24 Caprichos Sanguíneos escrita por Signore Hemlock


Capítulo 1
Sob acordes caprichosos




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24 Caprichos Sanguíneos

 

 

No. 1 in E major (The Arpeggio)

 

   Nicollò Paganini (Gênova, 27 de outubro, 1782 - Nice, 27 de maio de 1840) talvez seja para sempre o violinista mais famoso que esse mundo há de ter até que pare de girar. Começo estranho para uma história não? Se é que isso possa ser chamado de história. De qualquer forma ela é tão estranha quanto a biografia deste italiano que quando criança era obrigado a estudar este instrumento musical muitas horas por dia sob riscos de sevícias paternas, fugiu de casa, gastava seu dinheiro com a fama recém-adquirida em jogos e diversões noturnas, supõe-se que esteve preso durante os anos de 1800-1805 e – o aspecto mais pitoresco de sua biografia – pode ter feito um pacto com o Demônio para adquirir sua virtuosidade no violino (se bem que o mais provável é que ele tivesse Síndrome de Marfan, cujos síntomas típicos são os dedos particularmente compridos e magros). Lendas à parte, o certo é que, além do respeito e da admiração que angariou já em vida com outros famosos compositores como Robert Schumann e Franz Liszt, suas composições, que até hoje são fonte de inspiração para diversos compositores, eram já em seu tempo fontes de prestígio e estudo.

 

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No. 2 in B minor

 

   Uma das admiradoras de Paganini era uma donzela que vivia em um lugar conhecido como “Zoológico”, na região francesa de Bordeaux. Seu nome: Saya. Simplesmente assim. Saya, que não envelhecia com o passar dos anos e que, tal qual o compositor italiano supracitado, também colecionava para si fofocas e boatos de que ela era uma filha do Demônio. E de certa forma ela era isso... Mas de nada disso ela sabia, assim como não sabia do seu futuro e do porque que ela existia. Só sabia que vivia, que a maioria das pessoas que a cercavam eram umas inúteis – exceto a sua irmã que estranhamente morava na “Torre do Diabo” do “Zoológico” sozinha –, que não gostava de rosas no geral porque tinha espinhos – e espinhos a machucavam mais do que fisicamente... – e que aos poucos se “intrigava” com aquele rapazinho de uma insolência subservil que se esforçava para fazer suas vontades, praticamente não reclamava dos maus-tratos e indelicadezas propositais dela para com ele, arrancava de bom grado os espinhos das rosas – em especial aquelas estranhas rosas azuis – para ela e se esforçava arduamente para ser um virtuose no violoncelo, só para assim tocar as melodias que embalavam o coração de sua mestra e musa. Seu nome: Hagi.

 

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No. 3 in E minor (La Campanella)

 

   Mais de um século havia se passado desde a primeira vez que ele havia visto sua mestra e musa. Havia lutado com ela – agora como um abominável chevalier (N/A: “Cavaleiro” em francês) – no caos da Revolução Russa a mais de meio século atrás. Havia se compadecido com o rastro de destruição que ela teve de ocasionar na infâmia que o mundo conheceu como Guerra do Vietnã a mais de trinta anos atrás e mesmo assim seu amor – que já era verdadeiro antes de se transformar em seu cavaleiro – não arrefeceu em nada. Ah, se essa luta terminasse de uma vez por todas, quem sabe assim sua Saya não poderia ser feliz. Ele daria sua vida por ela de bom grado. Faria tudo para fazê-la sorrir para sempre. Até cometeria a ousadia de tocar todos os 24 Capriccio de Paganini em violoncelo para ela – uma coisa que, em tempos remotos, ela o dizia que ele jamais conseguiria. Hagi, em seu íntimo, achava graça com esses seus devaneios enamorados enquanto tocava para si mesmo e para quem quisesse o que ele havia aprendido com sua musa inspiradora... Bem, nem todos gostavam daquela “frescurada” no meio de um parque por exemplo. Kai, certamente, não apreciava – e passou a não apreciar mais ainda por N motivos...

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No. 4 in C minor

 

   Otonashi Kai era um típico rapaz típico com atitudes típicas de um típico jovem valente, destemido e corajoso. Era admirado por seus dotes esportivos, pelas “técnicas” em combate (ele com um bastão de beisebol era mortal!) e por outras coisas típicas que faziam suspirar várias garotas do seu colégio. Mas Kai, por incrível que pareça, não tinha olhares para namoricos e sim para sua amada família. Não tinha porque se importar se era uma “família de mentirinha”, como muitos adoravam provocá-lo (adendo: estes muitos eram os mesmos que, “estranhamente”, podiam ser encontrados estirados no chão com marcas de porretadas com um bastão...), para ele, George era seu pai, Riku era seu irmão e Saya era sua irmã – apesar de ter um “apetite de boi”, apesar de ela se angustiar em tentar se lembrar quem ela era, apesar de suas repentinas manias esquisitas (por que raios ela costumava a tocar sozinha um violino imaginário?). Apesar de tudo isso, ele a amava – amava até mais que uma irmã... E mesmo que também tivesse que perdê-la para um insípido cara com um violoncelo (ous eria aquilo um violino? Como para qualquer pessoa típica, Kai também fazia uma confusão danada entre ambos), ele o faria em troca da felicidade de sua irmã, sua amada. E mesmo assim a continuaria amando, assim como amava e amaria seu pai e ao seu pequeno irmão Riku.

 

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No. 5 in A minor

 

   Otonashi Riku, por sua vez, não era um rapaz típico. Era, isso sim, um rapazinho meigo, gentil e de coração puro com gestos delicados, polido e com gosto para o genuinamente belo. Naquela estranha família da qual ele fazia parte – mas que, também para ele, era uma família genuína onde o amor e o respeito imperavam, e isso para ele era muito mais que o suficiente – ele era um pequeno querubim e seu Kai nii-chan, George otou-san e Saya nee-chan eram seus protetores e protegidos. Ele amava a sua família e também daria sua vida por ela, além de amar coisas sensíveis como a história daquele estranho violoncelista que por anos caminhava de nação em nação em busca de sua amada. Riku gostava de se imaginar como um daqueles cavaleiros românticos que davam sua vida por seus ideias e suas coisas amadas. Bem, não tardaria muito tempo para que seu sonho fosse concretizado – e que a partir disso se transformasse em um pesadelo...

 

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No. 6 in G minor (The Trill)

 

   A rotina das transfusões de sangue. Por que será que ela tinha que fazer isso? Será que tinha algo a ver com seu passado? Saya pensava nisso cada vez que se consultava com a doutora Julia, uma bela mulher que era atenciosa e sempre perguntava a Saya se ela se lembrava de algo de consulta em consulta. Saya, infelizmente, não se lembrava de quase nada, só de por exemplo coisas meio sem nexo como por exemplo uma peça musical violinística que Julia colocava de vez em quando em seu consultório para relaxar seus pacientes – devia ser de um italiano, Saya não lembrava bem, mas tinha a sensação de que ela a conhecia fazia um bom tempo e que, inclusive, ela e um sujeito estranho a praticavam juntos... Apesar de serem informações triviais, para Julia era até reconfortante ouvir estes relatos de Saya. Dava para a estudante um aspecto humano, e Julia gostava de acreditar que aquela garota era tão normal e saudável quanto todas as outras garotas da idade dela e da idade que a própria Julia teve um dia. Gostava de ver Saya como uma pessoa comum enfim, e não como uma arma de grande poder destrutivo – por mais que David tentasse sempre apressar as coisas para isso...

 

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No. 7 in A minor

 

   O agente da organização denominada “Escudo Vermelho” de codinome David não era totalmente insensível, frio e grosseiro como muitos o viam mas alguém tinha de ser a voz da razão para a batalha que se avizinhava, para que assim o conflito velado nas sombras entre as duas abomináveis recriações de Joel Goldschmith finalmente chegasse ao fim. De fato, muitas das atrocidades que David vira no Vietnã – atrocidades tanto causadas pelas tão bem conhecidas mãos humanas, e as secretamente inumanas também – moldaram, para seu próprio desgosto, muito do seu ranzinza caráter posterior. Mas isso não significava que ele se tornara totalmente um obcecado. De fato, ele não gostava do que tinha de fazer para Saya despertar e, sim, aquele moleque chamado Kai o lembrava ele mesmo quando jovem, e por mais que tentasse fazê-lo crescer, ele também gostava da sua persistência em continuar a ser o garoto destemido que era. Isso sem falar da vergonhosa (era assim que ele denominava a si mesmo) quedinha que sentia pela doutora e parceira Julia. E, puxa vida, ninguém via (e era bom que ninguém visse), mas até David gostava de coisas singelas, como gatinhos – tinha até uma estampa de um em segredo em sua carteira!

 

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No. 8 in E-flat major

 

   Primma Dona da Música. Era isso o que significava o nome de Diva, nome esse que Diva havia recebido de Saya, “minha irmã querida”, como ela gostava de dizer para seus chevaliers enquanto degolava cadáveres para sugar seu sangue, enquanto arquitetava – não muito bem obviamente – seus planos para transformar o mundo num lar encantado para chiropterans ou quando simplesmente entoava árias operísticas em seu jardim – tendo o fofo do Nathan como testemunha e admirador. Diva não tinha os mesmos talentos para o violino como Saya sua irmã querida, mas em compensação tinha uma voz de dar inveja em muitas sopranos. Bem que ela gostaria de ela e Saya terem formado um concerto musical para entoarem suas composições, mas Diva gostaria de um concerto de chiropterans e Saya ainda insistia em se misturar aos esdrúxulos mortais... Aiai Saya querida, você só me dá desgosto mesmo. Diva também adoraria arranjar um maridinho para ela, mas aquele Hagi era tão desprezível, tão insípido, urgh! E apesar de ser divertido se relacionar com Amshel de vez em quando, ele não era seu tipo de homem ideal, um homem com o qual ela pudesse brincar, demonstrar sua força e terror e realizar suas inocentes atrocidades que ela gostava tanto, além de se possível ter com ele uma família, de preferência duas menininhas como ela e sua Saya querida foram um dia. Bem, Riku foi bom em tudo isso enquanto ele durou...

 

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No. 9 in E major (The Hunt)

 

   Se havia uma coisa que Amshel Goldsmith gostava mais que o poder, a imortalidade e todas as demais coisas que se incluiam com ambas era – acreditem – sua querida Diva. Ele a amava como filha, como mestra e como mulher. Infelizmente, por ter o doce sangue de Diva em suas veias, ele não podia ter com ela uma família de forma genuína, mas podia ainda assim erigir uma família e uma dinastia de chiropterans junto com ela. Se o mundo todo tivesse que perecer para isso, para atender ao sonho de sua amada, que assim fosse! Não importava os meios, não importava os fins também, desde que sua linda Diva tivessem seus sonhos realizados – e os dele também. Podia-se dizer o que quisesse, mas para Amshel Goldsmith, isso era amor verdadeiro...

 

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No. 10 in G minor

 

   Para Van Argiano (N/A: ou Arjeno ou Arjano), o que importava além do poder era o segredo da juventude eterna e da imortalidade física, já que com isso ele alcançaria todo o resto, tudo de bom que este mundo podia oferecer. Muitos haviam tentando, antes dele, alcançar este pertinente sonho que muitos mortais alimentaram e ainda alimentam. Talvez ele estivesse mais perto que todos seus antecessores. Talvez não. Mas diante de tamanhas possibilidades de se alcançar isso, ele toparia tudo: matar, corromper, se aliar a aqueles degenerados chevaliers daquela monstruosa garota chamada Diva e até submeter aos caprichos dotados de beleza sublime, nobreza de sangue e orgulho imune ao passar do tempo que se encontrava na pele, carne, sangue, ossos, espírito e, quem sabe até?, alma daquele ser infantil e desestruturado conhecido como Charles – desde que não fosse escravo de um ser ridículo desses para sempre, é claro.

 

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No. 11 in C major

 

   Já fazia mais de trinta anos que aquele que na verdade se chamava Karl Fei-Ong (N/A: ou simplesmente Karl na versão do mangá) era denominado, humilhandemente, como Charles. Desprezado por seus irmãos, escarnecido por Diva e sempre ferido em seus confrontos com Saya, Karl/Charles se sentia sozinho no mundo – mas não essa pseudo-solidão (além do também pseudo-sofrimento) que essa tribo moderna horrorosa conhecida como emos carregavam consigo – ou diziam que carregavam. Os tempos modernos, com suas adulterações deliberadas de óperas, dramas, canções e concertos davam asco em Karl/Charles. Esses jovens de hoje, o que eles sabiam das verdadeiras belezas de uma Ofélia (N/A: Personagem da tragédia “Hamlet”, de William Shakespeare), de um Fantasma da Ópera, de uma Bíblia, de um concerto de violino de Paganini? Nada! Absolutamente nada! Van Argiano sabia – ou fingia que sabia; Karl/Charles sentia calafrios ao imaginar que seu querido criado na verdade desejava sua mrote, por exemplo. Aquele estranho garoto, Otonashi Riku, também sabia – Riku era para Karl/Charles uma peça rara. Saya, de certa forma, por mais que ela negasse, também o sabia – e também compartilhava a mesma solidão e dor que Karl/Charles carregava consigo. Karl/Charles no fundo amava um pouco Saya e bem que tentou morrer junto com ela. Pena que um de seus irmãos, que compartilhava com ele muitas coisas – e tinha, surpreendentemente um amor ainda mais genuíno por Saya – estragou tudo. Bem, Laertes (N/A: irmão de Ofélia em “Hamlet” de William Shakespeare) sempre estragava tudo. Solomon, em sua “sapiência divina”, sempre estragara tudo.

 

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No. 12 in A-flat major

 

  Terceiro livro dos Reis, capítulo 4: “29 Deu mais Deus a Salomão uma sabedoria e prudência sobremaneira prodigiosa, e grandeza de coração como a areia, que há na praia do mar. 30 E a sabedoria de Salomão excedia a sabedoria de todos os orientais e egípcios, 31 e era mais sábio do que todos os homens: mais sábio do Etan ezraita, e do que Herman, e do que Calcol, e do que Dorda, filhos de Maol: era nomeado por todas as nações circunvizinhas (...) 34 E de todos os povos vinham gentes a ouvir a sabedoria de Salomão, e de todos os reis da terra vinham homens a ouvir a sua sabedoria.

 

   Não, Karl estava exagerando: mesmo tendo vivido mais que o sábio filho de Davi, Solomon nem de longe se parecia como ele. Até mesmo a sua morte, que ele enfrentava agora enquanto se transformava em uma estátua graças aos efeitos do sangue de sua suposta “inimiga”, não se comparava com o sapiente rei de Israel. O Salomão bíblico caiu por amor ardente à 700 mulheres e 300 concubinas de nacionalidades idólatras: hetéias, egípicas, amonitas, iduméias, sidôneas e moabitas (N/A: não era pegador nada esse Salomão né? hehehe); Solomon morria agora por um amor não correspondido por uma “simples” mulher: Saya. Aquela era sim a sua nobre noiva, não a vulgar Diva com seus nojentos irmãos (Ele sentia o mesmo nojo que Amshel sentia por ele). Teria derrotado o mundo se pudesse por Saya – mas custou a ajudar sua amada a derrotar James... Não. Solomon, no final das contas não era Salomão, os chiropterans não eram melhores que os mortais e estava tudo acabado agora. Em uma morte nada ditosa, Solomon não se juntara aos seus, e ninguém reinaria em seu lugar.

 

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No. 13 in B-flat major (Devil's Laughter)

 

   James Ironside também amava Diva, mas esta não o amava mais. Só porque seu corpo havia virado uma abominação, uma abominação inaceitável até para, digamos assim, padrões chiropterianos de estética? Ora, e a devoção que ele sempre tivera por ela por todos esses anos? Ele seria fiel à “mama” pelos séculos vindouros, para toda a eternidade! E era com desprezo que ela o tratava agora? Se pelo menos ele pudesse ficar indignado por isso... mas não havia tempo para isso, não enquanto aqueles malditos mortais atiravam nele, aqueles Schiffs irritantes o golpeavam, aquele maldito “Espinho” agora infligia seu corpo, enquanto Solomon mais uma vez o irritava protegendo Saya, que golpeava sem querer tanto seu platônico enamorado como, acertadamente, o acertava agora. Bem, pelo menos Solomon teria o mesmo destino seu. Era uma verdadeira zombaria final do diabo para o pobre-diabo James Ironside...

 

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No. 14 in E-flat major

 

   Por que estamos aqui presos? Por que somos cobaias, e para quê? O que será que há no mundo lá fora? Temos que desejar nossa liberdade! Esse era o brado que Moses fazia incendiar as almas de seus irmãos Schiff enquanto ainda estavam na prisão. Ele era e seria leal à Lulu, à Karman, à Irène e à todos os seus semelhantes Schiff. Teriam a imortalidade, fariam tudo que fosse necessário pela liberdade e imortalidade e assim veriam – e possuiriam – as belezas que o mundo tinha a oferecer...

 

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No. 15 in E minor

 

   ...E lá estava Moses ao lado de Karman, enfim vendo uma das maravilhas que o mundo tinha e lhes oferecer: o nascer-do-sol – o mesmo sol que os queimaria dentro de instantes. Era bonito – e era melhor que perecer sob os efeitos do “Espinho” (N/A: A doença que afeta os schiffs, os cristalizando até a morte). No fim das contas, todos eles haviam aprendido muitas coisas e até que, olhando sob certos aspectos, tiveram uma vida produtiva. Agora Karman e Moses se juntariam à Irène e os outros que haviam falecido, e logo depois deles... “Não! Lulu tem de sobreviver! Ela merece viver mais que a gente!”, dizia Karman, e Moses concordava. “Sabe Karman, até que foi bom termos passado esses tempos juntos e o mundo é um belo lugar para se viver. Espero que Saya salve à todos”, disse pela última vez Moses, e Karman também concordou. Ambos agora viravam cinzas – e para eles, não havia final melhor do que aquele.

 

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No. 16 in G minor

 

   “Tudo o que Diva simplesmente queria era uma família”. Essa foi a revelação que Nathan Mahler desvendou para Saya depois que esta matara sua irmã e antes dele mesmo supostamente morrer voluntariamente por suas mãos. De qualquer forma, a família que Diva havia deixado ao mundo – duas criancinhas idênticas à ela e Saya, fruto do seu ato de “amor” com seu querido irmão-caçula Riku, na falta de melhor definição para estupro – sobreviveria de suas culpadas mãos banhadas em sangue. Tudo graças à teimosia derradeira de Hagi, que pela primeira vez descumprira uma ordem dela. Tudo graças à Kai também – este porém de uma teimosia constante – que agora iria cuidar de suas sobrinhas – quem sabe ele não tomava jeito e juntava seus trapos com a Mao hein? Os dois formavam um belo par, pensava Saya. Esta, por sua vez, só queria descansar – é o que de qualquer forma ela o iria fazer mesmo, já que seu tempo de “hibernação” para mais 30 anos de repouso estava se aproximando. O mundo estava à salvo da ameaça dos chiropterans – bem, só espero que as minhas duas sobrinhas não tenham o mesmo destino que eu e minha irmã tivemos, pensava com certo receio Saya. Ela não tinha mais o seu Hagi por perto – se bem que ela no fundo sentia que ele não havia sido morto com Amshel no desabamento do Metropolitan Opera House (N/A: Localizado na cidade de Nova Iorque) – mas estava feliz de qualquer forma: seu fardo enfim se extinguira, sua culpa tinha sido eliminada e todos ao seu redor estavam e ficariam bem. Disso ela sabia e não tinha mais o porque de conjecturar à respeito. Tudo que ela tinha de fazer agora era dormir, dormir nos ombros de Kai – e quem sabe ser acordada pelo seu amado Hagi..?

 

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No. 17 in E-flat major

 

   “Eu te amo Saya”. Estas foram as últimas palavras que Kai disse à Saya não antes, mas depois de ela dormir mais uma vez. Se bem que de nada adiantaria ele ter dito antes, já que o coração de Saya pertencia à outro homem – um homem que Kai também sentia que não havia, no final das contas, morrido em seu suposto derradeiro sacrifício. De qualquer forma, Kai não podia nutrir essa paixão platônica e impossível sob diversos aspectos para sempre. Ele também tinha de seguir em frente, assim como todos os seus amigos após a batalha contra Diva. A Red Shield havia sido desfeita já que seu objetivo havia sido alcançado – mas mesmo assim Joel IV, Lewis, David, Julia e até a pequena Lulu prometeram auxiliar Kai no que fosse necessário para que ele cuidasse das filhas do seu irmão-caçula (ele não gostava de pensar que elas também eram filhas de Diva) – sem segundas intenções. “Em troca”, Kai seria o padrinho de casamento de David e Julia – e logo ele que era mais novo que o durão David mas que tantas vezes fora mais maduro que este! Uma outra pessoa, muito da interessante para se dizer o mínimo, também se dispôs à ajudar Kai com suas sobrinhas, se prestando até à formar uma família com ele. Jahanna Mao no fim das contas era uma grande mulher – e se algum parente dela da Yakuza enchesse o seu saco, nada seria difícil para se resolver à base de porretadas com um bom bastão de beisebol! Ora, se ele havia derrotado chiropterans com isso, porque não seria mais fácil contra algum “mero” retalhador da máfia japonesa?!

 

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No. 18 in C major

 

   Por trás de toda a suposta truculência que carregava consigo e do temor que impunha devido à suas origens, Jahanna Mao também era uma garota comum, que gostava de viagens (a viagem que ela fez com Okamura pelo Oriente Médio, após o fim da batalha com Diva, fora estimulante), coisas sensíveis (desde gatinhos da Hello Kitty até peças de Shakespeare – ela sempre se lembrava com uma nostalgia alegre da encenação de “Hamlet” que ela fizera para Saya como personagem principal) e, obviamente, de garotos – na verdade, um garoto muito maduro em especial. Mao no decorrer da luta com Diva achou que não tinha mais esperanças com Kai – ele realmente amava Saya e pela felicidade dele faria com que os dois ficassem juntos mas... Saya adormecera mais uma vez e Kai se dirigia aos seus braços. Um lado racional dela desconfiava de que isso era pura carência, o lado sentimental dela porém dizia que, no final das contas, ele também gostava dela – e como Mao sempre quis dar mais predominância aos ditames do coração do que às brutalidades da razão (pelo menos a “razão” de seus “adoráveis” familiares da Yakuza), não deu outra e, para sua felicidade, parece que ela fizera a escolha certa: Kai era atencioso, bem mais maduro que até o tempo de batalha com Diva poderia fazer supor (apesar de que ele, felizmente, ainda guardava consigo certos trejeitos marotos do garoto que ainda era), cozinhava super bem (ela que não iria pelotar o fogão!, zombava ela enquanto ele preparava os pratos que havia aprendido com seu pai e Riku) e ainda tinha como “bônus” duas menininhas lindas. Como um monstro como Diva pôde ter gerado crianças tão adoráveis? Diante de todas essas perspectivas, Mao não tinha dúvidas de que queria ela mesma ter uma família tanto adotiva quanto verdadeira com Kai.

   “Isso sem falar na perfomance dele na cama. Sem comentários!”, dizia uma orgulhosa Mao para uma ruborizada Julia – que também não tinha muito o que reclamar da “experiência” de David...

 

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No. 19 in E-flat major

 

   David pensava com seus botões o que seria dele sem lutar, e a resposta que ele estava tendo desde que Diva fora morta era melhor que ele esperava: teria uma bela esposa em breve, teria um filho e um padrinho para ele (seu fiel amigo Lewis) e um padrinho para seu casamento (casamento esse que Joel IV insistia em ele mesmo pagar todas as despesas – uma forma de comemorar o fim da carranca em seu rosto, dizia ele jocosamente para seu antigo subordinado). Se bem que David já achava que tinha um filho na figura de Kai. Ele estava de fato se tornando um grande adulto, cheio de vigor juvenil. No final das contas, depois de tantos esforços, a vida enfim sorria largamente e mais uma vez para David. E agora ele retribuía esse sorriso, ao ver cenas como o da pequena, porém forte, Lulu escutando o seu bebê na barriga de Julia e dizendo “Ele chuta mesmo hein tio?”

 

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No. 20 in D major

 

   Apesar de todas as angústias que enfrentara no passado, Lulu nunca se sentira sozinha em companhia dos seus irmãos Schiff – e não se sentia agora que tinha Lewis como “papai”. Ela sempre sentia saudades de Karman, Moses e Irène, e até de Saya também, mas sabia que não podia deixar seu coração ser tomado pela tristeza – ainda mais agora que ela tinha a oportunidade de viver com o soro que a “Tia” Julia desenvolvera para ela que inibia os efeitos do Delta 67 (N/A: que causava “O Espinho” no corpo dos Schiff). Lulu vivia intensamente, na medida do possível, como uma criança normal e, como qualquer criança normal, tinha curiosidade e gosto em aprender das coisas do mundo. Não sabia quanto tempo ela viveria, mas não se importava com o futuro, já que o presente era maravilhoso. Enquanto ela ouvia concertos de violino de compositores como Shostakovich, Tchaikovsky e Paganini (este último lembrava-lhe bastante o “tio” Hagi. Ela também sentia saudades dele) ela supervisionava o regime de Lewis. “É, realmente menininha, o papai aqui tem de emagrecer se quiser viver mais”, ele dizia. “Não seja tonto Lewis-chan!”, bradava a pequerrucha, “Nós somos imortais esqueceu? Você tem de emagrecer para ficar mais apresentável à mulherada. Afinal de contas, eu também quero ter uma ‘mamãe’ um dia”. Lewis, obviamente, achava graça. Ela era genuinamente uma criança adorável.

 

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No. 21 in A major

 

   Saya e Diva foram ao mausoléu da sua tia Saya. Não, não é das Saya e Diva originais a que me refiro, mas sim às filhas de Diva, que nesse momento estavam já em fase de crescimento infantil e já viviam um tempo com seu tio Kai. Ele bem que insistia para que elas o chamassem de pai, mas elas só o chamavam de tio Kai. De qualquer forma, lá estavam elas no mausoléu de sua tia Saya. Mausóleu esse que, vejam só, estava vazio e na porta dele uma rosa azul. Mas não haviam se passado nem dez anos e ela já despertara? Hagi estava mesmo vivo? Curioso, era para ter alguma ponta de preocupação ou receio ou até melancolia, mas estou contente por isso, pensava Kai. Se Saya havia acordado e Hagi a havia encontrado, então agora sim tudo estava bem e em seu devido lugar. Eles seriam felizes agora, assim como ele, Kai, estava. E se eles fossem enfim felizes como todos os seus companheiros de batalha estavam, então ele, Kai, ficaria completamente feliz finalmente... Vamos meninas, hora de irmos para casa! Está certo tio Kai! Já falei para me chamarem de pai (¬¬). Mil perdões tio Kai (XD).

 

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No. 22 in F major

 

   Sim. Saya havia despertado mais uma vez. Mas seu sono durou tão pouco. Em compensação, de todas as vezes que ela adormecera, essa vez foi, sem dúvida, a mais reconfortante. Ela não estava acordando agora para mais uma batalha, mas sim, que surpresa para ela!, para ser recompensada por seu esforço. Pelo menos foi assim que Hagi dissera para ela após seu despertar. Hagi estava vivo – esperando por você, minha Saya, ele dissera. Pela primeira vez ela não teve nenhuma reserva em receber suas rosas azuis – e não se encontravam espinhos nelas. Pela primeira vez, Saya pôde ver Hagi cumprindo sua tão dedicada promessa ter lhe tocar, entre outras coisas, os Capriccio de Paganini (em violoncelo. Não me perguntem como) – um verdadeiro virtuose do violoncelo você hein Hagi?, dizia ela numa alegria incomum. Pela primeira vez... pela primeira vez pôde amá-lo sem medo ou reservas. Bem que ela gostaria de ter feito amor com ele antes, mas em circunstâncias passadas ela não encontrava porquê de fazer isso. Como fui boba, ela pensava após o tão sublime ato. E como Hagi fora fiel à ela (foi igualmente a primeira vez dele). Todos esses anos sendo fiel a ela, e isso nada tendo a ver com seu sangue chiropteriano correndo por entre as veias dele. Nunca a recriminara por tê-la feito um monstro para o salvá-lo – se bem que para mim você nunca foi um monstro Hagi, nunca, ela lhe disse com genuína felicidade. Fiquei, fico, ficaria e ficarei para sempre ao seu lado Saya. Eu te amo, ele lhe disse, deixando que a alegria também enfim o dominasse depois de tantos anos de resignação e espera, como o verdadeiro apaixonado que era. Eu também te amo Hagi, sempre te amei, sempre te amarei, dizia Saya enquanto que deixava que o sono – um sono para um novo amanhecer, não para um novo adormecimento – a embalasse, ao lado do seu amado cavaleiro.

   Saya e Hagi decidiram que não veriam por agora seus amigos. Eles sabiam que todos estavam muito bem, e só isso os bastava. Claro que eles queriam muito lhes agradecer por tudo, mas por agora eles queriam ver sozinhos o mundo que eles haviam salvo dos chiropterans, e depois eles veriam, inclusive, as adoráveis filhas de Diva. Bem, o mundo estava realmente à salvo dos chiropterans – bastava já a própria crueldade dos mortais. Será mesmo? E bem, até Nathan havia morrido – aliás, ele mesmo se oferecera para morrer. Será mesmo?

 

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No. 23 in E-flat major

 

   “Tsc, tsc, tsc... São todos uns efêmeros mesmo viu? Depois o frívolo sou eu! Aiai...”, dizia para si mesmo, bebericando seu vinho, ninguém mais ninguém menos que Nathan Mahler, o chiropteran anterior a Diva e Saya. Passavam-se se anos, décadas, séculos e ele presenciava a mesma coisa, a mesma transitoriedade das pessoas em seus sonhos e esperanças vãs, em seus desejos de conquista e poder que, na maior parte das vezes, levava à privação e perda de tudo (como o “xilindró-party” que Van Argiano estava desfrutando. Prisão essa que, como tantas outras coisas neste mundo, Nathan havia visto com seus próprios olhos), inclusive à morte (como a do seu irmão Amshel, que virou farelos entre os escombros do Metropolitan Opera House enquanto que Nathan sobrevivera, assim como a tantas outras coisas sobrevivera no mundo). Sim, Oscar Wilde (N/A: escritor inglês de origem irlandesa, autor de “O Retrato de Dorian Gray”), tinha razão: o mundo era um grande teatro (teatro esse que aliás não era mais a linda peça de Diva – mas ninguém garantia que as suas filhas não representariam um novo drama), mas seus atores no geral são um horror. O Eclesiastes também tinha razão: Não há nada que seja novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer: Eis aqui está uma coisa nova. Porque ela já a houve nos séculos que passaram antes de nós (N/A: trecho retirado do capítulo 1, versículo 10 do livro homônimo da Bíblia). Se Solomon e tantos outros dessem ouvidos para escutar, olhos para ler e inteligência para entender esse tipo de coisa... Mas enfim, amigo autor, o que não é mesmo vão nesse mundo hein?, piscava para mim o andrógino chiropteran (“você não faz meu tipo seu xabi!”) enquanto continuava a bebericar do seu vinho e a desfrutar da música e das demais doçuras que sua imortalidade bem vivida o faziam desfrutar nesse mundo...

 

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No. 24 in A minor (Tema con variazioni)

 

   Sim amigos leitores, vanitas vanitatum, omnia vanitas. As batalhas que travamos são vaidades. Os esforços de nossos similares são vaidades. As obras que fazemos ou deixamos de fazer são vaidades – além de serem caprichos, como a composição de Paganini. Essa fic que eu escrevi é uma vaidade minha. Sua leitura dela é uma vaidade sua também. Tudo, enfim, é vaidade. Mas isso não significa que a vaidade seja ruim. A vaidade em buscar sabedoria para melhor viver consigo mesmo e com os outros não é ruim. A vaidade de lutar para preservar o mundo e a humanidade, se opondo ao que é ruim e prejudicial à todos, não é ruim. A vaidade em escrever algo para o deleite de vocês não é ruim, eu acho. E a vaidade de vocês em dedicarem parte do seu tempo para ler algo tão simplório assim e gostarem ou não disso com certeza não é ruim. O que importa é o que fazemos com nossas vaidades, já que tudo de qualquer jeito é vaidade. De resto, comeis e bebeis, porque amanhã todos nós talvez estejamos mortos (isso se ninguém morrer agora com palavras tão cheias de lugar-comum :P)

 

Lembrem-se disso.


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