Questão De Confiança escrita por Amy Lupin


Capítulo 3
Capítulo 2




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Capítulo 2

Um mês depois, eu estava sozinho em casa numa noite, trabalhando em um rádio-relógio antigo quando a campainha tocou. Pensei em fingir que não havia ninguém em casa, mas minha mãe me mataria se fosse algum de seus clientes num surto psicótico. Abandonei o rádio-relógio com as entranhas expostas e abri a porta, distraído demais para me lembrar de checar pelo olho mágico antes.

"Pois não?" falei sem reconhecer o rapaz parado à minha frente com um sorriso torto no rosto.

"Olá Michel, lembra de mim?" o garoto falou cruzando os braços preguiçosamente.

Se não fosse pelo sorriso, eu talvez nem o tivesse reconhecido. Não tinha reparado muito no rapaz daquela vez na rodoviária, mas podia dizer que ele estava diferente do que me lembrava, com os cabelos loiro escuros parecendo mais escurecidos por terem sido cortados muito curtos; os olhos pareciam mais sombrios na fraca iluminação que vinha da rua; e as roupas que ele usava eram mais sóbrias que a bermuda e camiseta da primeira vez que eu o encontrara, fazendo com que ele parecesse um pouco mais maduro. Porém, ele continuava uns quinze a vinte centímetros mais baixo que eu, franzino e com cara de moleque.

"Você roubou meu celular!" foi tudo o que consegui dizer atordoado.

O garoto abriu ainda mais o sorriso e levou a mão ao bolso. Dei um passo para trás instintivamente, mas ele espalmou uma das mãos em sinal de paz e tirou lentamente do bolso o que logo reconheci como meu antigo celular.

"Não roubei. Peguei emprestado" ele arremessou o celular em minha direção e eu quase o deixei cair. "De outro modo não teria como achar você. Judite é sua irmã?"

Estreitei os olhos antes de acenar afirmativamente.

"Ela é muito simpática. E esperta também. Tive que ser bastante engenhoso para conseguir que ela deixasse escapar alguma pista sobre onde encontrar você. Agora... acredito que você também tenha algo que me pertence, não?"

"Perdi seu porta jóias" tentei não parecer tão nervoso ao mentir, mas era péssimo naquilo.

O rapaz estreitou os olhos e por um segundo tive certeza que ele também podia ouvir as batidas enlouquecidas do meu coração ou ver o jeito como meu olho esquerdo pulsava.

"É serio" reforcei, tentando soar levemente arrependido e sem dar muita importância ao mesmo tempo. Acho que soei como se estivesse com dor de estômago. "Não sei onde coloquei. Devo ter perdido durante a viagem. Ou alguém mexeu em minhas coisas no ônibus, não sei. Só sei que não está comigo".

Apesar de toda a minha preocupação com minha própria atuação, tentei ficar atento à reação do garoto, mas ele não demonstrou absolutamente nenhuma reação quando falei da possibilidade de alguém ter mexido nos meus pertences. Na verdade, no final do meu relato ele tinha uma expressão estranha. Não era raiva. Desapontamento, talvez. O garoto abaixou o rosto levemente e coçou o canto da boca antes de voltar a me encarar, o sorriso refeito.

"Então... não vai me convidar para entrar?"

Estreitei ainda mais a abertura da porta na qual me mantinha enfiado.

"Eu vi você sendo preso. Li as matérias a seu respeito" falei.

O sorriso do garoto morreu lentamente e ele suspirou, colocando as mãos do bolso da calça jeans escura.

"Então você já sabe que estou cumprindo uma pena pelo que supostamente fiz" ele soou sarcástico e amargurado. "Não roubei jóia nenhuma. Não eram elas que me interessavam. Apenas a caixinha de música. Tem um valor sentimental para mim" ele fechou os olhos brevemente e eu provavelmente teria me comovido com sua expressão de dor se não soubesse muito bem a que tipo de valor sentimental ele se referia. Ele deu um pequeno passo a frente, as sobrancelhas vincadas e a voz mais branda. "Por favor, eu gostaria muito de recuperá-la. Posso pagar por ela, se você quiser. Sabe... pelo tempo que você guardou ela por mim."

"Não quero dinheiro!" falei indignado. "E mesmo se quisesse, já disse que não estou mais com a caixinha! Agora se você puder dar o fora daqui e esquecer que eu existo..."

O garoto espiou pelo canto do olho o lado de dentro da minha casa por um instante e senti meus músculos retesarem de medo. Aquele era o momento em que eu devia entrar e fechar a porta antes que fosse tarde demais. Eu era mais alto e provavelmente mais forte que o garoto, mas ele podia muito bem estar segurando uma faca dentro do bolso naquele exato momento e...

Mas antes que eu tivesse tempo de dar mais um passo para trás o garoto deixou a cabeça pender em derrota e se voltou para partir sem nenhuma palavra. Alguma coisa naquela atitude mexeu comigo. Não sei dizer ao certo como nem porque, mas senti remorso. Olhei para o telefone celular na minha mão e tirei o chip.

"Ei" chamei antes que me arrependesse. "Pode ficar com isso. Ganhei outro".

O garoto pegou o celular por puro reflexo. Fechei a porta e tranquei antes de poder ver sua reação. Levantei minhas mãos com a sensação de estar tremendo, mas elas estavam firmes. Apenas meu coração martelava como louco. Corri para o telefone e liguei para Lenora.

Eu tinha mesmo ganhado um celular novo da minha irmã. Lenora afinal desconfiara que eu havia feito muito mais do que apenas consertar seu computador e depois que eu praticamente a obriguei a levar um monitor de LCD ela disse que só aceitava com a condição de eu também aceitar um presente seu. Foi quando ela comprou um celular de última geração com muito mais funções do que eu tinha tempo – e saco – para usar. O pior de tudo havia sido ter de refazer minha agenda de contatos.

"Alô?" Lenora atendeu com a voz rouca.

"Oi, Le. Acordei você?"

"Não.Querodizer,sim.Maseutinhadormidonafrentedatelevisão,iaterumbelotorcicolosevocênãotivessemeacordado."

"Onde está Lucas?" perguntei tentando parecer tranquilo.

"Tomandobanho,euacho.Estououvindoochuveiro.Masmedigaoquehouve?VocênãocostumaligarparaperguntardoLucas,pormaisquevocêoame".

Rolei os olhos me sentindo grato por minha irmã conseguir fazer tudo parecer tão normal.

"Eu... hmm... só estava me perguntando quando vocês vêm nos visitar outra vez. Aquele par de sapatos que esqueci aí quando você quase me matou do coração está fazendo bastante falta".

Lenora soltou uma gargalhada gostosa e não pude deixar de sorrir também.

"Ah,Michel!vocêmesmoparaconfundirmolhodetomatecomsangue!Sebemquevocêsemprefoifácildeimpressionar,atémesmocomaquelesfilmesdeterrortrash,lembra?"

"Ora, cala a boca, Le" falei tentando parecer aborrecido, mas falhando miseravelmente. "Como é que eu ia adivinhar? Num momento você estava gritando por socorro e no seguinte vejo você com um litro de molho de tomate no vestido, o que queria que eu pensasse?"

Lenora gargalhou ainda mais alto e eu meneei a cabeça lembrando-me do meu desespero naquele dia. Lenora estava pedindo ajuda, pois não aguentava tirar uma assadeira quente e pesada do forno e eu calhei de chegar bem no momento que ela se atrapalhava com a embalagem de molho de tomate. Eu tinha ficado tão assustado que até me esquecera do porta jóias escondido no par de sapatos debaixo da cama e acabei voltando para casa sem sapato e sem porta jóias.

Já havia avisado minha irmã sobre o sapato, mas ela ainda não havia voltado para nos visitar desde o meu regresso.

"Então,oquevocêdiziamesmo?" Lenora falou recuperando o fôlego. "Ahsim,oseupardesapatos...olha,sinceramenteMichel,achoquenósnãovamospoderirantesdofinaldomês.Outalvezmêsquevem...Achomaisfácilvocêcomprarumsapatonovodeumavez".

"Sapatos novos são desconfortáveis" resmunguei.

Lenora suspirou.

"Seuclienteestáreclamandodademora?" ela perguntou.

"Como?" fiquei um pouco perdido antes de me lembrar de que havia inventado uma desculpa para a caixinha de música que esquecera dentro do sapato. Eu dissera que um cliente me pedira para consertar. "Ah sim, a caixinha? Não... quero dizer, ele me perguntou esses dias, mas eu expliquei e está tudo certo" falei coçando a cabeça, totalmente incomodado por ter que mentir para minha irmã.

"Bem,sevocêquiserpossomandarpelocorreio..."

"Não!" falei rápido demais. Então repeti tentando soar menos paranóico: "Não, não há necessidade. Melhor não arriscar extraviar o porta jóias. Era da mãe dele ou coisa assim, então sabe como é..."

"Estábem,entãodigaaelequevocêvaidevolvermêsquevem,masqueestáemboasmãos.Vocêescutouamúsica?Étãofofa!Mamãeiaadorar!"

"É..." concordei sentindo novamente aquele incômodo por envolver minha irmã naquilo tudo. Já havia prometido para mim mesmo que entregaria o objeto à polícia assim que colocasse as mãos nele novamente. "Bem, diga ao Lucas que mandei um 'alô'".

"Ok".

"E dê lembranças ao Bruninho!" falei já me encolhendo com o sermão que não tardou a vir.

"Omeninoaindanemnasceuevocêsestãocolocandoapelidosnele!OnomedeleseráBrunoeéparachamá-lopelonome!"

"Está bem, não está mais aqui quem falou!"

"Melhorassim.umabraçoemtodosportambém".

"Ok. Beijo, mana!"

"Beijo,mano".

Desliguei o telefone e o deixei escorregar por entre meus dedos. Fiquei ainda um longo tempo olhando para o nada antes de voltar ao trabalho, precisando desesperadamente me distrair.

-xxx-

É incrível como a nossa vida corrida nos faz esquecer dos problemas. Bem, pelo menos para mim, viver um dia de cada vez é um santo remédio. Pouco mais de três semanas depois eu já havia esquecido completamente do garoto da rodoviária e sua caixinha de música. E poderia ter demorado muito mais tempo para me lembrar, se não fosse pelo incidente que se seguiu.

Meu pai era sócio de um clube e estava participando de um campeonato de sinuca. Ele era muito bom no jogo e já havia se classificado para as semifinais logo no terceiro dia do campeonato. Infelizmente para ele, eu não me interessava pelo jogo e preferia curtir a piscina e até arriscar algumas partidas de vôlei na água com minha mãe e minha irmã Judite. Certo, sou uma pessoa bem família, como obviamente já deu para perceber. A maioria dos jovens da minha idade não me atraía. Eu me sentia deslocado quando era forçado a me juntar a eles. Os assuntos eram sempre os mesmos entre uma e outra latinha de cerveja: balada, paquera, jogos de futebol, etc. Não que eu os desprezasse. Eu só não fazia parte daquele universo.

Não tenho vergonha de admitir que sou um nerd. Não era a toa que tinha me juntado com outros dois nerds e montado um negócio logo após sair da faculdade. Quantas pessoas da minha idade eram empresários bem-sucedidos?

Enfim, nós havíamos passado o domingo no clube pela terceira vez consecutiva e meu pai estava prometendo pizza para o jantar em comemoração a sua classificação para as semifinais quando minha mãe exclamou ao enfiar a chave na porta.

"Ué! Pai, você esqueceu a porta destrancada!" ela tinha mania de chamar meu pai de 'pai' desde que éramos crianças. Aquilo costumava ser divertido na minha infância, pois me fazia lembrar dos desenhos do Pica-pau. Na adolescência eu morria de vergonha quando ela fazia aquilo na frente dos meus amigos. Naquela altura eu já estava acostumado.

"Eu?" meu pai estranhou. "Mas não fui eu quem saiu por último!"

"Foi o Michel" Judite dedurou e eu cocei a cabeça confuso.

"Michel!" minha mãe exclamou reprovadora.

"Mas não me lembro de..." comecei, porém minha irmã me deu um tapa na nuca.

"É claro que você não se lembra, cabeça de vento" Judite caçoou entrando primeiro.

Olhei feio para ela, mas achei melhor ficar quieto. Era a minha cara fazer uma coisa daquelas. Eu vivia fazendo as coisas no piloto automático, depois não me recordava se havia feito ou não. Não conseguia mesmo me lembrar se havia trancado a porta.

"Judite, coloque sua roupa direto no tanque! Não quero saber de roupas molhadas no cesto do banheiro!" minha mãe ralhou e Judite resmungou alguma coisa, provavelmente revirando os olhos. "Pai, você poderia pegar o resto... mas o que é isso!"

Ninguém havia reparado no começo, pois a bagunça não era tão óbvia. Mas depois que minha mãe falou, ficou difícil não reparar. A sala estava um tanto revirada, com algumas coisas fora de lugar, uma pilha de revista espalhada no chão, o baú próximo da TV aberto e seu conteúdo todo para fora, alguns retratos caídos na estante. Aparentemente não havia nada quebrado nem sujo, mas era inegável que alguém andara revirando a casa.

"Cido, chama a polícia!" minha mãe falou apavorada.

"Claro, assim que eu achar meu notebook!" meu pai falou e saiu correndo escada acima em busca de seu computador pessoal, onde ele desenvolvia boa parte de seus projetos de engenharia.

"Meus DVDs! Meus jogos!" minha irmã voltou correndo de olhos arregalados.

"Minha cozinha!" mamãe também saiu correndo e eu fiquei sozinho de queixo caído.

Fechei a porta atrás de mim com uma sensação gelada que se espalhava pelo meu corpo enquanto tentava parecer calmo por fora. Subi as escadas de dois em dois degraus e encontrei a porta do meu quarto escancarada. Franzi a testa com uma dor quase física ao vislumbrar a bagunça e logo comecei a conferir os aparelhos eletrônicos espalhados. Eu mesmo não tinha muita coisa, a maioria daqueles aparelhos eram de amigos e de conhecidos que pediam consertos praticamente impossíveis sem pressa – e sem muita esperança de sucesso.

Só depois de conferir três vezes foi que me permiti respirar aliviado. Não estava faltando nada. E quem quer que fosse o ladrão, parecia ter tomado bastante cuidado ao tirar tudo do lugar, pois não parecia ter derrubado nem desmontado nada. Passei pelo quarto da minha irmã. A porta também estava aberta, mas o cômodo sequer parecia ter sido invadido. Ouvi passos apressados na escada e Judite apareceu ainda de olhos arregalados.

"Minhas lingeries!" ela exclamou quase me derrubando ao passar. Ela era mais baixa do que Lenora na idade dela, magrela com os cabelos castanho escuros e lisos, diferente dos de Lenora que eram ondulados.

"E os seus DVDs?" perguntei curioso.

"Está faltando o último da Era do Gelo" ela resmungou.

"Ah, eu emprestei para o Gustavo, esqueci de avisar..." me desculpei e tive que desviar do travesseiro que Judite arremessou em minha direção.

"QUANTAS VEZES VOU TER QUE DIZER PARA VOCÊ NÃO EMPRESTAR MINHAS COISAS PARA OS SEUS AMIGOS SEM ME CONSULTAR ANTES...?"

Meneei a cabeça e me afastei deixando ela dar 'piti' sozinha. Espiei para dentro do quarto do meu pai. Ele estava abraçando o notebook e parecia estar conversando com o computador. Nem tentei entender o que ele dizia, apenas bati na porta e levantei o polegar. Meu pai repetiu o gesto aliviado.

"Está tudo bem. Os armários estavam abertos, mas aparentemente não falta nada. E as suas coisas?"

"Também não falta nada" assegurei.

Passei no banheiro e vi de relance o barbeador e o secador de cabelo afixados no lugar de sempre, aparentemente intocados. Franzi o cenho ao descer as escadas, achando aquilo tudo muito estranho. Na sala, a TV parecia não ter sido movida sequer um milímetro. Tudo bem que era grande o bastante para uma pessoa sozinha não se atrever a tentar roubar sem chamar a atenção de alguém, mas o aparelho de DVD também estava intocado; não faltava nenhum dos DVDs ou jogos de Videogame – todos originais; as caixas de som... tudo o que chamaria a atenção de um ladrão comum parecia ter sido ignorado.

"Então?" perguntei para minha mãe, que vinha correndo do quarto de visitas.

"Não mexeram na minha cozinha, graças a Deus!" ela falou aliviada, porém sem parar de correr em direção à escada. "Ainda bem que mantenho meu ferro de passar roupas escondido! Onde está seu pai? Ele já ligou para a polícia? Como estão as coisas lá em cima?"

"Acabei de ligar na polícia, eles estão mandando uma viatura" meu pai falou do topo da escada. "Alguém deu por falta de alguma coisa?"

"Eu!" Judite berrou, os olhos vermelhos e o lábio tremendo. Ela parecia estar carregando o guarda-roupa inteiro entre os braços. "Minhas calcinhas da moranguinho desapareceram".

Revirei os olhos e ao que parecia não fui o único.

"Querida, eu joguei fora aquelas calcinhas na semana passada. Elas estavam se desintegrando!" Minha mãe tinha altura mediana e costumava ser magra, mas tinha ganhado alguns quilinhos ultimamente. Não que alguém se atrevesse a dizer isso a ela.

"A senhora fez o quê?"

"Ora, deixa de birra, Judite. Você já está grande demais para elas, de qualquer forma. Faz séculos que comprei..."

"Faz sete anos! Não se fazem mais calcinhas como aquelas, mãe!" Judite soluçou, e meu pai segurou seus ombros, ajudando-a a descer as escadas.

"Filha, por que você está carregando todas as suas... err... roupas de baixo?" ele perguntou sem jeito.

"Pai, um estranho entrou na nossa casa! Só Deus sabe o que ele pode ter feito com as minhas coisas! E se ele cheirou minhas calcinhas? Eu vou colocar tudo para lavar, só para garantir".

Ninguém ousou contrariar. Mas a minha cabeça já estava longe. Eu estava me lembrando de quando minha mala havia sido revirada no meio da viagem para a casa da minha irmã. Naquela ocasião, eu também não dera por falta de nada.

-xxx-

Meia hora depois os policiais já haviam revistado a casa e perguntavam pelo que parecia ser a centésima vez:

"Tem certeza de que não está faltando nada, Sr. Plácido?"

"Absoluta" meu pai concordou pacientemente. Ninguém conhecido o chamava pelo nome, pois sabia que ele odiava. Dizia que era nome de velho e ele nem sequer aparentava seus cinquenta e cinco anos de idade, apesar dos cabelos estarem começando a ficar grisalhos. Era da minha altura, apesar de já ter sido mais alto; não era magro, mas também não era gordo; era forte, com dizia minha avó; e simpático como só ele. Todos que o conheciam o chamavam de Cido.

"Faz idéia do que o invasor pudesse estar procurando?" o policial perguntou depois de tomar nota.

"Nenhuma! Tudo o que nós temos de valor estava intocado!"

"Vocês costumam sair todo fim de semana?"

"Não, mas já faz pelo menos três domingos que passamos o dia fora" meu pai admitiu pesaroso.

"Ei, Tozzi, venha aqui fora um instante, por favor?" a outra policial chamou por entre os chiados de seu rádio. "A vizinha acha que viu o invasor".

Nós todos saímos de casa e vimos a Sra. Rosa, nossa vizinha da frente, acenando junto ao policial. Ela era uma senhora simpática até demais para uma vizinha. Gostava de puxar conversa com a minha mãe de tardezinha e vivia dizendo que me conhece desde que eu era 'pequenininho assim' e colocava a mão na altura da própria bacia - o que não era grande coisa já que ela era bem baixinha. Nós todos fomos de encontro a ela, que parecia um pouco nervosa.

"O que a senhora viu?" o policial, Tozzi, perguntou preparando-se para tomar nota.

"Veja bem, Seu Policial, não tenho certeza se ele estava saindo da casa porque não cheguei a ver. Quando saí no quintal o garoto vinha daquela direção, mas não tive nenhuma suspeita na hora. Como poderia adivinhar que a casa dos meus vizinhos estava sendo roubada...?"

"Como era o indivíduo?" Tozzi a cortou secamente.

A Sra. Rosa respirou profundamente ponderando antes de responder. Prendi a respiração. Estava certo de que ela iria descrever um cara alto e grandalhão de queixo quadrado e boné.

"Ele usava boné, por isso não consegui ver o rosto dele" senti um arrepio às primeiras palavras da Sra. Rosa, mas logo fiquei confuso. "Parecia ser pouco mais alto que eu, mas não passava de um garoto. Era magrinho e usava uma bermuda folgada e camiseta cavada. Andava de cabeça baixa e com as mãos nos bolsos, mas não estava carregando nada. Nem mesmo uma mochila...!"

Meu queixo caiu novamente. Ela estava descrevendo o garoto, não o homem da rodoviária.

"De que cor eram as roupas?" Tozzi perguntou já tirando o rádio do cinto. "E que horas eram quando você viu o garoto?"

A Sra. Rosa descreveu conforme conseguiu se lembrar e o policial passou a descrição pelo rádio para as outras viaturas nas proximidades. Mas o policial deixou bem claro que seria uma busca sem esperanças. Já fazia mais de duas horas que a nossa vizinha havia avistado o garoto. Mordi o lábio pensativo.

"Vocês fazem alguma idéia de quem possa ser?" a policial perguntou e eu tive um sobressalto. Havia me esquecido completamente dela. E se ela tivesse visto o reconhecimento nos meus olhos?

"Poderia ser qualquer um!" Judite respondeu e eu respirei aliviado me limitando a acenar positivamente.

A policial olhou de mim para minha irmã, parecendo se demorar mais em mim. Porém logo Tozzi a chamou e eu meneei a cabeça incapaz de acreditar no quanto estava me ferrando por ter tomado uma decisão errada naquela maldita rodoviária – e várias outras a partir daquela. Por que foi que não entreguei aquela caixinha de música para os policiais quando tive a chance? Por quê?

-xxx-

Nos dias que se seguiram voltei a ficar paranóico. Parecia que em todo lugar que olhava, havia um garoto de boné, ou da mesma altura, ou com o mesmo corte de cabelo do garoto da rodoviária. Mas nunca era ele. Tudo o que eu sabia a respeito dele eram suas iniciais – D.S. - e seu quase-parentesco com Elton Frontin. Não havia nada que mencionasse na internet o nome do garoto nem de sua falecida mãe ou dava algum detalhe diferente do que eu já sabia. Sem contar que a notícia era velha e o garoto não parecia ter se metido em outras encrencas depois daquela. Tudo o que achei foram algumas poucas menções ao nome de Frontin, a maioria propagandas sobre sua empresa.

Mas o tempo passou e o garoto nunca mais cruzou o meu caminho. Nem mesmo o capataz que revirara minha mala – e eu tinha certeza que o reconheceria imediatamente caso topasse com o homem em algum lugar.

Na semana seguinte a que minha casa foi invadida, a segurança havia aumentado drasticamente. As fechaduras da casa foram trocadas por trancas mais modernas, meu pai colocou alarme e as janelas ganharam grades (que minha mãe achou horríveis, mas teve que engolir).

Algumas semanas depois, Lenora e Lucas chegaram com o carro carregado de malas. Minha mãe havia insistido que minha irmã viesse ter o bebê na mesma maternidade em que nós três havíamos nascido e, para tanto, ela teria que chegar pelo menos uma semana antes da data marcada para a cirurgia e estar disposta a passar pelo menos os dois a três meses seguintes lá em casa. No começo meu cunhado havia detestado a idéia, mas então meu pai o chamou num canto e começou a contar todas as noites que ele perdeu de sono para ajudar mamãe a cuidar de nós, pois eles não tinham ninguém da família que pudesse ajudar. Não fiquei perto para ouvir a conversa toda, mas lembro perfeitamente da cara do Lucas ao sair de casa naquele dia. Ele parecia um pouco verde. Algum tempo depois a decisão já estava tomada: eles passariam três meses conosco. Lucas teria que viajar algumas vezes, mas Lenora estaria de licença na editora, portanto não haveria problemas.

"Meus sapatos e a caixinha de música?" perguntei depois de abraçar minha irmã da melhor maneira que pude – ela estava imensa!

"Ah não!" Lenora gemeu, batendo na própria testa. "Sabia que tinha esquecido alguma coisa! Me desculpa mano... eu não estava com cabeça para lembrar de tudo, você me perdoa?"

"Claro..." falei tentando soar o menos preocupado possível. Mas fiquei surpreso em descobrir que estava mais aliviado que qualquer outra coisa. Não estava particularmente ansioso para colocar as mãos novamente no porta jóias.

"Se quiser que eu converse pessoalmente com o seu cliente, eu explico para ele..."

"De maneira nenhuma, mana. Pode deixar que eu me viro com o cliente... E não se preocupe, você tinha coisas muito mais importantes para se preocupar. Quem sou eu para culpar você" falei alisando carinhosamente a barriga da minha irmã. Era estranhamente dura e me dava aflição só de imaginar o quanto sua pele estaria esticada por baixo do vestido florido que ela usava.

"Ah, você nem imagina o tanto de coisa que acabei me esquecendo... Vou ter que comprar outro jogo de mamadeiras... sem contar nas fraldas de recém-nascido que provavelmente não vão mais servir quando eu finalmente voltar para casa com o Bruno. Agora me ajuda a achar um lugar para eu me sentar e colocar as pernas para o alto. Sinto que meus pés estão prestes a explodir de tão inchados! A viagem para cá nunca foi tão longa! Céus!"

A partir de então a mudança da rotina em casa foi tamanha que qualquer outra preocupação que não fosse relacionada com minha irmã e meu sobrinho foi varrida da minha cabeça. Apesar disso tudo, minha irmã teve um parto tranquilo e meu sobrinho Bruno nasceu gordinho e saudável. Com ótimos pulmões, eu diria. Quem quase teve que ser internado foi meu cunhado. Lucas ficou tão nervoso durante o parto que sua pressão subiu perigosamente e ele teve que ser acudido pelas enfermeiras antes de enfartar. Felizmente só eu havia presenciado seu colapso e depois ele pediu muito discretamente que eu não comentasse com ninguém.

É claro que contei para todo mundo. Afinal, para que servem os cunhados?

-xxx-

Gostei da experiência de ser tio. Tive receio de pegar Bruno no colo no começo, mas logo peguei o jeito – era só deixar minha mãe ajeitar o bebê no meu colo e me mexer o mínimo possível. Judite ria de mim, dizia que eu nem respirava quando pegava o menino no colo. O melhor de tudo era que eu sempre podia devolvê-lo para Lenora ou minha mãe quando ele começava a chorar ou quando algo me dizia que estava na hora de trocar a fralda.

Lenora e Lucas ficaram no quarto dos meus pais. Meu sono costumava ser bastante pesado, então eu parecia ser o único a estar realmente acordado na hora do café-da-manhã. Pelo que me contavam, Bruno chorava bastante de madrugada. Mamãe dormia com Lenora quando Lucas viajava e às vezes sobrava até para o meu pai cuidar do neto durante a noite. Até Judite, cujo quarto ficava ao lado do dos meus pais, tinha olheiras profundas.

O tempo passou depressa demais e logo eles foram embora sem previsão de quando voltariam. A casa ficou muito quieta de repente. Mamãe ficou arrasada no começo, mas acabou tendo que se contentar em ligar todas as noites para perguntar se estava tudo bem com o neto.

-xxx-

Nos cinco meses que se seguiram os negócios estavam indo muito bem. A loja que eu montara em sociedade com meus amigos Thomas e Gustavo estava ficando bastante conhecida e nós tivemos que restringir nosso atendimento a empresas. Às vezes pegávamos um ou outro conserto particular, mas geralmente tínhamos que levar estes para casa e eles nem passavam pela contabilidade da loja. Acabamos tendo que comprar uma pick-up para transportar os equipamentos (antes nós pegávamos emprestada a caminhonete de Thomas) e contratar um atendente para ficar o tempo todo na loja enquanto nós três trabalhávamos no fundo e revezávamos o transporte. Muitas vezes tínhamos que fazer o conserto na própria empresa que contratava nossos serviços e eu acabava tendo que pegar o carro da minha mãe emprestado.

Quase um ano havia se passado desde o incidente na rodoviária e eu raramente me lembrava do porta jóias. Meus pais haviam ido visitar minha irmã duas vezes, mas sempre acontecia alguma coisa e a caixinha de música – bem como os meus sapatos – era esquecida. Eu sinceramente comecei a ter esperanças de nunca mais ter que lidar com aquilo. Se pelo menos eu pudesse prolongar aquele desencontro pelo resto da minha vida...

"Caras, vocês têm noção de que dia é hoje?" perguntou Gustavo certa manhã quando nós três nos sentamos no fundo da loja para trabalhar. Era cada vez mais raro estarmos os três no mesmo lugar ultimamente.

"Da última vez que chequei era quinta-feira" disse Thomas sem tirar os olhos do computador no qual estava trabalhando.

Eu ouvia com apenas parte da minha atenção. Estava tentando consertar um fax pré-histórico. Não entendia como alguém podia querer arrumar uma velharia como aquela quando o conserto poderia ficar mais caro que comprar um aparelho novo.

"Estamos fazendo três anos de sociedade e um ano de empresa!" Gustavo me sacudiu entusiasmado.

"Ah, verdade!" exclamei arregalando os olhos em surpresa. "Faz mesmo tudo isso que nós nos formamos?"

Nós três havíamos começado a trabalhar informalmente antes de terminar a faculdade. Não era exatamente uma sociedade no começo, nós apenas procurávamos nos ajudar combinando nossas habilidades sempre que possível. O negócio parecera promissor o bastante para que nós resolvêssemos abrir uma empresa em sociedade tão logo conseguimos nossos diplomas.

"Uau... temos que comemorar!" Tom falou contagiado com o entusiasmo de Gustavo.

"Exatamente!" Gustavo concordou animado. "O que acham de sairmos hoje para jantar?"

E foi assim que naquela noite nós nos encontramos no restaurante de comida italiana Balistieri Trattoria. Fazia algum tempo que nós não saíamos, mas antes costumávamos ir pelo menos uma vez por mês naquele mesmo restaurante. Gustavo e eu chegamos ao mesmo tempo ao estacionamento. Ele trazia uma bela acompanhante.

"Marisa, prazer em conhecê-lo" a garota me cumprimentou enquanto Gustavo ondulava as sobrancelhas sugestivamente atrás dela.

Gustavo não era nenhum deus grego, na verdade estava muito longe disso. Tinha o nariz desproporcional ao rosto miúdo, era exageradamente magro e tinha os dentes grandes demais para a própria boca. Mas ele era o mais namorador de nós três.

'Vocês, pessoas bonitas' Gustavo dizia para mim e para Tom 'confiam demais em suas aparências e acabam pecando por não desenvolverem outros métodos de sedução. Já eu, tive que aprender a conquistá-las de outras formas, sendo carinhoso, atencioso e engraçado. Por isso posso competir com vocês a qualquer momento!'

E de fato, ele sempre tinha um encontro. No entanto seus namoros nunca duravam muito e eu nem me preocupei em guardar o nome da garota por mais do que aquela noite. Nós entramos e logo encontramos Thomas e Rosana, que pareciam ter acabado de conseguir uma mesa. Thomas acenou para mim e nós fomos ao seu encontro. Troquei um aperto de mão de irmãos com Thomas e dei um beijo na bochecha de Rosana tentando parecer o mais natural possível – e isso significava ignorar seus olhos penetrantes.

Tom e Rosana estavam juntos há pelo menos três anos, mas eu podia dizer que tinha um passado desconcertante com Rosana. Ela fez faculdade conosco e demonstrou interesse por mim desde o primeiro ano. Naquela época eu já namorava Joyce, portanto a paixão dela era absolutamente platônica. No final do terceiro ano de faculdade eu terminei com Joyce e Rosana estava lá para me consolar, garantindo que não queria nada em troca. Mas eu sabia do interesse dela por mim. Só um cego não veria.

O problema era que Rosana era muito bonita. Não tão estonteante quanto Joyce, mas chamava muita atenção com suas curvas e seu rostinho angelical. Eu poderia muito bem me deixar apaixonar por ela. Seria muito fácil, qualquer um se apaixonaria por Rosana. Mas eu tivera uma experiência ruim com Joyce e não queria arriscar me magoar novamente. Sabia também que Tom tinha uma queda por ela desde sempre. Ele era meu melhor amigo e o mais bonito de nós três com seu cabelo loiro e olhos verdes, mas ele mesmo dizia que Rosana só tinha olhos para mim.

Demorou para que Rosana se convencesse que não conseguiria nada comigo, mas ela enfim partiu para outra. Acabou cedendo aos encantos de Tom e eles estavam juntos desde então.

Acontece que ela nunca deixou de lançar aqueles olhares estranhos para o meu lado. Eu dizia para mim mesmo que era um idiota por ficar reparando naquilo, que provavelmente era coisa da minha cabeça e que ela não seria capaz de ainda ter esperanças de que eu a olhasse de um jeito diferente de amiga. No entanto, quando estava quase me convencendo disso, sempre acontecia alguma coisa constrangedora, como a que aconteceu mais tarde naquela noite.

"Posso ajudá-los?" uma voz simpática perguntou ao meu lado depois de nos acomodarmos e começarmos a examinar o cardápio. Eu havia tomado o cuidado de me sentar ao lado de Thomas e não levantei os olhos do cardápio, tentando me obrigar a pedir algo diferente do meu preferido - o espaguete à bolonhesa mais delicioso do mundo. Sério, pode parecer simples demais, mas nunca comi um espaguete mais gostoso que aquele.

"Na verdade" Tom se manifestou "quem costuma nos atender é uma garota baixinha de cabelos vermelhos que usa um rabo de cavalo..."

"Ah, sinto muito. Lourdes não pôde vir hoje" o garçom informou prestativo.

"Bem, então você deve servir" Tom deu de ombros. "Ainda estou indeciso, você já se decidiu, amor?"

"Ainda não. Estou cansada de pedir o mesmo prato. O que você sugere... Diego" ela provavelmente leu o crachá do garoto e eu escolhi aquele momento para olhar para cima.

O que vi me fez arregalar os olhos.

"Você!" falei sem me preocupar em disfarçar a raiva.

O garoto – Diego – deu um passo para trás, tão surpreso quanto eu. Ele estava difícil de reconhecer sem o sorriso torto e usando o uniforme verde e vermelho do restaurante. Os cabelos estavam um pouco mais compridos do que da última vez, pois ele usava uma franja que escondia suas sobrancelhas elevadas pelo choque.

"Michel!" ele exclamou e eu fiquei em pé.

"Eu sei que foi você!" acusei dando um passo na direção dele e daquela vez foi ele quem recuou, trombando numa cadeira desocupada logo atrás.

"Michel, o que houve?" Rosana perguntou, mas eu não lhe dei ouvidos. Sequer me dei conta de como estava chamando a atenção dos outros clientes com meu acesso de raiva.

"Agora você acredita em mim quando eu digo que a perdi?"

"E-eu..." o garoto gaguejou depois de se desculpar brevemente com o cliente da mesa de trás. Ele olhou ao redor preocupado. "Eu tenho que ir" falou me dando as costas e saindo rumo à cozinha.

"Ah, mas não vai mesmo!" falei e fui atrás.

"Michel!" meus amigos me chamaram, mas eu só conseguia ouvir o sangue em meus ouvidos.

Não sei o que me deu para fazer o que fiz. Segui-o para dentro da cozinha ignorando o aviso que dizia "SOMENTE FUNCIONÁRIOS".

"Diego, o que... Ei, senhor! Não pode entrar aqui!" alguém falou e Diego olhou para trás.

Quando o garoto percebeu que eu o seguia, começou a correr para a saída dos fundos despindo o avental vermelho e eu corri atrás, desviando de tudo e de todos. Talvez o tempo que passara depois do incidente com o porta jóias tivesse feito com que eu perdesse o medo. Eu já nem pensava mais no perigo que havia me exposto ao esconder o paradeiro de alguns dos diamantes mais caros do mundo. Eu só pensava em mostrar para aquele garoto como era sentir medo.

Diego tinha a vantagem de conhecer melhor a cozinha, mas não fiquei para trás. Quando ele perdeu tempo para abrir a porta dos fundos eu quase o alcancei, porém ele se jogou para frente com velocidade renovada e deu a volta no estabelecimento, saindo por um portão lateral comigo em seu encalço. Nós estávamos então na rua, correndo na calçada. Ele era ligeiro e logo conseguiu alguns passos de vantagem. Mas cometeu o erro de olhar para trás. Tropeçou numa raiz saliente de árvore e caiu, deslizando na calçada. Eu contorci o rosto como se a dor fosse minha e tive que desviar dele, desacelerando o máximo que consegui. Um cachorro começou a latir, mas não havia ninguém na rua para nos ver, apenas os carros que transitavam na avenida movimentada.

"Deus!" Diego ofegou, lutando para se levantar.

Apoiei uma mão no muro e me dobrei para frente, tentando recuperar o fôlego.

"Você... você está bem?" consegui perguntar quando ele finalmente se levantou, espanando a sujeira da calça verde que havia ficado levemente esfolada nos joelhos. Ele olhou para as próprias mãos que haviam aparado boa parte da queda. Elas estavam avermelhadas e um pouco esfoladas, mas não estavam sangrando.

"Vou sobreviver" ele falou se encostando à arvore e sorvendo o ar em grandes goles como eu. Estávamos um de frente para o outro, porém mantínhamos distância. Enquanto o silêncio se prolongava, eu o observei atentamente. Ele estava com as bochechas coradas por causa da corrida. Sua pele era muito clara, fazendo com que seus cabelos loiros parecessem mais escuros. Parecia que ele havia crescido alguns centímetros afinal, pois agora ele não estava tão mais baixo do que eu – provavelmente uns quinze centímetros – mas continuava magro e com cara de moleque. Já fazia quase um ano desde o nosso encontro na rodoviária e eu me perguntei se ele já teria completado dezoito anos. Provavelmente sim.

"Você invadiu a minha casa" acusei quando finalmente recuperei fôlego suficiente para parecer ameaçador. "Mesmo eu tendo dito que perdi a droga do porta jóias".

"Eu sei, mas eu não tinha como ter certeza se você estava falando a verdade!" Diego se defendeu, apesar de não levantar a voz.

"Então que continuasse não tendo certeza! Nada lhe dava o direito de..."

"Eu sei. Me desculpe. Foi estupidez minha" o garoto assumiu me surpreendendo com a seriedade com que admitia seu erro. "Agora, por favor, não conte nada a ninguém" ele implorou seu rosto se contorcendo. "Você não sabe como tem sido difícil arrumar um emprego depois daquele..." ele soltou o ar dos pulmões, baixando os olhos.

"Mas... você era menor de idade. Não existe uma lei ou alguma coisa que impeça que as pessoas falem sobre os seus crimes abertamente?".

"Meus crimes" Diego deu uma risada sem humor. "É, o pior é que eu nem posso clamar minha inocência agora que invadi sua casa, não é mesmo?" ele falou sarcástico. "Não importa o que a lei diga, todo mundo sempre fica sabendo nessa cidade. Meu padrasto fez questão de espalhar por aí. Mas o Sr. Balistieri... ele sabia e ainda assim me deixou ficar. Semana que vem completo um mês no restaurante. Por favor..."

Tive que desviar os olhos do rosto dele, mas já era tarde demais. A quem eu queria enganar? Eu era uma manteiga derretida.

"Está bem" cedi e de repente me achei estúpido por tê-lo perseguido daquele jeito. "É melhor nós voltarmos ou você vai acabar sendo mandado embora mesmo sem eu ter que abrir a boca".

Ignorei a expressão de surpresa no rosto dele e comecei a caminhar de volta para o restaurante. Diego provavelmente havia pensado que seria bem mais difícil me convencer. Bem, pelo menos eu consegui surpreendê-lo de alguma forma...

"Obrigado" ele falou ao correr para me alcançar. "E eu sinto muito mesmo pela sua casa... não sei o que me deu para fazer aquilo... Eu devia ter aceitado sua palavra desde o início".

"Esqueça isso" respondi. "Agora... eu não imaginava que nós pudéssemos ter corrido tanto" falei enxergando as luzes do restaurante há alguns bons metros de distância.

Diego riu e eu me voltei para ele sem deixar de caminhar.

"Tem certeza que você está bem?" perguntei seriamente preocupado. Eu havia assistido a queda e não fora nada bonita.

Ele fez uma careta de dor.

"Devo ter ralado o joelho direito, mas não é nada demais" nós ficamos em silêncio por mais alguns metros. Quando estávamos chegando ao restaurante ele indicou o portão lateral. "Melhor entrarmos por onde saímos. O que vai dizer aos seus amigos?"

Dei de ombros.

"Sei lá. Vou dizer que o conheço do clube e que você trapaceou numa aposta. Eu invento alguma coisa".

"Obrigado mais uma vez" Diego falou com gravidade.

"Está tudo bem contanto que você não me abrace de novo. Eu gostaria de manter minha carteira, se você não se importa" falei e ele sorriu abrindo a porta para que eu entrasse. Todos os rostos de homens e mulheres de idades variadas na cozinha se voltaram para nós.

"Diego, ele não pode..." um cozinheiro gordo começou, mas Diego o interrompeu.

"Michel já está de saída".

Acenei para o cozinheiro e saí para o restaurante. Meus amigos estavam onde eu os havia deixado.

"Michel, o que foi que deu em você?" Gustavo exclamou quando voltei a me sentar.

Contei a mesma versão que havia inventado para Diego e fiquei surpreso por eles terem acreditado. Thomas costumava saber quando eu estava mentindo, mas nós já não éramos tão próximos quanto antes. Talvez por culpa minha. Eu me afastara dele para não atrapalhar sua felicidade com Rosana.

E por falar nela, ela era a única que pareceu um pouco desconfiada da minha mentira, mas não disse nada.

"Então, já fizeram seus pedidos?" perguntei descontraído.

"Não. Um imbecil qualquer botou o garçom para correr antes que conseguíssemos nos decidir" Tom brincou. "Mas pelo menos agora eu já sei o que eu não quero. Só falta saber o que eu quero".

"Alguém chamou um garçom?" Diego voltou a se postar ao meu lado com seu bloquinho e caneta na mão.

"Ah, aí está o trapaceiro" Gustavo falou. "Cara, sou seu fã. Nunca vi ninguém tirar Michel do sério como você! Você se importa em passar algumas dicas para mim depois?"

Diego se limitou a sorrir em resposta.

"Se vocês quiserem uma sugestão do nosso cardápio..." ele começou e foi interrompido por Thomas.

"Sim, por favor, eu adoraria uma sugestão".

"Alguma ocasião especial?" Diego perguntou.

"Estamos comemorando três anos de sociedade" eu o informei, ao que Diego levantou as sobrancelhas admirado.

"Na verdade" Tom se adiantou. "Não é somente essa a ocasião especial. Rosana e eu temos uma coisa para contar a vocês, não é mesmo amor?" Rosana deu um breve sorriso e baixou os olhos, parecendo constrangida. Quando Tom percebeu que ela não diria mais nada, continuou. "Nós ficamos noivos ontem".

Gustavo soltou um palavrão e Marisa deu um gritinho de contentamento como se fosse ela a noiva e não Rosana. Eu me peguei sorrindo pela felicidade de Thomas, mas logo meu sorriso morreu quando percebi que Rosana não estava escondendo o rosto por acanhamento. Ela não parecia muito feliz, na verdade.

Eu os cumprimentei com votos sinceros de que fossem muito felizes. Eu realmente desejava não ter reparado na expressão de Rosana, mas o que eu poderia fazer a respeito? Depois de muita enrolação e com uma ajuda de Diego, fizemos nossos pedidos e me forcei a me divertir por Tom. Não foi tão difícil assim, no final.

Depois daqueles não tão pequenos acontecimentos, me pareceu que a noite se desenrolaria sem maiores problemas. Mas é claro que eu estava enganado. Depois de terminar seu prato, Tom anunciou que precisava ir ao banheiro. Já fazia uns bons quinze minutos que Gustavo estava sussurrando alguma coisa no ouvido de Marisa - que a fazia morder os lábios e sorrir - e eu preferi evitar olhar naquela direção. Foi quando me vi sozinho com Rosana.

"Então" limpei a garganta, tentando soar descontraído. "Casamento! É um grande passo..."

"Sim... Já faz três anos e meio que estamos juntos. Estamos apenas seguindo o curso natural dos acontecimentos" ela falou e se inclinou em minha direção, sua voz nada mais que um sussurro. "Mas eu trocaria tudo por você Michel. Basta você dizer uma única palavra e eu termino tudo com Thomas..."

Arregalei os olhos para o meu copo sem realmente vê-lo. Desejei me fundir com a mesa ou enfiar a cabeça num buraco, o que viesse primeiro. O que ela estava fazendo? Por que fazia aquilo comigo? Por que fazia aquilo com Thomas?

Alguém limpou a garganta ao meu lado e encarei os olhos sorridentes de Diego. O garoto podia ser encrenqueiro, mas tinha um timming perfeito. Ele trazia uma torta holandesa de tamanho razoável nas mãos.

"Reparei que vocês não pediram sobremesa, então pensei que pudesse completar a comemoração. Por conta da casa".

"Eu ouvi direito, isso aí é de graça?" os ouvidos de Gustavo raramente falhavam em captar coisas do tipo, portanto não me surpreendi que ele tivesse ouvido justamente aquilo. "Ei, Tom, escuta só essa! Ganhamos uma torta! De graça!"

Evitei por tudo no mundo encarar Rosana enquanto ela voltava a se endireitar na cadeira, dando espaço para Thomas retomar seu lugar.

"Uau! Michel, você devia apostar mais com garçons. E perder" Thomas falou empolgado.

"Você não precisa fazer isso" falei de modo que só Diego me ouvisse.

"Eu sei" o garoto respondeu com ar grave. "Sei também que não muda o que fiz. Mas encare como um pedido de desculpas. Com bastante açúcar" ele terminou com uma piscadela e lá estava aquele sorriso torto de volta em suas feições. "Sem ressentimentos?"

Assenti lentamente.

"Sem ressentimentos" falei.

E me surpreendi ao perceber que falava a verdade.

-xxx-

Continua...


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