Jogo de Palavras escrita por Blitzkrieg


Capítulo 9
Capítulo 9: Furto Emocional


Notas iniciais do capítulo

Deixe-me fazer uma observação: o código penal é composto de dois tipos de sanções, a pena (privativa de liberdade, restritiva de direitos e multa) e a medida de segurança (detentiva ou restritiva). A multa é um tipo de sanção penal ( pena de multa). No código penal daquele ano, quando ocorria o crime de furto, poderia ser acatada a pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa,ou ainda de forma alternativa, com a pena de prisão, a exemplo do crime de perigo contágio venéreo, previsto no Art. 130, cominando pena de detenção, de três meses a um ano. Será que o furto do sucesso, cominando na desvalorização (em nível emocional) de um ato considerável, promovendo a queda da auto-estima do indivíduo, depressão, angústia e diversos danos morais e emocionais, poderia ser inserido neste processo do código penal? Ao nível da razão, tudo isto seria baboseira. Infelizmente, a razão reinava naquela época, de uma maneira crua, fria e arcaica. Não era a maneira correta de analisar as coisas, ou melhor, pessoas.



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''Placar das frases Bitul: 1x1''

 

A aula prosseguiu normalmente, enquanto eu comemorava mentalmente o meu sucesso. Consegui empatar o placar de uma maneira a prova de previsões para meu adversário. Enfrentar o Ivan no jogo de palavras era uma tarefa que requeria aptidões incomuns, dentre uma delas uma ousadia extrema. Além disso, estava enfrentando o próprio criador do jogo e este fator era suficiente para elevar minhas aptidões ao limite.

 

Não agüentava mais esperar, eu estava visivelmente ansioso para descobrir qual seria a opinião de meu amigo sobre minha reviravolta. Observando-o de meu lugar, era difícil perceber seu estado emocional. Podia notar simplesmente que ele estava atento as explicações do professor. Talvez esta atitude tivesse a finalidade de disfarçar um sentimento de raiva ou qualquer outro semelhante que ameaçava dominá-lo a qualquer momento. Certamente não tinha como saber. A dúvida alimentava a ansiedade e esta situação perdurou até o soar libertador do dispositivo do colégio, anunciando o final da aula e início do intervalo obrigatório.

 

Tratei imediatamente de me levantar e me dirigir até meu oponente, porém vários colegas me impediram devido ao tumulto que se estendeu até a sala se esvaziar. Ivan havia se retirado da sala em meio à multidão e eu permaneci estagnado, no centro da sala vazia, realizando um breve interrogatório particular. Será que havia exagerado? Será que o magoei de alguma forma? Estava decidido a encontrar as respostas e abandonando as palavras sobre o assoalho branco e brilhante, me retirei para o pátio.

 

Após alguns segundos de caminhada, avistei Ivan apoiado na parede, no mesmo local de sempre. Ele me olhou com uma expressão serena no rosto, sem ressentimentos, aparentemente, e isto me encorajou a lhe fazer algumas perguntas.

 

- Então? Como me saí? - sorri, meio sem jeito e receoso em receber uma repreensão pela ousadia.

 

- Bem. Muito bem. - sorriu, porém se prendeu a um semblante indiferente.

 

Conhecia muito bem esta expressão. Uma decisão importante havia sido tomada, algo que provavelmente o intrigou desde aquele momento. Acabei me aproximando corajosamente, para lançar algumas palavras-bomba ao alvo.

 

- Ainda estamos jogando? - indaguei, de forma cautelosa.

 

Todos os músculos faciais e suas devidas contrações me impulsionaram a lançar tais palavras possuidoras de um aspecto incomum. Eram palavras que poderiam machucar alguém, ou melhor, com certeza machucariam alguém, porém existia uma finalidade objetiva, inerente a uma verdade maior, um bem maior. Para que os fins justificassem os meios, bastava apenas a resposta, aquela que provavelmente destruiria, rebaixaria o nível de minha façanha, inevitavelmente.

 

- Não. - disse, sem pena.

 

- Por quê!?    

 

Explodiram! Como eu disse anteriormente, as conseqüências se tornaram catastróficas. Mesmo assim, a finalidade estava interligada a uma justificativa sensata. Acho que aquele sentimento tratava-se de tristeza. Não por ter tido a confirmação de que meu ato provocou um abalo em nossa amizade, ultrapassando um limite agora conhecido, mas sim por minha façanha não ter recebido o reconhecimento necessário e tão desejado. Se aquilo era tristeza, estava direcionada apenas ao fato de que a lembrança de meu sucesso, obtido com tanto esforço, havia se desintegrado tão facilmente. O furto havia se realizado e o puro egoísmo do arquiteto pairava no ar.

 

- Por que preciso fazer algumas reformas neste jogo. Ele está um pouco, digamos, desengonçado.

 

- Desengonçado!?

 

Era engraçado como eu percebia que as palavras de Ivan, se assemelhavam a cápsulas algumas vezes, guardando em seu interior uma verdade que não apresentava qualquer relação com o que o exterior apresentava. Apesar de conseguir ocultar suas verdadeiras intenções tão bem, neste momento não me deixei enganar, pois o sentimento ruim ainda estava presente e forte.

 

- Sim. Preciso modificar algumas coisas. - repetiu Ivan, ajeitando seus óculos em seguida.

 

- O que está acontecendo!? Você nunca levou em consideração minhas opiniões sobre mudar as regras do jogo! Somente porque eu consegui te colocar contra a parede, você resolve do nada que tem que mudar o jogo!? Este jogo não foi feito para me ajudar? Então por que quando eu finalmente consigo fazer algo tão bom você decide do nada que irá mudar tudo? - retruquei.

 

Aqui podemos ver minhas palavras deficientes novamente. Como alguém poderia retirar do nada algo para mudar tudo? Um paradoxo. Infelizmente aconteceu. Acabei nesta exaltação realizando alguns traçados no ar com minhas mãos, demonstrando o mar de sentimentos que me dominou naquele momento. A raiva se destacava e por pouco não cruzei a linha entre a simples raiva e puro ódio. Se houvesse cruzado, possivelmente perderia minha única amizade verdadeira, daquela única pessoa que se dispôs a me ajudar sem cobranças.

 

Ivan me observava com um olhar de compaixão e aquilo contribuía para eu me exaltar um pouco mais. Contudo, o silêncio me abraçou quando ouvi as palavras de Letícia tão próximas.

 

- Oi gente! Vim aqui avisar vocês que o jogo de vôlei será hoje a tarde. Vamos assistir o Adriano jogar! Vamos torcer para ele, não vamos?

 

Um turbilhão de hipóteses subitamente dominou minha mente, quando a mão macia da garota pousou sobre meu ombro direito. Quando virei meu rosto me deparei com a face da menina próxima a minha. Todos os fenômenos fisiológicos iniciaram seus processos individualmente, gerando em conjunto o corar de minha pele, o acelerar dos meus batimentos cardíacos, tudo isto entrando em sincronia com as perguntas que assolaram minha mente. Foi engraçado como um sentimento de ódio foi facilmente substituído por um sentimento que para meu ponto de vista é indecifrável. Caro leitor, poderia simplesmente marcar nestas folhas que naquele momento senti amor, mas hoje sei que não passou apenas de conseqüências de estar tão próximo de uma menina que atendia aos requisitos estéticos da sociedade.

 

Para eu poder sentir amor por aquela garota foi preciso muito mais do que um simples pressionar de dedos sobre meu ombro coberto pelo tecido fino da camiseta do uniforme e uma aproximação que parecia romper uma série de limites. Estou sendo apenas criterioso na classificação, pois será preciso fazer algumas diferenciações futuramente.

 

Voltemos à questão das hipóteses que formulei naquele breve momento. Haveria alguma relação entre a atitude de Ivan e o seu desejo de incluir a Letícia no jogo? Será que dentre essas reformas poderia existir alguma referente a tal inclusão? Estas foram algumas das indagações que sugiram abruptamente. Deveria ter formulado muitas e muitas, porém por ter sentido o cheiro adocicado daquele ser próximo a mim, restaram-me apenas duas perguntas e o restante havia se desmaterializado.

 

Gaguejei, senti meus músculos adormecerem, pensei em me aproximar de seus lábios, mas a razão me segurou. Muito obrigado razão! Agradeço-a até hoje. Não era assim que as coisas deveriam funcionar naquele momento.

 

- Você vai lá, não vai, Lucas? - indagou, permanecendo na mesma posição.

 

- Eu? Onde? O quê?

 

As palavras às vezes sofriam curtos-circuitos e acho que isto não era uma propriedade pertencente unicamente a eletricidade.

 

- O jogo de vôlei que será hoje à tarde. O Adriano participará. - explicou Ivan, nos observando com uma expressão um tanto curiosa, da qual um meio sorriso me deu uma pista de que o próprio havia descoberto algo interessante.

 

- Isso! - confirmou Letícia, se distanciando de mim após retirar a mão de meu ombro. - Gostaria muito que vocês dois fossem. A Carol também irá.

 

Esta última informação não havia me agradado muito. Eu definitivamente não gostava muito da personalidade da Carol e estranhamente também não gostava da personalidade da Letícia; porém, por alguma razão, esse desgosto se anulava algumas vezes quando a mesma se aproximava. Isto era muito estranho, pois algumas vezes eu sentia repulsa de beijos ou um simples toque seu. Entretanto, na maioria das vezes, ocorria isto que relatei.

 

Não me leve a mal, o repúdio a que me refiro se originava unicamente do meu desgosto pela sua personalidade e unicamente isto. Tão simples e moralista, característica própria de garotas em tal idade naquela época. Pelo menos sobre a maioria podia se formular tal juízo.

 

- Eu estarei lá. - disse Ivan, se aproximando de Letícia.

 

- Também irei. - disse, automaticamente.

 

Por alguma razão a imagem de ambos se divertindo juntos se projetava na minha imaginação e isto não me agradava muito. Eu também não poderia deixar o garoto a convidar para participar do jogo.

 

- Ótimo! Nos encontraremos lá! - exclamou Letícia, despedindo-se de nós, se retirando logo depois.

 

Após a garota estar a uma boa distância, Ivan tratou de finalizar nosso assunto antes que eu rebatesse suas pretensões.

 

- Então é isto. Ficamos entendidos. - disse, colocando uma de suas mãos em meu ombro antes de passar por mim, seguindo em direção a outra parte do pátio.

 

Não olhei para trás. Aqueles eventos estranhos me incomodavam, mas não havia motivos para continuar esquentando os neurônios exaustivamente. Ele não queria jogar e esta era a sentença principal. Se a Letícia tinha alguma coisa a ver com isto, descobriria mais cedo ou mais tarde. As últimas palavras de Ivan que se transformaram em coringas de um baralho qualquer não me intrigaram, pois dependendo do jogo um coringa poderia ser valioso ou não possuir valor algum, a ponto de ser até mesmo rejeitado. Eu rejeitei aquele coringa naquele momento, mesmo sem conhecer a natureza do jogo. Não devia ter feito isto, pois poderia ter evitado futuros constrangimentos. Parecia ser fácil ignorar, mas não consegui, não mesmo.

 

O que eu poderia fazer durante aquele intervalo que se tornou os 15 minutos mais extensos e exaustivos ocorridos até aquele momento? Ora, pelo menos a maioria dos alunos procurava repor as energias para as próximas aulas torturantes. Eu, sozinho, agradecia por ter que assistir longos períodos de aulas logo depois. Justamente pelo motivo de que eu gostaria de uma condenação. Como de costume, desejava um martírio a altura dos meus atos que julguei estúpidos: desafiar o arquiteto imponente, permanecer estático em um momento impróprio, mutilar minhas palavras impiedosamente, destruir minha auto-estima pulverizando-a, este último ato talvez o pior de todos. 

 

Quantas alternativas me restaram? Decidi aguardar o término do intervalo em meu lugar dentro da sala. Poderia ter puxado assunto com outros alunos, ter conversado sobre os assuntos comuns da idade. Poderia ter exercitado minhas palavras e ter estudado as próximas. Porém, optei por esta escolha tão menos complexa. Sentado em meu lugar, não notei alguns alunos que posicionados em seus lugares conversavam entre si, cochichando. Estava cansado, cansado de ser insignificante, de presenciar a decadência de minha auto-estima após uma elevação notável. Este movimento pendular, representando o valor de minha existência, oscilou durante a minha vida toda, poucas vezes alterando-se o ritmo. Recolhi meu rosto aos meus braços cruzados, deixei a escuridão, do fechar dos meus olhos, me proteger de qualquer imagem do mundo exterior. Estava eu e meus pensamentos novamente. Pior companhia naquele momento não poderia existir. Arrependo-me de ter percebido tal coisa somente alguns anos depois.

 

Consegui ouvir alguns cochichos entre os alunos que sobraram na sala. "Então ela está se encontrando com ele?" "Parece que sim. Se isto for verdade a escola vai pegar fogo quando descobrirem!" "Ah! Não acredito! Isto não pode ser verdade!"

 

- Do que estão falando? - cochichei comigo mesmo.

 

Este foi o momento em que meus pensamentos deixaram de me atormentar. Eu deveria ter prestado mais atenção nas palavras que chegaram aos meus ouvidos. Talvez se eu fosse um pouco mais maduro, teria me agarrado a elas com a intenção de evitar os pensamentos, antes que as lágrimas ameaçassem escorrer. De qualquer maneira, era tarde demais. Meus pensamentos encadeados levaram-me a conversa de meus pais que eu presenciei em silêncio. Esta foi a válvula de escape, ou melhor, a torneira da angústia. As lágrimas escorriam timidamente, e imagens de minha insignificância se projetavam em lembranças do meu passado. De todas as vezes que não pude demonstrar ser uma muralha em forma de pessoa. Não tinha astúcia para proteger meu bem mais valioso (a aceitação de como eu era). Eu simplesmente deixava os outros se apoderar deste bem, distorcendo-o, deixando-o desgastado como uma louça surrada. Inocentemente, eu procurava polir este objeto, para que adquirisse o brilho original. Mas como todos os objetos desgastados, reconstituí-lo ao estado original era praticamente impossível.

 

"Placar das frases de Bitul: 0x0"


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Notas finais do capítulo

Por favor, quem ainda acompanha esta fic deixe reviews >.<...Desculpe a demora em postar.