Não sei se você, por um infeliz acaso, já derramou água sobre o papel escrito. As palavras somem, letra a letra, num colorido borrão. Não é muito feliz, não, essa coisa de diluir histórias. Deixa-se na folha apenas a saudade borrada do que um dia esteve por lá.

Ainda mais triste é quando, sem água nem nada, diluem-se contornos de gente. Eu deixei que os meus se fossem, uma vez, assim como deixei que letra a letra se fossem do papel. Tornei-me irreconhecível ao espelho, e mesmo às fotografias. Tudo parecia mergulhado numa tristeza infinda. A cada palavra algo mais se desfazia. A cada gesto a nitidez partia para mais distante. Cada passo parecia ser o último. O que sobrara, já sem nenhuma pretensão de mim, saudava-me por entre o véu do tempo.

Tudo passou muito rápido na minha inércia, minha apatia de borrão para com o mundo. Quando um dia acordei, já não mais quis ser borrada. Procurei-me. Marquei um encontro comigo mesma numa esquina em que tinha me deixado ficar pendurada. Conversamos como eu nunca tinha podido fazer. E todas as lágrimas que me borravam por dentro foram-se, como se vai a chuva num dia chuvoso. E então, pude me perceber maior que o papel, quando fiz o que ele jamais pôde: Readquiri traço a traço, marca a marca, até reconhecer meus olhos que choravam.

E o passado era só mais um daqueles borrões coloridos, mais belo do que merecia ser. Parecia que ficaria lá, bem, para sempre. Para me lembrar de que algumas histórias ficam melhores quando, por descuido ou poesia, alternam entre o nítido e o desfocado. O incisivo e o borrado. Como a minha.