta de couro preta. Quase me fez lembrar daqueles filmes antigos, se neste momento eu não estivesse ocupada demais babando sobre o indivíduo citado. E se por acaso eu estivesse em um desses filmes saberia o que dizer ao invés de corar até a raiz dos cabelos. Como eu estava fazendo agora. Acho que meu excrutínio ficara óbvio de mais.

O vento ao meu redor fluiu e pude sentir que ele fugiria na primeira oportunidade. E eu não poderia estar mais certa. Seu corpo se moveu para o lado com rapidez impressionante, provavelmente buscando uma rota de fuga. Sem pensar duas vezes meu próprio corpo se moveu num átimo bloqueando sua passagem surpreendendo a mim mesma. Acredito que ele poderia rapidamente ter me empurrar para o lado e ter seguido seu caminho, mas devido a sua surpresa, ele ficou parado boquiaberto. Me dando uma boa oportunidade de perguntar sobre a foto.

– O que significa isso? - perguntei ouvindo meu próprio tom de raiva contida.

– O que está acontecendo aqui? - perguntou Gilly saindo de sua sala para checar os acontecimentos. - Ei espera, você não disse que sua namorada estava impossibilitada de andar? - desconfiou Gilly encarando o visitante.

– Porque isso foi entregue a alguém sem autorização? Eu nem sequer o conheço! -minha voz ficou tao aguda de raiva que tentei me controlar com uma profunda respiração.

– Como pode dizer isso? Que insensível, Splendae. Ontem a noite,lembra? Nosso primeiro encontro?

Surpresa e assombro tomaram conta de mim. Ele era mesmo o Batman de ontem a noite? Meus sentidos não me enganaram. Porque agora ele estava roubando aquilo? Porque que um ladrão de arte iria querer saber sobre as minhas péssimas notas? Aposto que se ele vendesse no eBay ele renderia mais do que se mantesse aquilo.

– O que-

Nao tive tempo de perguntar.

– Se me lembro bem, você inclusive me convidou para sair com você de novo. Que tal o Museu de Arte Moderna? - disse ele levantando uma sobrancelha sugestiva e rindo de alguma piada interna.

Ele estava achando tudo aquilo divertido? Ele devia estar se sentindo enclausurado! Pego no flagra!

Quem vai ao museu no segundo encontro? pensei comigo mesma.

E quem disse que era um segundo encontro?! Nem sequer houve um primeiro.

– Ainda não entendi, se você a conheceu ontem porque está levando isso com você?- disse Gilly se dirigindo ao estranho. Ela na verdade mal olhara na minha cara desde o início da conversa. Pelo jeito o efeito mágico do estranho não era só em mim.

– Exatamente! Porque?- apontei um dedo pro seu peito.

– Ah, é uma história tão constrangedora...

– Eu aposto que pode piorar. -respondi cética.

Sob o olhar inquisidor ele respondeu relutante, fingindo estar constrangido.

– Humm...ok. Voces me pegaram. Era uma surpresa. - ele levantou as maos em rendição. - Eu sei que você odeia pegar as coisas em lugares distantes, decidi vir aqui e salvar o seu tempo. E você sabe, aproveitar para ver umas fotos suas antigas.

Gargalhei alto. Essa era a coisa mais engraçada que eu ouvira na vida.

Tudo bem talvez eu odiava mesmo pegar coisas em lugares distantes, para que serve a tecnologia se a gente ainda tinha que pegar o controle em cima da mesa quando ninguém quer se mexer.

Eu podia levar isso como insulto se ele insistisse em me irritar, mentindo tão abertamente.

– Meu Deus, essa é a historia mais... -comecei eu.

– ...fofinha que eu ja ouvi! - completou Gilly.

– ...ridícula que eu já ouvi! -terminei com descrença. Como uma pessoa podia engolir uma história tão mal contada dessas! Ele assistia muita novela? Fala sério!

O Ladrão se virou com um olhar convencido e sorriu amorosamente para Gilly. Tenho certeza que a partir daquele ponto ela não ouviu mais uma palavra do que eu disse. E quase pude ouvir seu coração bater mais rápido. E seus olhos brilharem mais. E sua boca suspirar.

– Como isso pode ser romântico?! Roubar é crime! Ele não pode sair por aí dizendo que é afiliado amorosamente de pessoas inocentes e ganhar prêmios por isso! Sem dizer que essa é a historia mais mal contada da era das historias mal contadas.

Se é que isso existe...

– Porque a gente não deixa isso entre nós? Posso devolvê-lo a sua dona e deixar as coisas assim, o que acha Gillian? Sem problemas para mim, sem problemas para você. - Ah, agora eu estava endentendo tudo.

– Você está mesmo disposto a fazer essa perigosa proposta e esperar que eu não me irrite a níveis nucleares?!

– Porque tudo isso por algumas fotos e coisas inúteis? - coisa inúteis que você queria pensei.- São documentos de comportamento e notas. - ele me mandou um sorriso como se eu estivesse fazendo caso demais. - O que tem de tão importante sobre você aqui? - Ele se aproximou de mim e tive que levantar o pescoço para nivelar com seu olhar. - Que tal esquecermos tudo isso?

– Ótima ideia! Então eu, ah... vou voltar para minha sala, tenho muito o que fazer. Até mais querido. Boa sorte no próximo encontro!- pude ver que Gilly não queria se dar mal por ter dado documentos de uma aluna para um desconhecido qualquer, e deixar tudo como estava era a melhor opção para que mantivesse seu emprego.

A mulher então entrou e fechou a porta de sua sala nos deixando sozinhos na recepção.

– Só porque você bateu seus cílios e Gilly esqueceu tudo, não significa que o mesmo vai acontecer comigo. - lancei eu bufando de raiva. O mundo estava assim tão manipulável?- Aliás qual é a verdadeira razão de tanto interesse nisso ai? Você é um serial killer ou algo assim?

– Eu não faço esse tipo de atrocidade e muito menos crimes. O verdadeiro crime foi cometido pela pessoa que tirou essa foto, quem teria coragem de mostrar ao mundo isso? - retrucou ele apontando para meu retrato do quinto ano.

– Ah! -bufei cruzando os bracos impacientemente. - Como você consegue se olhar no espelho de manhã? Eu só tinha onze anos.

Um sorriso lento se formou nos seus lábios, como se ainda fosse possível, ele diminui mais ainda o espaço entre nos. Pude sentir sua respiração na minha testa, já que ele era tao alto. Um arrepio passou pela minha espinha.

– Eu olho da mesma maneira que você não consegue tirar seus olhos de mim.

– Ah...

– Pelo menos faça um favor a si mesma, guarde essa foto e não deixe mais ninguém ver, Splendae.

– Humf! - arranquei as folhas de sua mão e recolhi minha bolsa sobre a cadeira e bati os pés até a porta.

Que raio de palavra era Splendae? Parecia outra língua, algo como latim.

Eu não via a hora de sair dali para nunca mais vê-lo em minha vida.

Mas eu nunca tive esse tipo de sorte. E não seria justo agora que isso mudaria.

A última coisa que ouvi antes de sair foi sua risada irritantemente irritante.

–--

Duas semanas depois.

Meu turno já tinha acabado, então fui até a sala do meu chefe e parei na porta.

– Jim, Lola já chegou então vou embora, tudo bem?

– Claro, pode ir. Sei que você nunca me deixaria na mão sem ninguém para tomar conta do balcão.

– Estarei aqui as duas da tarde amanhã. Tchau.

Recolhi meus pertences e passei pela porta em direção à noite fresca. Apesar de ser pleno verão, a noite apresentava um clima gostoso e uma brisa soprava meus cabelos.

Eu começara a juntar dinheiro trabalhando na loja de dvds no centro da cidade há dois anos. E justamente porque esse seria um breve intervalo até a faculdade, eu decidira continuar a trabalhar, organizar minha cabeça e se possivel decidir de uma vez o que faria da minha vida. Devo admitir que pensar claramente era bem dificil com minha amada tia gritando no meu ouvido para prestar algum curso que alavancasse uma boa carreira pofissional, mas pelo menos eu estava tentanto.

A cidade era tranquila então não havia problema algum em caminhar do centro até a minha casa. Talvez a única excessão a essa seguranca fosse Vicente, mas eu não achava que encontraria ele acordado as oito horas da noite numa terça feira.

As luzes dos postes de luz eram suficientes para enxergar o caminho claramente e eu já havia feito aquele trajeto mais vezes do que poderia contar. Porém um sentimento estranho pairava sobre mim desde que eu acordara de manhã. Como se algo estivesse para mudar, como se hoje algo decisivo fosse acontecer, apesar disso eu não deixaria aquela sensação tomar conta de mim. Continuei no mesmo ritmo sem me abalar.

De repente um frio percorreu minha espinha. Para ser bem sincera nas últimas semanas eu estava começando a me acostumar com aquele sentimento irrequieto na minha nuca. Parecia que havia alguém vinte e quatro horas por dia me vigiando. Entretanto aquele temor era diferente de quando Vicente me encarava. Era quase como se aquele olhar me transmitisse segurança. Quase como se aquela pessoa estivesse olhando por mim ao invés de estar olhando para mim, entende? Me segurei a isso e passei sem hesitar pelos becos das casas mal iluminadas.

A luz começou a falhar.

A luz... se foi.

Nenhum poste de luz ao redor, até aonde a vista alcançava, estava funcionando como a alguns minutos atrás. Parecia até que houvera sido planejado. O pressentimento de mudança ainda martelava meu subconsiente, então em sinal de alerta "liguei" meus sentidos. Me concentrei em localizar as presenças ao meu redor. Em sentir suas essências. Muitas pessoas estavam em suas casas, dormindo, cozinhando, comendo, assistindo tv. Porém eu podia sentir que logo atrás de mim alguém se encontrava. Reconheci novamente a mesma força vinda de meus pais, Sue e meu estranho visitante noturno. Agora essa força emanava da presença às minhas costas. Inspirei devagar procurando estender meu sentir. E foi então que percebi.

Eu estava tão ferrada.

Ao meu redor pelo menos cinco outras essências, se é que se pode chamar assim, se aproximavam. Pelo meu ponto de vista, essência era algo em sua maioria cheio ou preenchido de coisas, ideias ou de sentimentos bons; se bem que por outro lado também nunca houvera outros casos para comparar. Casos como naquele momento em que nada de bom me rodeava. Os seres, cinco no total, eram como o antônimo da força brilhante e resistente que eu sentira nos meus familiares, Sue e meu protetor próximo a mim. Não havia bondade.

Ouvi um leve farfalhar ao redor e percebi que alguém se aproximava. Como se esse meu tal protetor tivesse sentido assim como eu que estávamos cercados. Que estávamos ferrados.

Procurei me acalmar, mesmo minha consciência me mandando pirar. Dizem que em momentos como esse devemos raciocinar e não nos deixarmos levar pelo medo. Por incrível que pareça aquele pensamento me fez sentir melhor. Inconcientemente me aproximei da presença de essência brilhante e ficamos de costas um para o outro. Percebi que aquela pessoa ou era um homem baixo, ou era uma mulher mediana. Não olhei para ele/ela por medo de que alguém me pegasse de surpresa pela minha distração. Isso poderia ser uma questão de vida ou morte.

Estranhamente senti parte dessa força emanando da presença as minhas costas para mim. Como se houvesse uma transferência.

– Não se mexa - disse a voz atrás de mim num sussuro audível para que somente eu ouvisse.

– Quem é você? -indaguei eu tentando enxergar na escuridão, esperando pelas formas que eu sentia se aproximarem.

– Não acho que esse seja o momento perfeito para os chá da cinco. Que tal depois? - disse a voz de modo sarcástico. Definitivamente um timbre feminino.

Assim que as palavras deixaram seus lábios, cinco sombras se aproximaram em círculo. A Lua estava coberta pelas nuvens nos dando pouquíssima fonte de luz. A brisa antes fresca se tornou fria e um vendaval de folhas se formou do nada. Acho que nem mesmo os ventos se mantinham felizes com aquelas presenças perturbadoras. A luz da Lua então irradiou, brilhando alta no céu. E assim como sempre o bem vem acompanhado do mal, a luz vem acompanhada da escuridão. As cinco formas, percebi, eram três homens e duas mulheres, e no chão onde seus perfils estavam delineados a sombra de seus corpos se moviam quase com vida. Como fumaça.

– Estamos tão ferradas...- pensei alto.

– Não estamos não. Tenha fe, jovem desprovida. - disse a mulher.

Quem dizia desprovida? De onde aquela mulher tinha vindo?

– Preparem-se Sombras, não deixaremos as senhoritas escaparem. -disse o homem bem no meio do círculo. - Se entregarem-se à morte sem grandes problemas talvez mostremos misericórdia em nosso ato final.

Meus Deus do céu! De onde aquelas pessoas loucas vinham? Sombras que se mechiam? Pessoas que falavam como se não fossem desse tempo?

– Como vocês tem a ousadia de dizer tal coisa? Misericórdia?! Vocês são incapazes de sentir tal sentimento!- disse a mulher as minhas costas.

– Já que escolheram este caminho, teremos fazer da forma mais cruel.

Eu devo admitir que eu nunca sentira tanto medo em toda minha vida. E mesmo assim minha cabeça dava voltas, era alguma espécie de brincadeira? Porque sinceramente eu me perguntava se eles não estavam ensaiando alguma peça de Shakeaspeare só pelo jeito de falar.

De repente sussurros.

Muitos sussuros.

Era como se todo sentimento de solidão e medo estivessem sendo transmitidos a mim. Como se eu pudesse ouvir o sussuro de milhares de pessoas. Meu corpo nunca parecera tão gelado. Meu corpo nunca parecera tão sem vida. Sem calor.

Medo.

Esse era o único sentimento que vinha a minha mente. Pensei que fosse morrer. Que aquele seria meu último suspiro. O suspiro mais doloroso, sem sequer poder aproveitar meus últimos momentos de vida com aqueles que eu amava. Sem nunca mais ver o sorriso radiante de Fin como o Sol depois de uma garoa de verão. Nunca mais seria corrigida por Catarina. Nunca mais seria repreendida por Tia Claudine. Nunca mais veria os olhos amorosos de Sue. Nunca mais sentiria o cheiro de tormentas.

Tormentas?

De onde eu tirara isso? TORMENTAS?! Eu estava ficando louca mesmo, nos meus últimos momentos de vida a única coisa que vinha a minha mente era criatura mais arrogante e cheia de si mesma que eu já conhecera. Como raios isso podia acontecer? Eu o tinha visto uma única vez. Quero dizer, duas vezes. E uma dessas vezes involvia uma garota assustada e um intruso a procura de artefatos antigos, e bem, a outra envolvia cílios adoráveis e uma garota irritada. Apesar do sentimento de medo e terror estar ao meu redor e em toda parte, eu já podia respirar normalmente. Era quase como se pensar em um certo alguém me ajudasse a me centrar, a colocar meus sentimentos induzidos de lado e concentrar nos meus verdadeiros pensamentos. Os sussurros ainda não se calavam. Eu pouco podia fazer além de agonizar no chão. Meu corpo não parava de estremecer e eu tinha certeza que meus lábios estavam roxos de frio. A cada momento eu podia sentir o desespero aumentar. Era como se parar de pensar na pessoa arrogante me fizesse voltar a terrível sensação anterior, os sussurros voltavam mais fortes, meu corpo eu quase não podia mexer e um sentimento horrível de escuridão pairava sobre minha mente, como se uma nuvem negra se sobrepujasse sobre minha cabeça. O infortúnio, a dor, a falta de raciocínio lógico, tudo tomara conta de mim. Por um minuto achei que aquele fosse meu fim. Com um resquício de força abri meus olhos e vi as cinco formas se tornarem violentas, atacando minha ajudante.

Porque ela não perecia no chão como eu? Talvez aquele tal poder brilhante fosse o segredo.

Me senti sozinha no mundo.

Sem ninguém para sustentar meu corpo enquanto eu sucumbia a morte, sem mesmo esperançosa de poder sobreviver mais do que alguns minutos. Meu corpo formou uma concha frágil no chão. Em posição fetal eu segurava minha cabeça entre as mãos com agonia. A sensação só piorava a cada minuto. Agora eu podia sentir as sombras que antes só se moviam com o vento tentando me alcancar. As sombras daquelas cinco pessoas pareciam rir de mim. Pareciam querer me alcançar, me derrubar. Pontadas de dor por todo meu corpo me afetaram com violência. Vils dores era as piores que qualquer uma que eu tivesse tido. O medo se transformou quase em fobia, em terror. Meu corpo parecia ficar ainda menor sob o asfalto da rua abandonada à luz da lua. A dor se tornou tão excruciante que eu podia jurar que cada centímetro de osso do meu esqueleto estava sendo quebrado em milhões de pequenos pedacinhos. Lágrimas frias atingiram meu rosto. Minhas lágrimas, meus gritos, meu desespero. E muitas risadas, quase gargalhadas de felicidade, aquelas sombras se divertiam as minha custas. Se é que elas podiam sentir felicidade. Quase como se as sombras fossem uma parte viva de cada um dos membros do grupo que nos rodeava. Minha garganta ardia de dor pelos gritos extremamente horrendos que eu ouvia saírem dos meus lábios.

Pensei na minha companheira a esmo, sozinha tentanto sobreviver a estas criaturas maléficas. Tenha fé, jovem desprovida. Não foram estas suas últimas palavras dirigidas a mim?

Tenha fé, jovem desprovida.

Fé. O que era fé? Crer em algo impossível. E a firme opnião de que algo é a verdade, sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confianca que depositamos nesta idéia ou fonte de transmissão. A fé é contrária a dúvida. Eu devia ajudá-la. Ela estava ali, afinal, para me ajudar.

Tenha fé, jovem desprovida!

Pensei na única coisa que me fazia ter raiva, que me fazia centrar em algo mais. Algo que me fazia ouvir meus próprios pensamentos. Ele.

– Ah! Como você consegue se olhar no espelho de manhã? Eu só tinha onze anos!

– Eu olho da mesma maneira que você não consegue tirar seus olhos de mim.

Ele era a criatura mais irritante que eu já conhecera. Ah! Só lembrar sua arrogância, me deixava nervosa.

Tenha fé em você mesma. Disse a mim. Eu precisava ajudar a pobre mulher. Meus pensamentos estavam se focando. Meus medos, a escuridão, a dor embriagadora, os sussurros, tudo isto estava indo embora. Assim como as sombras já não se estendiam para mim. Senti algo diferente em mim mesma. Fé. Esse era o sentimento que ganhava espaço em mim. Este era o sentimento que reconheci em Sue, na mulher ao meu lado, em meus pais, nele. Mas era uma fé diferente, mais forte, mais poderosa. Eu quase podia ver a nuvem inquietante se esvanecer de sobre a minha cabeça. Eu podia me sentir mais forte. Mais brilhante por dentro.

Separei minha mãos da minha cabeca que já não doia. Levantei aos poucos ainda um pouco ofegante pelos gritos insurdecedores que saíram da minha garganta. Meus músculos antes retesados agoram podiam relaxar. E meus olhos antes cegados pela aflição se abriram para a fé. Todos os cinco seres ao meu redor que antes estiveram atacando minha companheira pararam aos poucos o que estavam fazendo e me encararam de olhos arregalados. Onde antes se ouviam gargalhadas de contentamento com o mal, agora uma linha fina, mas resistente de odio os marcava. Seus olhos antes brilhantes de deleite se encontravam opacos e surpresos por verem a jovem antes desprovida, agora revestida de fé.

– C-Como? M-Mas... - gaguejou um. Pude ver uma linha tenue de medo que se foi tão rápido que me perguntei se de fato a vi.

A mulher, antes foco da atenção de seus atacantes, agora aproveitava a oportunidade de se livrar do círculo e assim se juntar a mim. Percebi que um único objeto enfeitava seus cabelos. Uma presilha complicada com fios delicados de metal que se intrincavam com as mechas. Aonde o adorno tocava seus fios castanhos uma nova cor tomava conta deles. Parecia que haviam sido banhados em tinta reluzente. A mulher era pura fé.

Senti que sua confiança passava a mim e a minha a ela. Nem um único arranhão em seu corpo. Os cinco, que vestiam vestimentas antiquadas a época, foram alvo da fúria dos ventos. Um vendaval os cobriu e pude ver em seus olhos que eles o causaram. E como num piscar de olhos se foram. Desapareceram.

– Mas o que-?

– Nao faço a mínima ideia. - disse a mulher parecendo desconfiada, como se fosse algum truque e daqui a pouco eles nos pegariam de surpresa.- Mas vou descobrir.

– Quem eram eles? O queriam comigo? -perguntei a ela.- Não diga que não está metida nessa história porque sei que esteve me seguindo nas últimas semanas.

Seu olhar era de surpresa quando me olhou. Então sorriu de forma misteriosa.

– Nada melhor do que uma prova para levá-la comigo.

– O que disse?

– Querida Laura, está na hora de saber toda a verdade.

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– Então você está dizendo que tudo o que eu vivi era uma mentira? - indaguei sentando na beira da minha cama de volta a mansão.

– Sim, infelizmente. - respondeu Arina, a mulher que agora sentava a minha frente na confortável poltrona.

– O que então era verdade?

– Serafina é mesmo sua irmã, seu nome é Laura, seus pais morreram e Claudine Chevalier ainda é sua tia.

– Isso é tudo o que eu tenho na vida, não resta mais nada para se encaixar em "mentiras".

– Tudo bem, vamos começar do começo. Conhece um livro chamado Livro dos Contos?

– Conheço, mas o que isso tudo tem haver comigo?

– Conhece Core?

– Claro, li sobre tudo isso durante minha infância inteira. O Rei Auster, a Rainha Sophia, Yz.

Espere um momento. Yz era a fé em manifestação de força e poder. Exatamente como a que eu sentira em mim durante aquele estranho acontecimento há alguns minutos atrás.

– Que bom que Timótio teve a sensatez de escrevê-lo.

– Escrevê-lo? Mas meus pais nos deram o livro.

– Não querida. Eles escreveram para que mesmo que eles morressem você e sua irmã ainda teriam algo em que se basearem. Eles escreveram o que não puderam contar a vocês pessoalmente.

– O que quer dizer com isso? Que eles viveram tudo isso? Que Core...existe?

– Exatamente.

Aquela mulher estava ficando louca. Ela devia ser uma daquelas vicadas em histórias fictícias que para suprir as desilusões pelo mundo real criara um mundo fantástico baseado nos livros.

– Olha, eu realmente agradesço por ter ficado lá comigo, apesar de não ter ententido o porque da perseguição durante semanas, mas eu acho que não deveria se iludir desta forma. Essa não é a maneira correta de lidar com as dificuldades da vida, sabe?

– Eu não tenho problemas sociais nem psicológicos, Laura. - disse ela cética, como se eu fosse a que estava precisando de assistência. - Se você quer uma prova, se olhe no espelho.

Eu tinha certeza que não ajudaria em nada me olhar no espelho. Não tinha nada haver com a conversa. Ela devia ter problemas bem profundos, não que eu tivesse algum problema com isso, mas dizem que devemos tratar essas pessoas com paciência. Olhei seu perfil. Uma mulher nos seus trinta anos, cabelos longos presos num rabo-de-cavalo, uma pessoa esguia e magra, mas não exatamente delicada. Seu adorno preso na cabeça já não brilhava mais e sinceramente me perguntava se alguma vez aquilo tivera de fato acontecido. Se Lara Croft já não tivesse sido interpretada por Angelina Jolie eu apostaria que Arina ficaria com o papel. Suas roupas eram estranhas, feitas de couro e suas botas eram leves e flexíveis. Num dia de calor ela devia derreter sob o sol quente.

Ninguém diria que ela era louca.

– Tudo bem.- disse eu num suspiro paciente, como se estivesse conversando com uma criança.

Me levantei e fui até ao banheiro em anexo com a suíte. Olhei meu reflexo boquiaberta.

– OH MEU DEUS!

– Eu te disse.

Meus cabelos estavam com as pontas brancas. Não do tipo descolori e vou pintar de azul, mas sim meu cabelo está ficando branco das pontas até a raiz! Do tipo cheio de purpurina! Um brilho sinistro irradiava bem de leve.

– O que você fez?!

– Eu? O que eu tenho haver com isso? Você usa Yz e eu sou a culpada?

– Isso é porque eu usei Yz? Será que vai sair?

– Claro o que seria? Você envelhecendo ao contrário? E sim Laura, com o tempo se esvai, é temporario, como aconteceu comigo.

– Possivelmente, ou... estou ficando louca. Mas mesmo que essa sua teoria esteja certa, o que eu não estou dizendo que está, como você explicaria que o meu cabelo está branco e nao uma das 7 cores do arco íris?

Os Conselheiros de Tinta eram caracterizados, de acordo com o livro, pelas suas características físicas da cor correspondente a sua posição. Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, indigo ou violeta.

– Yz de Caçadora.

De repente a porta se abriu de supetão e eu quase pulei de tanto susto. Era Sue.

– Que bom que veio Sue. Acho que tinha razão. Laura é a menina. - disse Arina se referindo a mim.

– Você a conhece? -indaguei à mulher que conhecia desde que fora morar na mansão de tia Claudine, com descrença.

– Sim, querida, mas não se assuste, eu sei que é difícil de entender, mas vai se adaptar a ideia, sei que vai.

– Me adaptar a uma fábula, é isso? Não acredito que você também sustente essa ideia maluca. Justo você que sempre foi tão sensata, Sue!

– Querida, se eu acredito é porque é a verdade. Sabe que não mentiria a você. -nisso Sue tinha toda a razão. Ela nunca mentiria para mim.

– Isso quer dizer que você os conheceu? -perguntei e soube que Sue saberia a quem me referia.

– Claro morávamos junto em Core, quero dizer eu e sua mãe nos conhecemos lá. Seu pai vinha de outro reino.

– E se eu acreditasse em você, como poderia provar que o que diz é verdade?

– Vamos dizer que talvez a prova disto esteja em seu coração. Talvez você já saiba a resposta a essa pergunta. Sei que é difícil ir contra a lógica.

Isso me lembrou de como eles morreram. Uma pulguinha atras da orelha sempre havia me incomodado.

No fundo, no fundo, eu sempre soubera que havia mais na história do que a contaram a nós. A casa pegara fogo devido a um vazamento de gás. O detalhe era que meus pais nunca cozinhavam, a maioria das comidas eram descongeladas no microondas. Então, qual seria a chance dos dois estarem na cozinha quando tudo explodira? Mas este era um lado do meu passado que eu afundara fundo sem questionamentos.

Meu cabelo mudando de cor. O fato de sempre ter sentido aquela força, a Yz, emanando de Sue, minha mãe e meu pai, era minha mais concreta prova já que eu mesma pudia sentir. Mas se aquela força era Yz, então significava que ele era corino? Que nascera nas llhas Castell?

Minha vida sempre fora normal, inclusive sem graça. Quando finalmente chegava algo para contestar essa realidade me peguei hesitando. Com um suspiro de coragem disse:

– Se Core existe mesmo então quero conhecer este lugar, desde que não envolva pózinhos brancos alucinógenos, estou dentro.

– O que quer dizer com isso, Laura? - perguntou Arina surpresa.

– Quero dizer, proxima parada: Core.


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