As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 5
Quinta Carta - A Tentação




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Caro Charles,

Faz algum tempo que não escrevo, porém tive imprevistos capazes de justificar essa ausência. Entenda, eu nem mesmo sei se deveria continuar lhe escrevendo... De toda forma, irei narrar os últimos acontecimentos, talvez assim eu possa entendê-los melhor.

— Olá, dorminhoco, hora de acordar! — Alice cutucava inconvenientemente meu rosto. Isso era extremamente desnecessário, eu já estava acordado. — Ande, ou irá perder a maior parte do dia! Quer dizer... vamos logo!

— Você como sempre usando bem as palavras. — Falei em tom sarcástico enquanto esticava meus braços para expulsar o último vestígio de sono que ainda restava em mim. — Onde estamos?

— Olhe e veja! — Ergui uma sobrancelha ao encará-la e balancei a cabeça negativamente. Comecei a prestar atenção e pelo barulho...

Estávamos na praia. E eu estava sonhando, essa era a única explicação para aquilo.

— Estamos na praia... Espere, como iremos fazer o balão voar outra vez? Você liberou muito gás para descer até aqui e...

— Calma! Olha, eu fiz isso porque sabia que valia a pena e eu tenho uma conhecida aqui que pode colocar o balão nos ares novamente. Venha, eu te ajudo a sair da cesta. — Não sei se eu era desnutrido demais, ou se ela era particularmente forte. Talvez os dois. Contudo, ela conseguiu me tirar da cesta sem muita dificuldade, colocou-me sentado em um pedaço de madeira, me deu uma corda e pediu para que eu segurasse firme a lateral da madeira. Dessa forma nem um pouco profissional, ela conseguiu me arrastar pela areia sem dificuldades alarmantes.

Ficamos sentados na margem por algum tempo, apenas apreciando o movimento das ondas, que não eram muitas naquela parte da praia, e sentindo o vento bater em nosso rosto.

— É lindo, não é? — Ela perguntou lançando a mim um sorriso tímido. O céu estava em um límpido tom de azul e eu não podia estar mais feliz.

— Sim, é maravilhoso. Obrigado... por me trazer até aqui, digo. — Eu a encarava, porém seus olhos estavam distantes, talvez um pouco tristes, eu não saberia dizer.

— Quer entrar na água? — Ela levantou-se em um pulo, sorrindo.

— Você quer me afogar? — Perguntei em um tom que eu esperava ser descontraído, mesmo que na verdade eu estivesse bastante preocupado.

— Talvez. — Ela sorriu encantadoramente. Não sei porque escrevi isso, Charles, mas deve ser verdade, uma verdade que me envergonha, de alguma forma. — Vamos, você é bem leve, na água você provavelmente flutuaria. Eu não vou deixar que você se afogue.

Eu me senti um menininho naquela hora. Fui carregado por ela até a água e lá ficamos, sentindo a água gelada encharcar nossas roupas. Lembro-me de ter pensado que isso seria um problema depois, lembro-me de ter pensado em todos os problemas possíveis, de pensar em como eu estava parecendo ridículo sendo sustentado por uma garota que talvez fosse mais jovem do que eu, ou de como eu ficava desesperado quando uma onda aparecia e que por causa disso eu a segurava com mais força, mesmo me odiando por isso.

Charles, não sei se eu gostaria que nada daquilo tivesse acontecido, nunca imaginei que pudesse sentir vergonha e alegria ao mesmo tempo. É contraditório demais para minha cabeça.

Imagino se poderíamos ter ficado na água por mais algum tempo e sim, Charles, acho que sempre conseguir estragar as coisas é algo inerente a mim. Porque, por acidente ou não, acabamos nos beijando. Devo dizer, que o beijo de Alice é a coisa mais doce que minha boca já experimentou.

Foi então que tudo deu errado.

Ela afastou os lábios dela dos meus delicadamente e me carregou novamente até a areia. Ficou sentada ao meu lado em silêncio por um tempo dolorosamente grande demais para eu suportar.

— Alice... — Atrevi-me a dizer em um fio de voz, a consciência de que eu era um perfeito idiota me apunhalava ferozmente.

— Não, Cedric. Está tudo bem. Por favor, me perdoe. Eu... — Seu olhar era tão torturado que desejei que o mar viesse me afogar naquele momento. — Eu não devia ter feito isso... tem alguém... tem alguém esperando por mim.

Tento lembrar-me daquela cena, porém nada aparece na minha cabeça com clareza. Nunca vou poder dizer se ela tinha razão em sentir-se culpada ou se a culpa fora minha. Sempre achei engraçado como nossa memória costuma falhar nos momentos mais importantes.

— Temos que ir, Cedric. Logo o Sol vai ficar muito forte e acho que você não está muito acostumado, não é? — A risada de Alice era forçada, como se fosse algum tipo de obrigação para ela manter o clima descontraído. Eu, por outro lado, não conseguia dizer nada e logo ela desistiu daquelas tentativas de iniciar um diálogo divertido comigo. Ela apenas falou que precisaria me carregar até a cabana da amiga dela que não ficava muito longe dali e que ela poderia ajudar a encher o balão. Dei um aceno positivo com a cabeça e me deixei ser puxado pela invenção pouco segura e pouco prática de Alice.

Na hora eu não entendi exatamente a razão, contudo, uma sonolência tomava conta da minha mente a cada passo que Alice dava. Não me lembro de ter chegado a casa dessa amiga de Alice, então suponho que eu tenha dormido.

Acordei com Hexabelle me chamando.

— Cedric! Acorda, por favor, acorda! — Eu estava sentindo-me tonto e pesado, não conseguia encontrar uma explicação lógica para ouvir a voz de Hexabelle. Mal conseguia me lembrar de onde eu estava. Ao que parecia, em uma caverna escura e abafada.

— Cedric! — Ela gritou, contrariada, e só então consegui acordar. Eu estava em uma cela. Uma cela dentro de uma grande... caverna? Que lugar era aquele? Onde estava Alice? — Se acalma, eu vou te soltar.

— E como você pretende fazer isso? Você não pode tocar em nada físico e, além disso, onde você está? — Minha cabeça estava pesada e eu sentia um leve enjoo, esperava que tudo aquilo passasse logo. Provavelmente estava sonhando ainda.

— Aqui! — Novamente ela gritou, provavelmente eu estava parecendo o mais perfeito lerdo para ela. Só que havia um problema. A voz de Hexabelle não saía de Hexabelle. A voz dela saía de algum homem desconhecido. Ele era alto e forte e definitivamente não combinava com a voz doce e gentil de Hexabelle.

— Você... você não é a Belle. — Disse, desconfiado. Eu só podia estar sonhando.

— Claro que sou, escute, eu possuí esse...

— Você possuiu esse homem? Você pode simplesmente possuir as pessoas? — Agora, eu começava a duvidar que eu estivesse sonhando. Afinal, meus sonhos nunca foram tão criativos.

— Escuta! Eu vou poder abrir sua cela e te carregar para fora daqui! Não fale como se possuir alguém fosse algo ruim.

— Mas é algo ruim! Você invadiu o corpo dessa pessoa! — Foi então que ouvimos o barulho de portas. Pensei se eu estava realmente em uma caverna... — Olhe, você está em um lugar perigoso. Eu falei para você não vir para cá! Ela vai querer te oferecer propostas tentadoras... Não aceite, ela é o vício, você sempre irá querer renovar o contrato até que ela pegue sua alma! Não aceite!

— O quê? Do que você está falando? — Nisso o homenzarrão que Belle possuíra estava dirigindo-se para longe da minha cela, para um lugar onde eu não podia vê-lo.

Passei alguns minutos tentando entender o que estava acontecendo, tentando descobrir onde Alice poderia estar e buscando saber o que Hexabelle quis dizer com propostas tentadoras.

Foi quando ela chegou.

— Olá, jovem Cedric, acho tu estás com grandes problemas. Claro que eu posso te ajudar, se você quiser. — Recordo-me de como fiquei confuso com aquele dialeto. Tudo que pude concluir, é que aquele ser era tão velho que confundia as linguagens dos séculos. Alternando sempre com a linguagem atual e alguma outra tão antiga que eu poderia ler apenas nos livros mais velhos de mecânica.

— Quem é você? O que houve com a Alice? Que lugar é esse? — Juro que tentei não bombardeá-la com perguntas, Charles, entretanto eu obviamente não consegui. Eu a encarava com espanto. Era a criatura mais extraordinária que eu já havia visto. Digo, ela tinha uma aparência humana, entretanto era bastante excêntrica. Tinha olhos vermelhos e duas asas, uma negra e outra branca, suas roupas eram vermelhas e pretas em algumas áreas. Usava uma cartola na cabeça e brincava com um baralho.

— Tu podes chamar-me de Myra. Alguns me chamam de demônio, outros de vício. Suponho então, que eu seja o demônio do vício. Não tenhas medo! — Ela exclamou com um sorriso ao notar uma expressão de terror se formar em meu rosto. Como ela poderia querer que eu não tivesse medo? Ela havia acabado de se declarar um demônio! — Quanto à Alice. Ela foi embora assim que te vendeu. Esse lugar é minha casa, não a melhor parte da minha casa, mas...

— Me... vendeu? O que quer dizer? — Perguntei, cauteloso. Ela era completamente insana, não era? Por que Alice me venderia?

— Ora, meu querido. Eu pedi a ela que o trouxesse para mim em troca da alma do... namorado dela. Uma história triste, sabe? Ela sempre o rejeitou, então ele vendeu a alma dele a mim, para que eu a fizesse se apaixonar por ele. Coitadinha, nem sabe que tudo o que ela sente é uma falsa paixão e ele sequer pretende amá-la. Só quer vingança, fazê-la sofrer. Acho que aquele homem não gosta de ser rejeitado. — O sorriso dela se alargou e ela olhou mais profundamente para mim. — Você pode ajudá-la... pode quebrar esse contrato, desde que prometa me ajudar a construir uma coisa.

— Não vou fazer contrato com você, ainda mais para salvar alguém que me vendeu. — Sabia que eu estava sendo injusto com Alice. Se o que Myra dissera era verdade, então ela não tinha culpa. A culpada de tudo aquilo era a própria Myra e eu não iria permitir que ela me usasse para fazer seus joguinhos. As palavras de Hexabelle estavam frescas na minha mente.

— Bom, tu sabes, eu tenho outra oferta. Se me ajudares, posso te fazer voltar a andar. — Pelo rosto de triunfo do demônio, deduzi que não conseguir esconder meu desejo como havia pensado. Tentei desviar o olhar, porém não havia escapatória. Ela sabia que poderia me comprar com aquilo. — Eu posso ver teus sonhos, Cedric... sou boa em descobrir o sonho das pessoas... sou boa em realizá-los. Tudo o que você tem que fazer... É aceitar.

— E se eu não aceitar? — Eu sei, Charles, que era uma tentativa inútil de mostrar algum controle. Queria seguir o conselho de Hexabelle, queria de verdade. Entretanto, a tentação era forte demais.

— Então... tu irás apodrecer nessa cela. Para todo o sempre. Se aceitar, você voltará a andar e poderá ir embora se assim desejar. Estou sendo generosa, Cedric... eu preciso de sua ajuda. — Eu estava perdido. Nunca tive tanta certeza de algo em minha vida, como naquela hora.

— Eu... irei te dar a resposta amanhã. — Na verdade, eu só queria um tempo sozinho com Hexabelle. Myra sabia qual seria minha resposta, eu sabia qual seria minha resposta. Eu só queria ter tempo de me desculpar. O Vício sorriu e foi embora. Fiquei sentado no chão úmido esperando minha única amiga para dizer o quão fraco eu era.


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Notas finais do capítulo

Olá, queridos! Inicialmente, quero agradecer por todos os comentários, eles são realmente muito especiais! Quanto ao novo capítulo... Problemas a bordo! Aos fãs da Alice, sinto dizer que ela ficará sumida por algum tempo, o que não significa que ela nunca mais irá voltar, haha! Nos próximos capítulos iremos desvendar um pouco mais sobre a Myra e mais a frente sobre a Belle. Bem, é isso! Espero que tenham gostado, beijinhos!