Reveille escrita por MayaAbud


Capítulo 31
Ódio


Notas iniciais do capítulo

"Você se foi
Você não me sente mais aqui

O pior já passou e nós podemos respirar de novo
Eu quero te abraçar bem forte, você tira a minha dor
Há muita coisa deixada de aprender, e ninguém contra quem lutar
Eu quero te abraçar bem forte e roubar sua dor
Porque eu fico em pedaços quando me abro
E eu não me sinto como se eu fosse forte o bastante"
—seether, Broken



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Ponto de vista de Renesmee

_ Renesmee, é ele_ disse Tifany enquanto entrávamos no bar apontando para o rapaz que tocava violão, seu ‘quem sabe futuro namorado’. Sorri encorajando-a.

 Havíamos pegado um táxi para chegar ali. E eu ainda me perguntava o que estava fazendo ali, e sempre me lembrava que estava tentado parecer normal, interagir... Sentamos e logo os rapazes começaram uma conversa sobre as possibilidades da noite. Concentrei-me nas notas e nos tons da música que tocava, até que percebi que estávamos apenas Christopher e eu na mesa.

_Onde estão... _ comecei. Ele limitou-se a apontar para nossa esquerda onde Tifany estava com seu pretendente e Alex conversava com uma garota.

_Não gostou muito daqui, não é?_ conjecturou.

_Não costumo sair_ eu já havia acostumado com o cheiro das bebidas alcoólicas, não era algo que me incomodasse, embora a fumaça no ar, que os humanos talvez não pudessem ver, me incomodasse um pouco, deixava meu olfato pouco confiável, e minha espécie tende a se sentir vulnerável sem esse sentido, algo inerente aos predadores.

Tifany voltou à mesa com o cara do violão. Uma hora depois, eu decidi que já era hora de ir. Aproveitei um intervalo entre os beijos de Tifany para me despedir dela. Alex estava em algum lugar com alguém e Christopher tinha ido ao banheiro.

Chegando à rua inspirei fundo o ar limpo e frio, decidindo que correria o caminho para casa, quando uma voz conhecida me chamou. Eu obviamente não esquecera nada. Virei-me esperando.

_Ainda é cedo_ disse Chris caminhando até mim, ofegante_ Hã... Vai caminhando para casa?

_Até achar um táxi. Gosto de caminhar.

_Vou com você, se não se importar_ comecei a andar e ele me acompanhou_ Sabe que estamos longe, não sabe?_ olhei-o desafiante, eu não o tinha convidado, afinal. _ Ah, não que eu esteja reclamando!

_Se é cedo porque não volta?_ tentei não parecer rude. E achei que não tinha conseguido quando sua freqüência cardíaca aumentou.

_Honestamente... _ hesitou_ Porque eu só vim por você_ murmurou e depois tossiu forçadamente.

Sabia perfeitamente o que as palavras significavam, mas minha mente trabalhava para encontrar um significado mais aceitável. Ele continuou:

_Você me deixa curioso, me confunde.

Tentei automaticamente associar o que ele dizia ao que eu me sentia, não era nada assim.

_E achou que me decifraria hoje? Não há nada. _ encolhi os ombros.

_Pensei que pudéssemos conversar, não havíamos combinado de sermos bons amigos?

_Bons colegas de trabalho_ corrigi e ele riu.

_Esse seu jeito... Parece que quer se misturar, mas não fazer amizades... Sabe, não parece muito comum agindo assim. Porque afasta as pessoas?

_ O que exatamente você quer saber sobre mim?_ decidi que seria mais seguro se eu respondesse suas perguntas, não precisava de ninguém me vendo como um grande mistério a ser descoberto.

 Ele sorriu e despejou uma série de perguntas banais enquanto caminhávamos. O que eu gostava de fazer além de desenhar e tocar, onde eu nascera, o que acabou me levando a falar dos lugares por onde passei, sem jamais explicar a razão real de meus hábitos ciganos. Em alguns minutos com aquele ‘estranho’ eu falei mais que em meses com minha família. Acabei por falar neles também, não vi sentido em mentir então não falei de meus muitos “irmãos” e sim de meus avós e tios.

 _Meu pai é inflexível, às vezes me pergunto se sou mesmo filho dele tamanha é a diferença entre nós, já minha mãe... Herdei dela o amor à arte e à beleza. _ Chris encolheu os ombros falando da própria família.

_Shakespeare disse que há mais de nossos pais em nós do que supomos_ falei.

_Talvez_ houve um instante de silêncio_ Já foi ao Louvre?_ balancei a cabeça em negativa_ Quer ir amanhã?

Meus domingos eram terríveis para minha sanidade e certamente não seria um sacrifício ter a companhia dele, era mais fácil falar com ele do que eu pudera imaginar. Aceitei o convite e ele , cansado, lembrou-me do táxi.

***

 _Café ou chocolate quente?_ Christopher perguntou quando nos encontramos perto do museu.

_Chocolate_ ele me entregou um dos copos brancos que tinha em mãos.

 Visitamos os salões de esculturas enquanto conversávamos, e eu me reacostumava a manter um diálogo. Encontrar-me interessada no que outra pessoa tinha a dizer me deixou um tanto atordoada e eu me vi presa às teorias filosóficas de um jovem humano de 21 anos.

_(...) não com a digital, que você pode apagar se não fica bem. Sabe as antigas, lembra dos rolos de filme para revelar? Eu gosto dessas_ contava-me sem saber que eu só conhecera uma dessas máquinas porque Alice guardara como relíquia.

_Porque prefere essas?_ apontei para a que segurava.

_Para mim é fascinante parar o tempo, congelar aquele segundo para sempre mesmo com as imperfeições. Sem falar que é demais ver a imagem, um rosto se formando no papel na hora de revelar.

No decorrer do tempo eu estava usando as pinturas a nossa volta para mostrar as cores das pedras em La Push, e usando as mãos para falar de como as ondas batiam nos penhascos e como o céu pesado parecia encostar-se ao pico rochoso. Suspirei saudosa lembrando de correr entre o labirinto de jade que é a floresta.

_ Acho que não conseguiria viver num lugar assim por muito tempo. Sendo de Los Angeles eu gosto de calor e sol, mesmo Paris às vezes me deixa louco cm os serenos_ Eu ri da careta que ele fez para o céu levemente acinzentado. Não foi um riso intenso, mas foi sincero e inesperado. Chris me olhou, um sorriso insondável se abrindo nos lábios.

_Impressão minha ou é a primeira vez que a vejo sorrindo?_ olhei para o chão desviando os olhos dos dele.

A primavera estava chegando, eu havia melhorado em prestar atenção e conversar, especialmente com Christopher. Fui a casa dele no domingo seguinte a nossa ida ao museu. Seu apartamento era simples, não era grande, mas tinha um quarto escuro onde ele revelava fotos à moda antiga. Embora eu não pensasse sobre nossa proximidade, infelizmente, não podia impedir que outras pessoas pensassem.

_O que está rolando entre Chris e você, é sério?_ perguntou Tifany uma tarde.

_Costumo levar meus amigos a sério, sim_ respondi. Jodelle riu e Tifany fez careta.

 Não poderia ter certeza, porém imaginava (pelo modo como seu coração disparava e os olhos perdiam o foco quando as pupilas dilatavam) que a cortês insistência de Christopher em manter-se próximo e compreensivo, mesmo nos meus piores dias, não tinha a ver com a razão pela qual eu permitia sua proximidade. A verdade é que de todas as distrações que tentei, ele era a melhor. Eu não tentava me distrair, Chris o fazia por si só, por isso era tão eficaz. E egoísta. Era muito egoísta de minha parte. No entanto sua reação a mim talvez fosse apenas parte de quem eu era, ele reagia à minha humanidade incompleta. “Ninguém resiste a ela”, a voz de Bella soou em minha mente, numa lembrança de quando estive entre humanos pela primeira vez, em La Push, e fora muito bem aceita. Era apenas o apelo vampiresco com o conforto de ser parte humana, logo ele se acostumaria. Além disso, era fácil estar com ele, Christopher não me olhava com estranheza em momento algum, não me conhecera antes então não tinha expectativas sobre meu comportamento, portanto eu não precisava me conhecer também.

Entretanto, como Alex sabia que eu era um perigo para ele, Christopher sabia da existência de meus segredos, por instinto.

_Você se guarda para você mesma, como se guardasse a caixa de pandora sob a pele_ ele riu após sua conjectura durante o trajeto que fazíamos juntos depois do trabalho.

_Você nem pode imaginar_ falei com ares entediados para demovê-lo da idéia.

_Ainda não acha que sou confiável o bastante ou o quê?_ disse ele um pouco mais sério.

_É mais que apenas confiar_ lancei-lhe um olhar frio_ Teria que matá-lo se contasse_ ele estremeceu e então deu uma risada desconfortável.

_Não seja bobo!_ continuei_ Segredos!_ debochei.

 No dia seguinte organizávamos as mesas para fechar o café. Eu ouvia a conversa descontraída de meus colegas quando lembrei a apreciação de Jodelle pelo piano da sala de Alice. Eu gostaria de ensiná-la no tempo livre, virei-me a fim de lhe propor, quem sabe aos domingos... Então uma coisa boba, se não fosse o sentimento que o fato engatilhou, me paralisou: meu medalhão, dado por minha mãe no meu primeiro natal, o que eu nunca tirava caiu aos meus pés, me inundando com um familiar e sufocante sentimento de perda. O que eu ainda tinha a perder? Como em resposta o rosto de cada ente de minha família lampejou em minha mente. Por um milissegundo revivi o momento em que minha mãe se despediu de mim... “Mais que minha própria vida”, era o que tinha escrito. Meu amor por minha mãe e por todos os demais era o que significava o relicário, por isso eu nunca tirava, ficava sempre junto ao meu peito. Em fim, movi-me rápido tirando o celular do bolso, esperando impaciente chamar duas vezes.

_Oi, meu amor_ a voz ressoante de minha mãe falou.

_Mãe_ respirei com alívio inexplicável_ Como... Está tudo bem?_ perguntei.

_Sim, Nessie. E você? Houve algo?_ indagou preocupada.

_Não houve nada, apenas saudades.

_E nós quase morremos de saudades suas todos os dias.

 Depois de ouvir um pouco sobre todos, nós desligamos. Todos estavam em Seattle, exceto meus pais que estavam na Ilha Bella. Desligando o celular dei de cara com um Christopher espantado segurando meu medalhão e fitando-o muito de perto a minúscula foto.

_Se parece muito com seus pais, é a divisão perfeita. De quem herdou os olhos?_ ele riu_ Bem, agora entendo como você pode ser tão branca_ murmurou ainda olhando a foto.

_Do pai de minha mãe, meu avô Charlie.

_Você era um bebê adorável_ disse ele me estendendo a medalha, que foi interceptada por Tifany.

_Que fofa!_ disse ela analisando a foto_ Nossa! Que gata sua mãe, hein, e seu pai então... _ ela piscou incrédula e me devolveu_ Posso te dar o endereço de um ótimo joalheiro.

_Obrigada_ falei analisando a corrente. O fecho tinha quebrado. Sendo que Bella o comprou num antiquário devia ser mesmo muito antigo...

Como sempre Chris e eu partilhamos parte do caminho.

_Quantos anos seus pais tinham quando se casaram?_ perguntou ele pensativo. Ele vira a foto, era melhor dizer a verdade, ou parte dela.

_Dezoito.

_E ainda estão juntos! Meus pais tinham 25 e já perdi as contas de quantas vezes fizeram luas de mel em suas crises_ ele revirou os olhos, um hábito adquirido de mim, recentemente. _ Eles vivem em Forks?

_Não, em uma ilha no México_ suas sobrancelhas se ergueram em surpresa à minha resposta.

_ Qual ilha?

_Se chama Ilha Bella, ainda não sei se é um nome oficial.

_Sou bom de geografia, mas não lembro dessa_ seu cenho se franziu.

_Bella é o nome de minha mãe_ expliquei constrangida_ Foi um presente por nosso aniversário.

_Quem dá uma ilha de presente?_ ele bufou_ E minha mãe fica nas nuvens por algumas jóias... _ eu tive de rir de sua expressão. Despedimo-nos aí, e decidi que correr era um bom jeito de encerrar o dia tranqüilo e, porque não dizer, agradável que tive.

 Já corria há uma hora, eu estava distante do centro, numa área comercial, porém de cima dos prédios podiam-se ver casas e prédios residenciais ao longe. Saltava de um prédio a outro, quando ao cair agachada, sem o silvo do vento nos ouvidos, pude ouvir murmúrios rudes que soavam como ordens.

Segui em direção ao som, que vinha de um beco, desci para ir pela rua. Ouvi um grito que fora abafado, havia outros sons, algo se rasgando, estalidos, senti cheiro de sangue, não parecia ser muito, mas era sangue. Meu coração disparava frenético e minhas pernas seguiam ferozes.

_Vamos, querida_ murmurava a voz masculina e grosseira_ Shh. Você não quer me ver irritado_ ele riu de modo que fez minha nuca se arrepiar enquanto havia gemidos e grunhidos de dor. Neste momento parei em frente ao beco escuro. Senti uma onda de asco quando vi o homem pressionando-se da forma mais indecente e violenta contra o corpo da mulher: com um braço ele a apertava pela cintura, num abraço por trás, sua mão pressionava um canivete consideravelmente grande na lateral de sua barriga, com a outra mão ele espremia seu rosto contra a parede de concreto.

Levei um segundo observando a cena e mais outro para decidir: a mulher não entenderia nada no escuro, eu daria a ela tempo de fugir.

_Hey_ rosnei com ódio e nojo profundos.

 O facínora virou-se fazendo da mulher um escudo e no movimento enterrando a lâmina em suas costelas. O cheiro do sangue ou o som da pele sendo facilmente rasgada não me atingiu, eu estava num torpor de choque que nunca sentira antes ao reconhecer o rosto arranhado e ferido de Jodelle enquanto seu corpo caía junto à parede, os olhos um tanto perdidos, um grito mudo escapando de meus lábios.

De repente não consegui mover minhas pernas, que formigavam desconfortavelmente, ainda paralisadas pelo choque. Amaldiçoei minha humanidade por não conseguir reagir. O homem dava passos demasiadamente lentos em minha direção, o olhar de mim à entrada do beco, talvez temeroso de que eu chamasse atenção. Jodelle estava perdendo sangue, ambas respirávamos com dificuldade, mas seu coração estava longe de bater como o meu. Este fato me impeliu: dei um passo de lado, devagar, de modo a chegar perto dela. O ser (que eu não podia chamar de homem) fez o mesmo movimento, para o lado oposto, ficando mais próximo a saída. Para fugir ou me encurralar?, perguntei-me. O monstro sacou outro canivete do bolso da jaqueta e apontou para mim, dando-me a resposta.

_Quer entrar na festa, boneca?_ ele lambeu os lábios, fazendo meu estômago se agitar.

_Você é de primeira qualidade_ anunciou totalmente alheio ao que acontecia ali, enquanto um frio que nada tinha a ver com a temperatura me percorreu ao perceber o súbito silêncio quando o coração relutante, que me preocupava, simplesmente parou. Pela primeira vez eu me deparava com um fim definitivo. Não o fim de um pervertido cruel e frio, mas o fim de alguém bom, que tinha uma família esperando a volta que nunca aconteceria.

 O frio em meu corpo deu lugar ao calor estranhamente gélido de fúria e fui decidida em sua direção, ele sorriu. O empurrei de encontro à parede e assisti o terror em seus olhos quando a lâmina partiu-se em meu peito. No calor do momento eu não sabia dizer se havia doído, a névoa vermelha e familiar tingia minha visão e senti meu escudo ondular se dissolvendo em nada. Facilmente o levei ao chão e antes que eu considerasse a hipótese minha mandíbula se fechou na concavidade na base de seu pescoço, com uma mordida lacerante, meus dentes cortando ainda mais fácil que a um animal, no ponto onde se concentrava o calor pulsante. O líquido quente, doce e levemente amargado por alguma substancia tóxica em seu sistema descia com avidez por minha garganta, enquanto eu saciava a sede que não sabia que tinha. Ele se debatia, minha mão tapando sua boca, abafando seus gritos. Eu não tinha veneno para incapacitá-lo, porém tinha força, mais que o bastante. Poderia tê-lo privado da agonia de sentir-se drenado, entretanto eu queria o contrário, queria que ele visse que morreria, que sentisse sua vida sendo tomada como Jodelle sentiu e como eu assisti.

Seus pedidos e promessas tornaram-se murmúrios ininteligíveis enquanto seu sangue me aquecia até a ponta dos dedos. Não acreditava que havia me abstido daquilo, era inacreditável que daquele jeito fosse ainda melhor que minhas lembranças perfeitas do sabor de sangue doado. Uma ínfima parte de mim dizia que estava errado, que era contra tudo o que me fora ensinado e o que eu acreditava piamente. O resto de mim mandava que essa parte se calasse_ o prazer era grande demais para ser ignorado_ e além de tudo o homem ali, merecia aquilo. Matara e morrera.

Larguei, enojada, o corpo inerte e engatinhei rumo ao corpo da garota violentada e morta. Parecia maldade, crueldade do destino que numa cidade tão grande, fosse justo ela, fosse justo eu a encontrá-la... A possibilidade me parecia mínima, no entanto fora certeira. Minhas lágrimas lavavam o sangue de meu rosto, enquanto eu tentava sentir-me arrependida. A satisfação ambígua tornava difícil imaginar outro desfecho. O impulso vingativo versus o frenesi por sangue, ambos levavam ao mesmo resultado: morte e a nefasta satisfação que eu não conseguia reprimir, enquanto ajeitava as roupas de Jodelle de forma mais decente. Passei algum tempo chorando e lamentando por Jodelle, por sua família. Buscando maneiras de tudo ter sido evitado, não conseguia assimilar o fato de termos estado juntas há poucas horas, e agora ela estava morta e eu matara alguém...

O que estava feito estava feito, pensei. Eu tinha dois corpos em um beco. Quando encontrassem Jodelle saberiam o que houve e contatariam sua família. Encontrando o homem veriam uma estranha ferida em meia lua causada por material desconhecido e nem uma gota de sangue no corpo, sairia no jornal, os Volturi poderiam buscar o "indiscreto", minha família se preocuparia: eu estava muito perto do possível “recém criado”. Não poderia ser negligente e deixá-lo ali, parte de meu cérebro decidiu enquanto outra parte dividia-se em se deleitar com o prazer e ainda em lamentar pela vida da humana. Logo amanheceria e só me restava algumas horas.

_Renesmee_ a voz baixa como vento soou... triste? Olhei para cima a tempo de ver o vulto pálido de longos cabelos cair a minha frente com um som quase inaudível para mim. Limpei o sangue e as lágrimas que secavam em meu rosto com a manga da jaqueta.

_ O que você fez?_ perguntou Aileen.

_ Ele a matou_ ouvi-me dizer baixinho.

 Ela me olhou por um longo segundo, tocou meu ombro. Desviei-me de seu rosto inexpressivo fitando os corpos no chão. O que ela estava fazendo aqui?, quis perguntar, minha mente, no entanto, tinha muitos outros desejos: livrar-me daquilo, dos sons, do cheiro, de mim mesma, o colo de minha mãe, os olhos de meu pai, o sorriso de meu Jake...

_Vá para casa_ disse Aileen dando um passo e pegando o corpo do homem. Tentei reagir_ Você não tem experiência com isso, pode fazer alguma bobagem_ disse-me com carinho.

_O que vai fazer?_obriguei-me a perguntar.

_A sudoeste do rio Senna... Vou tomar precauções para que não haja emersão_ disse ela, naturalmente. Hesitei em deixá-la “resolver” aquilo. Porém não tinha certeza de quantas imagens macabras eu ainda poderia guardar por aquela noite.

_ Não se preocupe. Vá_ ela saltou subindo no telhado de um dos prédios que nos rodeava.

 De um telefone público liguei para a polícia informando ter visto algo suspeito no lugar onde Jodelle estava e peguei um táxi, apavorando o motorista com meus soluços. Já podia ver o horizonte cinza claro de mais um dia, embora fosse cedo demais para olhos menos aguçados.

 Mal fechei a portas atrás de mim no apartamento e já arrancava as roupas, voando até a pequena área de serviço depois da cozinha e ateando fogo nelas. No chuveiro eu queria de todo o coração que a água fria fosse eficiente em lavar de mim as imagens que ferviam em minha cabeça e o sabor que fazia festa em meu corpo. Estava confusa, nada parecia no lugar, era como um filme de terror: embora eu me sentisse a vítima sabendo que na verdade era o monstro. Finalmente atingira o fundo do poço, chegara a um extremo: magoara minha família, meu melhor amigo, estava a um oceano de distância e agora matara um homem. Ainda assim sentia-me satisfeita. Tinha nojo do que ele fizera a garota, mas estava feliz e ao mesmo tempo culpada pelo que eu fizera a ele. Ele mereceu, repetia a mim mesma, bebê-lo foi apenas uma conseqüência, o mataria de qualquer forma... Mas Jodelle também estava morta! Eu devia ter agido e tentado reanimá-la, não perdido tempo em saciar a sede...

_Jake... _ choraminguei encarando a tela terminada, o lobo parecia me encarar de volta, me acusando. Naquele momento todas as dores que eu já havia sentido somaram-se a esta nova, e desatinaram. No chão meu medalhão, que eu havia visto cair do bolso quando tirei as roupas, estava ao lado do lobo de pelúcia. Juntei-os e apertei-os junto ao peito, perdendo a noção do tempo.

_Renesmee_ a voz conhecida veio de trás de mim, me fazendo lembrar que eu ainda não sabia exatamente como ela entrava ali. Virei-me, me esticando no sofá e me deparando com Aileen.

_Você a conhecia?_ perguntou.

_Colega de trabalho_ respondi contra vontade.

_Eu sinto  muito, mas...

_Eu agradeço, Aileen, realmente. Mas quero ficar sozinha_ falei voltando a me enrolar em mim mesma. O silvo do vento foi só o que ouvi.

 Passara tempo o bastante para que eu chorasse até não haver mais lágrimas, elas secaram deixando uma sensação desagradável no rosto. Então houveram duas tímidas batidas na porta. Levantei-me assustada e estranhamente cambaleante. Abri a porta mecanicamente, para só ‘acordar’, voltando à realidade ao fitar os olhos de Christopher, que denunciavam o recente choro.

_Está tudo bem? Está doente? Não foi ao trabalho hoje_ lançou ele em voz baixa.

_Um mal estar _menti_ Talvez um resfriado. _ acrescentei dando espaço para que ele entrasse.

_Não achei que devia falar por telefone... _ disse ele enquanto sentava-me no sofá. _Jodelle não chegou em casa ontem... Alguém da família informou na cafeteria hoje que ela foi encontrada morta_ enquanto ele falava meu estômago se retorcia estranhamente e muito concentrada nisso, só percebi que chorava quando inesperadamente ele me abraçou. Seu aroma doce e morno me parecendo mais apelativo que o normal e banalmente sustentável.

_Parece que a encontraram de madrugada... _ ele se afastou de mim falando.

_Desculpe, mas prefiro não saber_ o interrompi não suportando a idéia de uma reafirmação de meu pesadelo. Ele apenas assentiu, os olhos úmidos e tornou a me abraçar. Eu estava cansada demais para pensar outra coisa que não fosse o conforto daquilo, embora não fosse o bastante para amenizar meu desespero. Apenas recostei em seu ombro e Chris afagou minhas costas enquanto eu chorava.

_Você se sente bem? Posso comprar uma sopa, irá se sentir melhor.

_Já me sinto melhor, obrigada_ falei desvencilhando-me gentilmente de seus braços e buscando ver as horas.

_Pierre não vai abrir hoje, nem até a próxima segunda feira_ esclareceu ele_ Bem... Eu vou indo agora...

_Fique_ meu horror em estar sozinha murmurou para ele enquanto eu buscava a razão para isto, no entanto aquela altura eu não tinha condições de ser muito sensata e isso me pareceu um bom motivo.

 A sugestão de um sorriso surgiu em seu rosto e ele se acomodou no sofá, ele tinha um jeito bonito de sorrir. Não houve constrangimento algum de parte nenhuma pelo silêncio que pairou no ar. Mas ele era inteiramente humano e antes que eu quisesse me mexer ele o fez...

_Que tal tomarmos um ar?_ sugeriu.

_Não... Se quiser ir, eu...

_Também estou triste por Jodelle, mas ficar assim infelizmente não muda as coisas_ ele acreditava mesmo no que estava dizendo, porém não tinha idéia da dimensão daquilo.

_Você está muito abatida, apesar de ainda mais corada_ ele tocou de leve em minha bochecha_ E pensei que fosse querer ir a um bom joalheiro_ olhou para a corrente em minha mão.

 Depois de irmos a uma joalheria, Christopher conseguiu manter parte de minha atenção numa conversa banal, a outra parte, entretanto estava perdida em especulações: teria eu agido de outra maneira se a vítima fosse alguém desconhecida? O que eu diria a minha família? Eu diria algo? Eu não conseguiria esconder por muito tempo. Talvez eu devesse voltar para eles, como a garota assustada que eu estava me sentindo.

Agora, tendo provado sangue humano direto da fonte, a sede parecia mais forte, ou seria efeito dos meus nervos em frangalhos? É claro que eu poderia contê-la, mas era inquietante somada à sensação de poder pela saciedade.

 De volta ao apartamento, desta vez sem Chris, deparei-me com Aileen. Eu não queria realmente ficar sozinha, mas encará-la era como encarar um espelho que só refletia meu monstro interior.

_O que houve afinal?_ perguntou em voz baixa, sem me olhar, encarando algo do lado de fora da janela.

_Não estava claro o bastante?_ minha voz não era hostil, apenas hesitante, sentei-me no sofá encarando suas costas, olhando indiferente para suas roupas, hoje ela usava um longo vestido azul marinho e um casaco de couro branco por cima.

_Não imaginei que você pudesse_ disse ela lamurienta. Eu não sabia se devia me explicar com ela, éramos assim tão amigas? Parecia que era assim que Aileen via as coisas, no entanto decidi que se ela me ajudou com aquilo merecia uma explicação, ainda que não fosse das melhores.

_Parece decepcionada_ comentei encarando suas costas. Ela virou para mim e veio em minha direção sentando-se no chão a minha frente.

_Eu não tentei, realmente nunca tentei ser diferente. Aceitei o que me foi dado e aprendi a conviver com isso. Você era, desculpe pelo verbo no passado, como um exemplo para mim.

_Isso não está certo. Não sou como você, é mais fácil para mim. No entanto veja só...

_Sim, mas sabe que você é menos capaz de ser racional que eu. Você é mais humana e isso é lindo! Admirável_ ela sorriu um pouco_ Você não agiu só por sede, defendeu uma amiga... Bom, vingou-se por ela, sabe como o instinto vingativo é forte para nossa espécie. Sua reação foi algo natural.

_Não justifique as coisas_ falei percebendo como nossa conversa parecia vaga. Ambas tínhamos muita coisa em mente enquanto falávamos_ O que eu fiz não foi correto, e apesar de ser sua natureza, também não é correto o que você faz.

_Sim, mas somos quem somos, não é? Nem quero imaginar como é ser tão humana e tão intensamente vampira ao mesmo tempo_ disse-me carinhosamente afagando meu joelho_ Sabe, se pensar bem você tem o melhor de ambos os mundos: a força, a beleza, a juventude, no entanto há também o calor e todas as coisas que te fazem humanas... Você é capaz de bondade como nem todos nós somos.

_Aileen... _ eu não sabia o que ela estava tentando, mas se era fazer com que me sentisse melhor, não estava funcionado.

_Tudo bem, imagino que deve ser muito difícil, mas saiba que pode contar comigo. Sei de suas reservas, no entanto não vou hesitar em ajudá-la. Você é o mais perto de uma família que eu tenho em muito, muito tempo. _ disse-me levantando-se e saindo, pela porta da frente. Eu tinha de perguntá-la como ela entrava ali, pensei afundando no sofá e percebendo que meu dia tivera horas demais.

Não havia me dado conta de que era mesmo uma amiga para Aileen. Ela nunca superara a perda da família, afinal, havia muito amor pelas irmãs e pela mãe congelado com ela.


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Notas finais do capítulo

Eu adoro esse capítulo, e foi ele que me fez tomar gosto por matar personagens! kkk
Agora parece bobo, mas na época fiquei tão chocada e ressentida pelas dores e a sede de Renesmee que parei de escrever a fic por uns 4 meses... rsrsrs
O que acharam?
Ah, o Chris e a Aillen nasceram com um propósito em Second Sun, a continuação de Reveille... Eu não sei o que vc's sentem sobre ele, mas tenham em mente que ele nasceu com um
objetivo, ok?



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