As Histórias De Thalia escrita por GiGihh


Capítulo 73
Pesadelos




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KELLI

A cada sorriso desfeito, cada sonho transformado em pesadelo e cada passado voltando ao presente era uma alegria que invadia a mim e ao Senhor Titã. A menina árabe revia os pais rígidos e o noivo com o quádruplo de sua idade. A indiazinha via sua tribo ser destruída por homens estranhos e via seu pai vendendo-a como uma moeda. A japonesa desfrutava dos estupros quase bem sucedidos do pai... E lembrava de tê-lo matado.

A risada que soltei afastou os semideuses insignificantes de perto... A primeira parte estava indo muito bem. Aos poucos as virgens puritanas se entregam as lembranças dolorosas... E ficam mais vulneráveis aos futuros ataques... Mas o gelo não funcionou. E de onde havia saído aquela Fênix? Teria de ter mais cautelosa...

–O que está fazendo?

–Pensando nas inúmeras maneiras de agradá-lo, meu senhor - virei sorrindo para Luke. Não pude deixar de evitar pensar em como seria maravilhosos sugar aquela alma... Agarrei-lhe o pescoço - Ainda temos o direito de nos divertir, não?

–Por enquanto - seu tom foi sem emoções, mas tasquei-lhe um beijo mesmo assim...

THALIA

A Rússia havia ficado para trás junto com o frio, mas os pesadelos só pareciam aumentar. Sophia e Clara já não sorriam com a mesma frequencia e em todos os treinos parecíamos distantes. As madrugadas e as manhãs eram sempre as piores horas do dia. As horas mais cansativas eram quando nos forçávamos a permanecer acordadas quando nossos corpos clamavam por um descanso decente, mas que nunca chegava.

Estávamos treinando nossas defesas, mas Kaye caiu deitada no chão adormecendo instantaneamente. As meninas olhavam incrédulas para a japonesa, mas no fundo queriam o mesmo: cair no chão e adormecer com a mesma facilidade.

–Vamos parar um pouco. - eu mal pronunciei as palavras e mais duas caçadoras caíram no chão, como se estivessem à espera de uma permissão. Tínhamos sorte de Ártemis ter saído em outra caçada com Apolo.

As meninas mais dispostas armaram as tendas e eu tive de levar as três dorminhocas para suas respectivas camas.

–Thalia - virei em direção à voz - Vá dormir; está tão cansada quanto nós...

–Eu ainda posso fazer a primeira vigia.

–Acho que podemos precisar de você com todas as forças... - a menina tinha os cabelos alaranjados e doces olhos castanhos, seu nome deveria ser Margaret - Não ando tendo tantos pesadelos quanto às outras meninas.

–Quantas meninas andam tendo pesadelos?

–A grande maioria incluindo você, Tenente... Por favor! Descanse. - parei durante meio segundo.

–Me acorde se acontecer qualquer coisa anormal.

Minha tenda estava organizada, mas eu me sentia perdida ali. Decidi tomar um banho para relaxar já que mesmo cansada, meu corpo se negava a entrar em um sono sem sonhos. O que eu não daria por aquele vinho agora... Vesti um conjunto de short e regata pretos como pijama. Para uma caçadora, aquilo era muito indecente, mas não me importei. Moombean passou a se esfregar em minhas pernas; abaixei-me e acariciei suas orelhas. Assim que deitei na cama o lobo se deitou aos meus pés.

–Que você tenha sonhos melhores que os meus - disse ainda olhando os olhos vermelhos do animal.

Minha garganta queimava de tão seca e meu estômago embrulhava de tão vazio. Fazia duas semanas e meia que minha mãe não comprava algo decente para comer ou beber. O inacreditável era que as bebidas e cigarros nunca faltavam. Peguei uma garrafa de Licor e enchi um copo de vidro e ingeri a bebida doce. Repeti a dose umas sete ou oito vezes até sentir a satisfação da leveza do corpo, mas ter a cabeça pesada e girando.

Aquela não era a primeira vez que eu acabava bêbada por sentir sede e não haver mais nada para beber que não fosse álcool ou água com muito cloro. O cheiro forte de maconha e charutos cubanos vinham da sala, o lugar pelo qual eu não queria passar já que Hugo e minha mãe estavam lá. Ainda tonta, tentei dar um passo, mas perdi o equilíbrio. Por via das dúvidas, sentei a mesa e baixei a cabeça.

Uma, duas ou três horas (eu não tinha mais noção do tempo) o cheiro de drogas ainda impregnava meu ar, me sufocando como se fosse eu quem fumasse. Incerta de que conseguiria, me pus de pé e caminhei até a porta...

–O que pensa que está fazendo? - a voz era com certeza de Hugo, mesmo me soando distante e distorcida. Minha mão ainda estava na maçaneta...

–Nada... - o fiapo de voz não conseguiu convencer nem a mim. O som do tapa que recebi no rosto ecoou por longos segundos.

–Você não deve sair. Não tem esse direito. - ele desferia mais tapas em meu corpo já enfraquecido pela bebida, entretanto, não estava satisfeito. Pegou o copo de vidro e o jogou contra mim. O impacto veio com força, mas apenas caiu no chão trincando em pedaços que ricochetearam e foram se alojar nos meus pés descalços. - E se alguém te visse? Sabe o que aconteceria com a carreira da sua mãe? Sabe o que aconteceria se as pessoas vissem a aberração que você é?

Aquele corte havia feito minha pressão cair e consequentemente meu corpo fraquejar; minha sorte é espetacular: caí sobre os pedaços do copo que se alojaram na minha cintura. Meu sangue escorria sujando o chão, as roupas e meu corpo... Hugo me chutou no mesmo lugar onde o vidro se enterrara na pele. Grunhi de dor. Claro que Hugo não ficou satisfeito... Ele nunca ficava. Arrastou meu corpo pela casa e pelos vários degraus até me jogar no sótão. Quarto empoeirado, sem luz e sem ar puro.

Eu estava trancada. De novo.

"Se existe algum deus" eu pensava " Vai me mandar ajuda. Vai me tirar daqui. Vai me dar alguém que me ame e que cuide de mim... Que não me abandone". Funguei impedindo lágrimas de me subirem aos olhos, mas não sendo capaz de controlar meu sangue ou o vomito...

Abri os olhos tão rápido que me assustei comigo mesma. Moombean me analisava com os olhos vermelhos, mudo de som, mas tão rico em palavras, perguntas e sentimentos.Suor me escorria pela testa quando me levantei. Ainda descalça caminhei para fora; Margaret praticamente dormia em pé. Coloquei os lobos de vigia e levei a já inconsciente caçadora para sua tenda. Observei cada rosto inexpressivo ou assustado... Como eu queria ser capaz de fazer aqueles pesadelos pararem!

Sem me dar ao trabalho de trocar de roupa, sentei no chão me escorando em um tronco esperando a luz do dia acabar... Infelizmente ainda faltavam quatro horas para isso.

[...]

Os dois deuses apareceram juntos ao por do sol sussurrando em grego e em tom preocupado, mas não me dei o trabalho de prestar mais atenção. Um grito percorreu nosso acampamento, mas não me dei o trabalho de levantar. Os dois deuses olharam preocupados para as barracas. Ártemis deu um passo em direção as meninas...

–Não pode fazer nada - minha voz saiu seca em um fiapo, como na lembrança. Ela olhou-me com dor e dúvida. Ela também não gostava de ter suas caçadoras sofrendo.

–O que quer dizer, Thalia? O que aconteceu com elas?

–Nada que não tenha acontecido comigo e algo que não entra em sua zona de poder. - ela manteve os olhos perolados focados em mim com intensidade, mas eu ainda me sentia meio morta para sentir o impacto deles - São pesadelos. Pesadelos horríveis onde vemos todas as nossas dores, principalmente as ligadas aos homens que conhecemos.

Ela suspirou e sentou-se no chão. Apolo continuou imóvel.

–Há quanto tempo isso anda ocorrendo?

–Algumas semanas e vem piorando a cada dia. Achei que fosse normal, mas não todas de uma única vez...

–Cronos anda interferindo nos sonhos de vocês. Isso só pode significar problemas...

–Como foi a caçada de vocês? - perguntei por pura distração, mas senti os dois desconfortáveis. Moombean deitou-se em meu colo, mas mantinha os olhos atentos.

–Ele gosta muito de você... - Apolo e Ártemis disseram juntos.

–Estão se desviando da minha pergunta. - o silencio foi tudo o que recebi - Apenas digam que não podem me contar, se for o caso... Não pode ser tão ruim.

–Pode e é - era muito estranho observar Apolo sério. Ocorreu-me de lembrar o dia em que me levou para casa; os últimos minutos naquela prisão.

–Não quero lhe dar mais pesadelos, querida. - Ártemis pôs as cartas na mesa - Ainda tem umas duas horas para o luar estar pleno; quer descansar nesse período? Você pode...

–Ter mais pesadelos. Não, obrigada. Acho melhor ficar acordada - eu tinha um mau pressentimento sobre aquela noite: ela seria longa e dolorosa.

[...]

Já vestidas de prata, esperávamos o comando de Lady Ártemis (pra mim era muito estranho chamá-la de lady; nunca recebi uma educação decente e chamá-la de maneira tão respeitosamente formal era desconfortável). Assim que se fez visível, caminhamos com calma em um silencio tenso e quase constrangedor.

Naquela noite, faríamos o contrario da nossa rotina: íamos à procura de alimento antes de sair para a caçada. Andamos milhas e mais milhas sem reclamar da distância ou de pés cansados. Mudamente concordávamos que era melhor estar andando do que sonhando.

–Não encontramos nada até agora.

–E devem faltar apenas seis horas para o romper da aurora.

As caçadoras cochichavam, mas a conversa chegava tanto aos meus ouvidos quanto nos da deusa. Cada árvore ou planta comestível havia ou desaparecido ou sido cortada. Um grande campo se abria a nossa frente; deveria ser uma fazenda, um milharal... Totalmente em chamas. Ouvi os ofegos das meninas e senti a raiva da deusa.

Concentrei-me ao máximo. Senti um puxão no estômago, como se estivesse perdendo nutrientes e força por uma mão invisível. Em troca, uma chuva caiu sobre nós e sobre o que restava do milharal. Forcei-me a não permitir nenhum raio cair, mas não domei os trovões. Estávamos encharcadas quando o fogo e a chuva cessaram. Cheguei a pensar que meu corpo cairia no chão, mas Ártemis me deu apoio.

–Vamos. Deve ter sobrado alguma coisa para comermos - a deusa me apertou os ombros carinhosamente - Muito bem, Thalia.

Durante mais meio quilometro tudo o que restou foram cinzas, mas conseguimos achar espigas o suficiente para cada uma de nós. Improvisamos uma fogueira e esquentávamos o milho quando minha irmã declarou o motivo daquilo:

–Os aliados de Cronos estão fazendo da Caçada um meio difícil de conviver. Eles querem nos fazer sentir medo e acreditar que não existe outra opção menos dolorosa. - ela fez uma pausa olhando cada uma de nós como se visse cada íntimo, cada alma aflita - Quero que entendam: sempre haverá outra escolha. Eu estou... - ela fez uma pausa sorrindo com tristeza e orgulho; uma estranha combinação, mas que a fez parecer ainda mais bela - Tão orgulhosa de vocês...

–E por que deveria estar? - Baheera se manifestou - Somos fracas. Estamos nos rendando aos pesadelos...

–Te tivessem se rendido, não estariam na Caçada, nem vivas estariam. - o tom firme da deusa acalmou a todas nós - Não sei o que vocês viram, mas posso suspeitar. Vocês são fortes por terem aguentado até agora...

–Por que está se culpando? - perguntei assim que percebi o que significava a mistura confusa nos olhos da deusa - Ártemis, quando aceitamos fazer parte da Caçada não o fizemos por ser a escolha mais fácil. Fizemos por ser a escolha mais difícil, mas a mais correta. - olhei em volta buscando apoio - Sabíamos que correríamos riscos ainda mais agora com a ameaça de uma guerra! Você não tem qualquer culpa pelos pesadelos - Não. A culpa é exclusivamente minha. – Me recuso a escutar mais qualquer palavra de lamento seu.

Minha voz soou parecida demais com a de um deus; a autoridade, a firmeza e a inflexibilidade contidas naquele som que escapou do fundo da minha garganta me pareciam, não meus, mas de algum deus superior. Ártemis me olhava não com raiva, mas com surpresa e admiração. Era em momentos como este que eu via o quanto filha de Zeus eu era.

Encharcadas voltamos à caminhada infindável em busca de que não sei. Estava começando a pensar que a deusa queria mais nos distrair dos pesadelos, das lembranças difíceis. Se no passado eu não gostava tanto dos deuses, hoje eu tinha uma visão mais ampla e, embora ainda crítica, mais justa sobre os deuses. A cada novo dia Ártemis não era apenas uma deusa, a líder da Caçada, ela era, não apenas minha, mas nossa irmã.

A deusa parou bruscamente interrompendo minhas novas conclusões. Havíamos chegado a um ambiente “fechado”. Rochas, mato e um pequeno córrego sobre os pés nos impediam de seguir com velocidade, mas Ártemis estava inquieta como se conhecesse o lugar e não gostasse do que poderia acontecer.

O segundo seguinte foi marcado com clareza: fui atingida na nuca por uma pedra. O impacto foi o suficiente para me derrubar e me deixar sem movimentos, quase inconsciente... Não fui morta por segundos de precisão. Eu sabia que sangrava e que estava caída na água; não porque sentisse a maciez e a frieza dela, mas por conseguir ver com o restante de lucidez que me restava o tom vermelho rosado do meu sangue diluído correr.

As meninas pareciam gritar, poucas flechas voavam, os lobos não estavam conosco e a deusa estava tão perdida quanto nós. Não consegui mais enxergar formas. Tudo era um grande borrão colorido...

Sei que não entreguei os pontos, que não me rendi ao instinto de desmaiar. Sei que minha memória não está tão enganada e que os borrões se tornaram formas. Sei que as escolhas que tomamos foram certas, carregadas de honra, mas cheias de culpa e pesar... Sei que isso tem algo haver com a promessa do demônio.

Ao olhar para cima vi de relance duas constelações: Vi Zoe, minha irmã de caçada... E uma águia, meu pai...


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Notas finais do capítulo

Espero que me desculpem: esse cap estava pronto a um tempão, mas não tive o tempo de postar. Também espero que me perdoem os erros existentes.
Sobre os últimos parágrafos: será melhor explicado no próximo cap.
Bjss =))



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