Premonição 6: Inferno escrita por Lerd


Capítulo 15
Obituário


Notas iniciais do capítulo

Capítulo respostado, agora respeitando as regras do Nyah. Peço desculpas à todos os leitores que tiveram seus comentários nesse capítulo excluídos por conta da minha infração.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/307364/chapter/15

A garota apertou a alça da mala cor de rosa com a maior força possível.

Se eu olhar para trás, estou perdida.

Os cabelos estavam curtos. Continuavam ruivos, porém. Dessa vez não chorava: já havia tido dezenas de outras despedidas; essa, no aeroporto, seria só mais uma delas. A última.

— Eu vou voltar Damien. — Alice teve de prometer pela milésima vez. — E vocês vão me visitar nas férias, a mamãe prometeu. Não é mamãe?

A mãe da ruiva concordou com um aceno de cabeça. Abraçou o rapaz por trás e passou a mão por seus cabelos louros. Ele já tinha onze anos, considerava-se um homem feito, e não era de bom feitio que ficasse chorando. Damien não ligava, chorava mesmo assim.

Nunca conseguira ver Alice como sua mãe. Ela era nova demais, e irresponsável demais. Na prática quem havia conseguido a sua guarda fora ela, mas a garota logo se arrependeu. Ela não tinha nem o dobro da idade do menino, e tinha toda a vida pela frente. Tê-lo adotado havia se mostrado um erro. Ela o amava de todo o coração, e queria estar junto dele sempre, mas ainda não estava preparada para ser mãe.

Para ser uma irmã mais velha, talvez estivesse.

Não demorara muito, e na prática as coisas continuavam as mesmas. Madeline, sua mãe, era agora a responsável legal por Damien. Alice continuara como sempre ao lado do garoto, mas agora no definitivo papel de irmã e não de mãe. Esse primeiro muito mais adequado.

Mas agora estava indo à Paris por tempo indeterminado. Podiam ser dois anos, podiam ser vinte, podia ser a vida toda. O emprego oferecido pela Vogue Paris era irrecusável, daquele tipo que só acontece uma vez na vida e apenas para os mais sortudos e competentes. Alice estava disposta a largar tudo para trás para alcançar seu sonho.

Até mesmo Damien.

No aeroporto estavam todos os seus amigos. Lily e os meninos, Matt, Beth e a nova namorada dele, seus pais, Damien, Melissa e o amigo dela (que Alice achara bem bonitinho, aliás), os amigos de trabalho, as amigas da época da faculdade...

— Me prometa que você vai aproveitar ao máximo tudo isso de bom que está te acontecendo. — Lily pediu, abraçando a amiga com força.

Alice garantiu com um aceno de cabeça, tentando afastar as lágrimas. Eu prometi não chorar. Não dessa vez. Se eu olhar para trás, estou perdida.

— Eu vou, darling, eu vou.

Matt não conseguiu perder a oportunidade de provocar:

Darling? Não sei se você sabe, Alice, mas na França se fala francês.

Todos riram, inclusive a ruiva. Ela balançou a cabeça e sorriu. Sempre o mesmo...

Por alguns milésimos de segundos, pensou em como a vida tinha sido boa para com ela. Junto a esse pensamento, foi inevitável se lembrar de Bobby e de como ele fazia falta. Aos poucos ele se tornara apenas uma lembrança boa, e todos conseguiram superar a sua morte. Mas ainda doía forte, mesmo quatro anos depois, e nada jamais fora o mesmo. Alice pensou em como as coisas seriam se ele estivesse ali. Será que ela, Lily, Matt e Melissa seriam tão unidos? Talvez sim, talvez não. Era impossível saber. Bobby estava morto e jamais iria voltar.

— Você vai perder o seu voo, Alice. — Damien observou.

A jovem não conseguiu não reparar em como a voz do garoto estava ficando grossa. Será que da próxima vez que ela o visse, em Paris, ele ainda estaria daquele tamanho? Provavelmente não. As crianças de hoje em dia crescem muito rápido.

Alice decidiu fazer um último gracejo, que poucos entenderam, e que arrepiou a todos eles:

— Se o voo for 180 eu não embarco.

Ninguém conseguiu rir, mas o clima não ficou pesado. O voo era de número 75, então tudo devia ficar bem. Pelo menos por aquela vez.


x-x-x-x-x


Matt dirigia o carro com bastante cuidado, dando umas olhadas esporádicas em Beth, sentada na cadeirinha, no banco de trás. A garota já estava com pouco mais de quatro anos, e em breve estaria entrando na escola. Os cabelos continuavam castanhos escuros, e os olhos continuavam estreitos. A menina era bastante falante, e não parava um segundo sequer. Dessa vez, por sorte, estava cansada e dormia tranquilamente. Matt imaginava que devia ter sido a corrida com Max no aeroporto que a deixara tão exausta.

— Eles crescem tão rápido. — O rapaz comentou, de repente.

A namorada o olhou com ternura. Sorriu.

— Sim. — Ela concordou, e tocou o braço dele com a sua mão.

A loira se chamava Renae e, além de modelo, havia representado o seu país de origem, a Austrália, no Miss Universo 2012. Matt se beliscava todas as vezes que pensava em como havia sido sortudo. Claro, Renae era uma das mulheres mais bonitas do mundo na certa, mas ela era muito mais do que isso. Era inteligente, astuta, compreensiva, gentil, adorável. Ela amava Beth, e era a companheira perfeita. O rapaz aguardava ansiosamente uma situação ideal para pedi-la em noivado. Se Bobby estivesse aqui, como bom padrinho que ele seria, já teria me ajudado a criar essa situação ideal.

— Sabe, eu não quero ter outro filho tão cedo. — Matt disse.

Renae virou-se para trás e observou a tranquilidade com que Beth dormia. Comentou:

— Eu também não. Beth é o suficiente para nós dois.

Há anos os pais de Matt e os pais de Jamie souberam que ele não era o pai biológico de Beth. O rapaz decidira contar um dia, de repente, e pegara todos de surpresa. Não fez diferença. Os avós maternos da menina sabiam do amor que Matt tinha pela garota, e esse fato não mudava absolutamente nada.

Renae riu sozinha, e então comentou:

— O Damien é que vai se dar bem. Filho único de um casal de velhos ricos. Imagina o quão mimado esse garoto não vai ser? Isso se já não é né? Eu percebi aquele par de Armani nos pés dele.

Matt riu.

— O Damien não liga muito pra dinheiro, eu acho. Tanto que foi difícil pra Alice convencê-lo a largar das roupas que ele tinha e comprar novas.

A loira concordou com um aceno, mas argumentou:

— Se for assim, melhor. Mas eu não acredito muito nisso. E se ele gostar de dinheiro, que mal há nisso? Desde que ele seja usado da maneira correta não há mal algum.

— Vish, pelo andar da carruagem eu já estou vendo que vou precisar arrumar outro emprego pra arcar com os seus gastos... — Matt brincou, sem tirar os olhos da estrada.

Renae fez-se de ofendida:

— Eu sou uma mulher moderna, meu amor. Eu ganho o meu próprio dinheiro.

Matt concordou com uma risada gostosa que acabou por acordar Beth.

Nunca na vida o rapaz se sentiu tão feliz.


x-x-x-x-x


Emily acordou e olhou ao seu redor. Não havia ninguém no bar além dela, e as portas estavam fechadas. De repente Big Tom apareceu, espreguiçando-se.

— Dormiu bem?

A loira fez uma careta, e também se espreguiçou.

— Como... Eu...

O gigante entendeu o que ela queria perguntar antes que ela terminasse de formular sua frase:

— Você bebeu demais, foi isso. Apareceram uns turistas suecos aqui, e eles gostaram de te ver tocando. Pagaram umas cinco rodadas em sua homenagem, e você fez questão de tomar dois copos a cada rodada. Me espanta que você não esteja desmaiada ainda.

Emily riu.

— Que horas são?

Big Tom olhou em seu relógio de pulso e respondeu:

— Dez e meia.

— Oh meu Deus! Eu estou atrasada!

E então se levantou e começou a recolher suas coisas. Guardou o saxofone na mochila e tentou se recompor.

— Obrigada por me deixar passar a noite aqui, Tom. — Emily disse, sorrindo.

O homem deu com os ombros. Abriu um sincero e alegre sorriso e respondeu:

— Quê isso. Amigos são pra essas coisas.


x-x-x-x-x


Emily entrou acanhada. Algumas crianças passaram correndo ao lado dela, e quase a levaram junto. A loira riu. Ajeitou o saxofone nas costas e suspirou. Tudo ao seu redor transpirava vivacidade. Ela estava acostumada com escolinhas, mas aquela ali parecia emanar mais felicidade do que qualquer uma das outras. As pessoas precisam ver isto, pensou. Aqueles que imaginam que escolas para crianças especiais são tristes e quietas... Esses barulhos, essas cores, esses risos... É a mais pura felicidade...

Havia algumas inspetoras por perto, cuidando das crianças, e Emily foi falar com uma delas. A mulher rapidamente lhe indicou onde ficava o escritório da pedagoga, e a loira seguiu até lá com um sorriso no rosto. As crianças continuavam a passar ao seu redor, todas rindo e se divertindo. Havia também algumas com livros nas mãos, e outras pintando coisas.

A garota parou na porta. Lá havia uma plaquinha de papel sulfite em que estava escrito, com giz de diversas cores: “Lily Millwood, pedagoga”. Estava claro que quem havia feito aquela placa fora uma criança. Emily sorriu pelas milésima vez naquele dia.

Esfregou as mãos na calça jeans e ajeitou o camisete e o cardigan. Influência do Francis. Ele faz falta. Aproveitou ainda e amarrou melhor o seu rabo de cavalo. Estava a ponto de bater na porta quando ela se abriu sozinha.

— Oh, me desculpe, eu... — Ela começou, mas foi interrompida.

A mulher que acabara de abrir a porta a olhou da cabeça aos pés com curiosidade.

— Você deve ser a Emily. — Lily falou com convicção.

A outra garota concordou com um aceno de cabeça.

— É um prazer conhecê-la finalmente! — Emily exclamou, entusiasmada. — E se me permite dizer, estou apaixonada por essa escola. As crianças são tão... Vivas!

Lily agradeceu com um sorriso e pediu que Emily entrasse e se sentasse. A garota fez isso prontamente, ainda um pouco nervosa.

— Se me permite perguntar... Quantos anos você tem? — Lily perguntou, ajeitando uns papéis em cima da sua mesa.

— Vinte e quatro. — Emily respondeu.

A outra mulher riu. A saxofonista não entendeu aquela reação, mas Lily foi logo se explicando:

— Me desculpe, é que você parece ser tão nova e... É mais velha do que eu.

Era verdade. Lily havia acabado de fazer vinte e dois anos.

— Isso é espantoso. — Emily comentou. — Você é tão nova e já é a administradora dessa escola...

— Oh, mas isso foi resultado de muito trabalho duro e confiança por parte daqueles que me designaram essa função. Além disso, eu tenho o apoio da professora Lisbeth, que possui mais de quarenta anos de carreira. Eu costumo dizer que eu sou o rostinho bonito e ela é o talento dessa escola.

Emily riu, provavelmente mais do que deveria. Lily não se importou. Vasculhou os papeis em sua mesa e disse:

— Bom, eu acho que não tenho muito o que dizer pra você, Emily. — Ela começou, e as esperanças da outra garota estavam a ponto de receber um balde de água fria, quando Lily continuou: — Quando você pode começar?

— Você quer dizer que a vaga é minha?

Lily concordou com um aceno de cabeça, e explicou:

— Seu currículo é fascinante. Você trabalha com crianças especiais desde que se formou na Universidade de Houston, sabe falar diversos idiomas, toca saxofone... Na verdade isso até me deixa um pouco suspeita...

— Suspeita? — Emily não compreendeu.

— Sim, suspeita. — Lily falou. — O que alguém com credenciais tão boas está fazendo em uma cidade tão pequena? Ensinando em uma escola tão simples como a nossa...? Você poderia estar fazendo coisas grandes, Emily.

Emily sabia que aquela pergunta lhe seria feita em algum ponto, e tinha uma resposta pronta:

— As crianças das cidades pequenas merecem coisas boas tanto quanto as crianças das cidades grandes.

Lily sorriu consternada com aquela resposta.


x-x-x-x-x


— Então aquele é o seu filho? — Emily perguntou, observando o garotinho louro sentado e pintando.

Lily concordou com um aceno.

— É um deles. Eu tive gêmeos. O outro não veio pra escola hoje, está gripado. O Max não possui nenhuma síndrome. Eles são bem diferentes.

Isso explica a paixão com a qual ela trabalha. Ela não faz isso apenas por si mesma ou pelas outras crianças. Ela faz isso pelo filho...

— Me desculpe a intromissão, mas você é casada? — Emily perguntou.

— Não. — Lily respondeu. — Não estou nem namorando no momento... — E riu. — O pai deles morreu num acidente de trem há quatro anos. O Max e o Bimbo são as minhas únicas recordações dele.

Emily sentiu uma onda de eletricidade percorrer todo o seu corpo.

Acidente de trem, Bimbo... Seria possível que aqueles garotos fossem os filhos do rapaz do qual Emily ouvira falar a um ano atrás?

Não importava. Bobby e o descarrilamento do Trem 081 pertenciam ao passado de Emily.

E ela não sabia, mas pertenciam também ao passado de Lily.


x-x-x-x-x


Havia cerca de duzentas e cinquenta pessoas no auditório da Universidade Columbia. Angel estava sentado em uma das cadeiras apoiadas na parede, atrás da oradora. Ao lado dele estavam mais quatro estudantes, todos eles envolvidos com o desenvolvimento do livro sobre o Massacre da Babilônia.

No centro do palco, atrás do atril, Kelsey falava:

—... E com o tempo eu comecei a perceber que isso era tudo o que eu era: uma vítima. E isso era inaceitável para mim. Então eu decidi começar a escrever um novo papel, que seria o meu. O papel de uma mulher que deixa as cortinas do medo para trás, e dá um passo em direção à luz, saída direto das trevas. Mas claro que eu não poderia ter feito isso sem a ajuda dos meus amigos e colaboradores de todas as horas. Eu não vou citar os nomes deles porque acabaria me esquecendo de alguém e isso seria uma injustiça absurda. — E olhou para os colegas atrás de si com ternura. — Mas saibam que esse livro é mais do que uma obra de autoajuda. É também mais do que um relato sobre o massacre cometido na nossa universidade. É uma carta de esperança, é um atestado de que existe vida após qualquer tragédia. — Sorriu ternamente e finalizou: — Obrigada.

Todos na plateia se levantaram e aplaudiram. Angel e os outros fizeram o mesmo.

Assim que os espectadores começaram a se dispersar, o rapaz aproximou-se de Kelsey e lhe deu um abraço. Disse:

— Você foi ótima. Como sempre.

— Obrigada. — Ela agradeceu.

Aquela era a sétima palestra que Kelsey e os outros alunos davam. Eles estavam de férias, e a sua universidade incentivara uma turnê de divulgação do livro lançado por eles sobre o Massacre da Babilônia. Na época, há dois anos, Kelsey, Angel e os outros eram apenas calouros. Agora eles já estavam em seu terceiro ano de universidade, e haviam provado que era possível superar o trauma que acometeu a todos.

A garota também aprendera a perdoar e a sentir a falta de Ryan. Ela nunca chegara a pensar nele e na falta que ele fazia antes de começar o desenvolvimento do livro, mas ao entrar em contato com os familiares das vítimas do massacre, não pôde deixar de pensar que apesar da traição, ele era um bom rapaz. Era um canalha, claro, mas tinha toda uma vida pela frente, para aprender com os erros e se tornar uma pessoa melhor. Tinha.

— E aí, você vai pro bar com a galera? Parece que a Lambda Chi Alpha daqui da Columbia vai pagar uma rodada pra gente.

Kelsey pensou um pouco e decidiu que aquela era uma boa ideia.

— Pode ir na frente, eu preciso ligar pro Connor. Encontro vocês lá.

Angel concordou e abraçou a amiga mais uma vez.

Connor era o namorado de Kelsey. Os dois estavam saindo juntos há algumas semanas, e ele parecia ser um cara bacana. Alto, negro e com os olhos mais belos que ela já vira, ele jogava no time de basquete da universidade dela, e se transferira pra lá meses após o Massacre da Babilônia, vindo de Yale. A garota nunca entendeu o motivo de ele ter largado uma das melhores universidades do país para se enfiar no buraco que era a sua universidade, mas ficava feliz que ele tivesse feito isso.

— Príncipe? Sim, eu estou bem. A palestra acabou agora pouco na Columbia...


x-x-x-x-x


Palestrar lhe deixava renovado. Skip e Monica ainda eram lembranças constantes, mas falar sobre o assunto parecia fazer a dor desaparecer um pouquinho, quase como se eles estivessem mais perto dele. Angel não desejava morrer tão cedo, mas era um consolo saber que quando acontecesse, ele voltaria a se encontrar com o seu irmão e com a primeira mulher que verdadeiramente amara.

Enquanto isso lhe restava a farra.

Angel desceu as escadas do bar quase caindo. De repente tropeçou, e uma das garotas o segurou segundos antes de ele cair de cara no chão.

— Calma aí, garanhão. — Ela disse.

— Eu acho que bebi demais. — O rapaz confessou. — Onde estão os meus amigos?

— Eles já foram pros dormitórios há meia hora. Você estava dormindo caído no sofá, e eu disse pra eles que nós te colocaríamos na cama com carinho. — E riu.

As outras sorority girls rapidamente se despediram deles, e de repente a garota e o rapaz caminhavam sozinhos pelas ruas parcamente iluminadas do campus.

— Qual o seu nome? — Angel perguntou, um pouco mais sóbrio.

— Sarah. — Ela respondeu.

— Bonito nome. Eu sou o Angel, prazer. — O rapaz estendeu a mão. A garota ignorou o gesto, e lhe deu um beijo na boca como cumprimento. Angel riu largamente.

— Você se chama Eliott, eu sei. — Sarah provocou.

Angel fingiu estar bravo, e com um sorriso cínico disse:

— Eu não gosto desse nome. Eu sou o Angel e fim. — E ergueu um dedo inserto, como se tivesse feito uma grande declaração. — Mas como você sabe o meu verdadeiro nome?

Sarah fez uma cara de suspense, mas então respondeu:

— Eu estava na sua palestra.

— Mas eu me apresentei como Angel lá.

— Mas não foi assim que a sua professora o chamou ao dizer que era a sua vez de discursar, Sr. Eliott Mauser.

Ela é boa, Angel pensou.

— Justo. — Ele declarou. — Mas e então, Sarah. — Angel disse com malícia na voz. — Qual a sua história?

— A minha história? Como assim? Eu não tenho uma história.

Angel riu. Sarah não pôde deixar de sentir seu coração bater mais forte ao ouvir aquela risada. Ele é sexy.

— Todo mundo tem uma história. — Ele declarou.

A garota achou aquela resposta de uma esperteza absurda.

Os passos se tornavam cada vez mais lentos, como se os dois não quisessem chegar ao seu destino tão cedo. Ainda faltava uma longa caminhada, mas para Sarah a conversa poderia durar para sempre.

— Eu matei um cara. — Ela confessou, de repente.

Angel gargalhou.

— É sério. Eu matei um cara. Um mendigo. Quatro anos atrás.

O rapaz olhou para ela com incredulidade.

— Quatro anos atrás? Você devia ter, sei lá, quatorze anos.

— Dezesseis.

— Porque você, com dezesseis anos, mataria um mendigo? Para de brincadeira, Sarah. — E riu.

Oh, Angel, você nem imagina.

Mas apesar de ela não saber, ele a entenderia completamente.

— Digamos que minha vida dependia disto. Se ele não tivesse morrido, eu é que morreria.

Angel ainda levava a conversa na brincadeira, e falou:

— Legítima defesa, então. Nada com o que se sentir culpada.

Sarah concordou, chacoalhando os ombros.

— E você se arrepende de ter feito isso? — O rapaz perguntou.

A garota pensou na resposta que daria por vários segundos, e pela primeira vez em quatro anos, decidiu ser sincera consigo mesma:

— Não. Se eu não tivesse feito isso, eu não estaria aqui podendo fazer isso...

E antes que Angel pudesse reagir, Sarah agarrou-o com força e lhe deu o beijo mais demorado e quente de toda a sua vida.


x-x-x-x-x


Os longos e finos dedos correram o pescoço da cor de gesso com delicadeza. As cicatrizes de queimadura no corpo de René eram feias, mas não horríveis. Eu fui beijado pelo fogo, ele gostava de dizer, se referindo tanto às suas cicatrizes como ao seu cabelo ruivo.

— A mamãe está te chamando pra almoçar. Ela disse que é falta de educação não almoçar com as visitas.

Quem havia dito aquilo fora Leshawna, a peste que René mais amava no mundo inteiro.

— E desde quando a Marina é visita, sua tosca? Ela é de casa. Desce e fala que já to indo.

A garota xingou o irmão e saiu bufando. René só conseguiu rir.

Ficou se olhando, sem camisa, no espelho, por vários segundos. Parecia estar admirando suas cicatrizes.

E estava. Tinha orgulho delas, de certa forma. Nunca fora vaidoso, então a aparência delas era a parte menos importante. Elas significavam algo, representavam uma batalha que ele havia enfrentado e vencido. A batalha contra a própria morte. Quantos podem se gabar de terem feito isso? Mas eu sei que só consegui porque tive a ajuda do Senhor.

“E disse-me: estas palavras são fiéis e verdadeiras; e o Senhor, o Deus dos santos profetas, enviou o seu anjo, para mostrar aos seus servos as coisas que em breve hão de acontecer.” Mas será que eu sou um anjo?

René relera esse versículo infinitas vezes, e acreditava (de maneira incerta) que tudo o que tinha acontecido era o propósito de Deus. A bênção do Senhor é que enriquece; e não traz consigo dores.

Lembrava-se de que a notícia da morte de Pam e Marsellus havia chegado no dia em que ele acordou. Jill confirmara que ele dormira por dois dias seguidos, e Dawn e Edwin não aguentaram a demora. Assim que os aeroportos foram liberados, eles pegaram o primeiro voo em direção à Cancun, junto dos pais de Jill e da mãe de Hank.

Marina não lhe dera os detalhes de como os corpos da mulher e do homem foram encontrados, mas René se recusava a acreditar que a lista os tivesse pegado. Ele era o próximo, e não havia escapado verdadeiramente. Estava decidido a acreditar que Pam e Marsellus morreram fora da ordem (por algum motivo que ele desconhecia) e que ele e Brody estavam salvos.

Tal suposição vinha se mostrando certa, já que haviam se passado quase seis meses e ele continuava vivo.

De repente, a porta se abriu. René se cobriu com a primeira coisa que encontrou, apesar de não estar nu. Será que eu gosto mesmo dessas cicatrizes? A ponto de deixar que os outros as vejam?

Era Jill.

— Será possível que você precise de tanto tempo pra se arrumar? Caramba!

A garota foi logo abrindo o guarda-roupa dele e pegou uma camiseta polo listrada de azul e branco. Jogou-a na cama de maneira displicente e, enquanto vasculhava o restante das roupas dele, disse:

— Veste essa que você fica lindo de azul. Combina com os seus olhos. Além disso, o Brody precisa ver que você está usando a camisa que ele te deu.

Ouvir o nome do rapaz fez os olhos de René brilhar.

— O Brody está aí? — Ele perguntou empolgado.

— Está sim. — Jill confirmou. — Ele e a Melissa.

Aquilo foi o suficiente para fazer René colocar a camisa com uma rapidez absurda. Ele estava doido para rever Brody, já que fazia duas semanas que eles não se viam.

Os dois se tornaram como irmãos após o pesadelo que enfrentaram. Ele perdera Hank, o seu melhor amigo (e talvez a pessoa que mais amava depois de sua família), e o rapaz perdera a mãe. Foi fácil para eles encontrarem conforto um no outro. Jill e Melissa eram maravilhosas, claro, mas elas não compreenderiam como era perder alguém tão próximo. Ou será que compreenderiam? Melissa perdera o irmão, era verdade, mas já fazia tanto tempo...

A verdade era que René sentia-se bem na presença de Brody. Sentia-se melhor. Não era nenhum tipo de atração física ou sexual (René estava seguro de sua sexualidade), mas uma aproximação mais pura, uma ligação emocional.

— Vocês dois tem um bromance. — Jill disse em tom de brincadeira, um dia. E qual foi a surpresa de René ao pesquisar sobre o termo e perceber que havia muita verdade nessa brincadeira de Jill?

Desceu as escadas antes da namorada, e recebeu o amigo com um forte abraço.

Jill foi direto para a cozinha, onde Dawn e Marina conversavam. Sugar corria de um lado para o outro, fugindo de Bruno e Paddox, enquanto Edwin tentava, com aflição, conter a agitação das outras crianças. Elas ainda não haviam se acostumado com o sagui de estimação, e eram constantes as “caçadas” ao bicho para ver quem teria o privilégio de agarrar o sagui e brincar com ele. Sugar fazia-se de antipático, mas no fundo René sabia que ele gostava desses carinhos. Ele deve sentir a falta da Babe. Ela também era uma beijada pelo fogo.

— O Paddox não gosta de cebola de jeito nenhum. Eu já tentei convencê-lo a comer, mas ele cospe tudo. Eu não sei o que fazer... — Marina desabafou.

— Deixa que ele fique sem comer as cebolas. Aconteceu a mesma coisa com o René. Quando ele era pequeno, detestava cenouras. Eu não forcei nada, e ele naturalmente sentiu a vontade de experimentar ao ver os irmãos comendo. É natural, Marina. São fases. Vai por mim.

Jill ouvia tudo atentamente. Ela sabia que Paddox era o garoto vietnamita que Marina adotara havia quase seis meses. Ela finalmente está dando uso àquele casarão, a garota pensava feliz. Imaginava que o fato de René também ser filho de uma mãe adotiva tivesse influenciado a oficial, mas não sabia dizer com certeza.

— Todo mundo pra mesa! — Dawn anunciou, de repente, e não levou mais que alguns minutos para que o batalhão se reunisse ao redor da mesa para almoçarem.

Eram muitas conversas paralelas. René, Brody e Melissa conversavam sobre um assunto, enquanto Jill e Marina trocavam comentários sobre outro. Edwin cuidava para que Bruno comesse direitinho, enquanto Dawn dava bronca para Sophie e Loren pararem de brincar com a comida.

Para Marina aquele era um caos maravilhoso. Quem sabe o Paddox não possa ganhar uma irmãzinha?

— Atenção, atenção. — René disse de repente, se levantando e batendo com o garfo na taça que segurava em mãos. — A Jill tem um anúncio pra fazer.

A garota ficou vermelha em segundos. Todos a observaram com caras risonhas, enquanto ela brigava com o namorado. René a ignorou, e continuou:

— Se ela não vai falar, então falo eu. A Jill foi selecionada para o Miss Teen USA do ano que vem!

Todos começaram a aplaudir e assoviar, enquanto a garota escondia o rosto de vergonha. Quando teve coragem de falar, disse:

— Eu recebi o telefonema essa manhã. Eu nem esperava ser chamada, fiz a audição apenas por diversão, sabe? Mas eu estou feliz.

René soltou um grito de animação, e então beijou a namorada de maneira apaixonada.


x-x-x-x-x


Krista sempre se surpreendia quando olhava para baixo da sacada do quarto de hotel onde estava. Bangcoc poderia ser a mais bela e a mais terrível cidade do mundo, dependia de qual era o seu ponto de vista. Krista possuía ambos os olhares, e a considerava o paraíso do inferno.

Giancarlo saíra havia quinze minutos. Fora recepcionar, no aeroporto, um colega cirurgião plástico que estava vindo auxiliá-lo. Logo estaria de volta. A garota sabia que deveria estar se arrumando para o encontro deles, mas estava com preguiça. Toda aquela atmosfera suja com a qual convivia a enojava.

Mas ela passava por aquilo porque no meio de toda a sujeira havia seu príncipe. O herói capaz de tudo para ajudar as pessoas. Krista amava o altruísmo de Giancarlo tanto quanto odiava. Era a sua melhor e a sua pior qualidade.

Eles estavam em Bangcoc fazia quase duas semanas. No início a garota pensara que seria uma viagem maravilhosa a um lugar paradisíaco. Mas o namorado logo a alertara:

— Essa é uma viagem a trabalho. Nós teremos algum tempo para passear, claro, mas eu vou gastar boa parte do meu tempo trabalhando. Tem certeza de que não quer esperar eu voltar para viajarmos com mais calma?

Ela tinha.

Arrependeu-se no terceiro dia.

Giancarlo realmente estava em Bangcoc a trabalho.

Ele fora convidado por uma ONG que lidava com reconstruções de cirurgias plásticas mal feitas em países subdesenvolvidos a ajudá-los. Giancarlo já viajara da Índia ao Brasil, passando por todos os países da América Latina, consertando cirurgias mal feitas realizadas por cirurgiões que ele chamava de “açougueiros”. Krista vasculhara as fotos que o homem mantinha guardadas em seu notebook e era um circo de horrores. Havia desde implantes de silicone que terminavam com a mulher tendo de retirar todo o seu seio (inclusive a parte natural) até abnoplastias que deixavam os pacientes com verdadeiras crateras na barriga. Era um trabalho sujo, podre, e que requeria bastante estômago.

Ali na Tailândia, Giancarlo fora designado para um tipo específico de reconstrução, que era o de corrigir cirurgias de mudança de sexo. Krista descobriu, através do namorado, que o país era o número um em cirurgias de troca de sexo, mas nem todas realizadas de maneira adequada. Havia ali os melhores cirurgiões do mundo, mas também os piores. A “democratização” do procedimento levou muitos médicos recém-formados (vários de outras áreas que nada tinham a ver com a cirurgia plástica) a embarcarem na “aventura”. Foi um caos, e atualmente havia milhares de jovens desesperadas com problemas graves de saúde. Com mais de duzentas mil pessoas realizando o procedimento, era óbvio que problemas apareceriam.

Giancarlo estava ali para consertá-las, e Krista arrependia-se de estar o acompanhando.

Tudo aquilo, por fim, fizera com que ela repensasse a sua própria cirurgia na bochecha.

Aquele, aliás, era um assunto tabu para ela e Giancarlo. Desde o momento em que eles se conheceram, o homem se recusou veementemente a operá-la. Disse que ela era bonita e que devia continuar daquela maneira. Krista discordou, e eles passaram os primeiros meses do namoro discutindo constantemente sobre esse assunto. Há uns quatro meses atrás, porém, ele concordara em realizar a cirurgia. Mas isso não significou que os problemas estavam encerrados.

A cada vez que eles marcavam a data, Giancarlo arranjava algum compromisso e tudo tinha de ser mudado de data. Às vezes eram outros trabalhos (segundo ele, “mais sérios”), outras vezes eram apenas viagens. Krista sabia que poderia facilmente procurar outro cirurgião e realizar a cirurgia sem precisar da aprovação do namorado, mas não gostaria que fosse assim.

Depois de ver a situação das garotas e o que elas sofriam nas mãos dos açougueiros, decidiu que iria esperar. Não sabia quanto tempo, e não era uma decisão definitiva, mas estava disposta a aguardar pelo menos mais alguns meses, quiçá anos.

Giancarlo chegou quando ela terminava de colocar o seu vestido.

— Vermelho realmente cai bem em você. — Ele disse, atrás dela, sorrindo através do espelho.

A garota ergueu o pescoço e mandou um beijo invisível.

— E o seu amigo? — Perguntou.

— O doutor Paresh está se instalando no quarto ao lado. Nós vamos sair pra jantar as oito.

— Cedo. — Ela comentou.

— Concordo. — Ele concordou, e lhe deu um beijo na nuca.

O celular de Krista então tocou. Era uma mensagem de Emily. Fazia só um dia que elas não se falavam, já que haviam feito uma conferência por Skype na manhã anterior. O que será que a Emily quer?

A mensagem pedia para que Krista abrisse seu e-mail.

Quando abriu, a mulher deu um gritinho de empolgação.

— O que foi, querida? — Giancarlo perguntou.

— É um convite de casamento. — Ela confirmou, ainda radiante.

— De quem?

A mulher preferiu abrir o e-mail para que o namorado visse. A foto era bonita, e provavelmente fora Emily quem tirara. Nela Johnny e Heather estavam de mãos dadas correndo por um campo verde.

— Eu não posso acreditar que eles vão se casar. — Ela comentou, visivelmente feliz pela alegria do rapaz. Apesar de eles não serem muito próximos, ela via Johnny como um irmão mais velho, e ficava alegre pelo fato de as coisas estarem dando certo na vida dele.

— Daqui uns meses pode ser a gente. — Giancarlo disse, dando beijo em sua bochecha.

— Quem sabe? — Krista falou, e deu um sorriso malicioso.


x-x-x-x-x


— Você sabe que eu sou alérgico a esse negócio que eles colocam pra fazer as rosas brancas ficarem azuis. — Johnny comentou, esperando que aquela desculpa fizesse a noiva mudar as flores do casamento.

Heather não deu atenção a ele por vários minutos, focada nas mensagens que trocava com Kelsey no notebook. Quando a amiga parou de responder, ela resolveu comentar o que o noivo tinha dito:

— Mas a decoração toda já foi pensada com as rosas azuis em mente. Se nós as trocarmos nada fará sentido.

Mas então ela compreendeu que ele estava blefando.

— Você nunca foi alérgico às rosas azuis. Você não as quer porque elas são a sua ligação com a Jade. É, é isso. — Heather percebeu de repente. — As rosas azuis, é claro! Deus, como eu sou insensível! — E correu até o sofá onde Johnny estava sentado, lhe abraçando e lhe dando vários beijos na bochecha.

O rapaz deu com os ombros. Disse:

— É só que eu acho estranho. Sabe? Nós temos a nossa coisa, e aquelas rosas são tão emblemáticas. Você consegue entender o meu desconforto?

Heather meneou a cabeça positivamente.

— É claro que eu consigo, meu amor! — E apoiou a cabeça no ombro do noivo. — Nós vamos pensar em outra coisa. Rosas lilases, que tal? Eu acho que se trocarmos a cor dos guardanapos, pode servir. Eu vou falar com a Martha agora mesmo. — E levantou.

Johnny sorriu consternado. Não se cansava de pensar em quão sortudo havia sido por conhecer Heather. Depois de Jade ele pensara seriamente que jamais poderia amar de novo, mas então a jornalista conseguira fazê-lo sentir o que pensou não poder sentir nunca mais.

Tudo estava dando certo. Para os dois.

Para Heather as coisas estavam dando mais do que certo, aliás.

A matéria sobre o desastre nas ruínas Maias de Tulum rendeu à mulher um documentário. O documentário, por sua vez, rendeu alguns prêmios em festivais de cinema. Os prêmios, por fim, renderam convites. E em poucos meses, a jornalista que começara como uma como uma simples correspondente, via-se diante de um convite para ser a âncora de um jornal de horário nobre dos Estados Unidos.

Como era de se esperar, Heather aceitara. Já há alguns meses ela aparecia todos os dias, às nove da noite, em todas as casas do país.

A fama não parou aí, porém. Fã quase obsessiva de reality shows, Heather se inscrevera em The Amazing Race, e inscrevera o noivo com ela sem que ele soubesse. Por seu status, ela foi facilmente aceita, e antes que Johnny pudesse se recusar, via-se dentro de uma louca aventura participando de um programa de TV.

O assunto rendera por meses, mesmo após o final da exibição da temporada. Emily e Krista não falavam de outra coisa, e a amiga de Heather, Kelsey, havia inclusive organizado imensas festas no campus para os alunos assistirem ao programa. A torcida não adiantou de praticamente nada, já que a jornalista e o noivo acabaram a competição em quarto lugar. Apesar de tudo, fora divertido. Johnny não se arrependia nem um pouco.

Mas não era só para a noiva que as coisas estavam dando certo. A carreira de Johnny Arthur Dupont também ia muito bem, obrigado. Conhecera há algumas semanas um rapaz de nome Matt Kent, amigo da patroa de Emily na escolinha, e os dois vinham conversando sobre uma parceria. Sobre abrir um escritório de advocacia em conjunto. Um negócio, um investimento. Johnny estava bem otimista quanto a isso. Dupont-Kent. Soava bem.

— Feito. As rosas azuis foram canceladas. — A jornalista disse, com um sorriso no rosto.

Johnny levantou-se e seguiu até perto da noiva. Nunca a amou tanto. Abraçou-a por trás e desejou que aquele momento durasse o resto da sua vida.


x-x-x-x-x


Mesmo meses depois do ocorrido, Brody estava convencido de que a versão que ele formulara acerca da morte de sua mãe, erra a correta. Era algo que ele facilmente a via fazendo. Pam jamais se suicidaria sem motivos. Jamais. Era uma mulher forte demais para isso. Para o rapaz existia apenas uma única explicação: ela morrera tentando assassinar Marsellus.

Ou pior: ele a assassinara.

Qualquer que fossem os motivos, era certo que as duas mortes estavam relacionadas. Os corpos de Pam e Marsellus foram encontrados juntos, e a perícia logo encontrou diversas relações entre eles. O rapaz desejava com todas as forças que pudesse ter visto o que se desenrolou naquele fatídico dia em que estava no hospital se recuperando, mas isso jamais aconteceria. Pam estava morta, o filho não sabia o motivo, e a sua vida jamais seria a mesma.

Durante meses Brody achou que a sua vida estava acabada.

Ele sempre fora o “garoto da mamãe”. Jamais tivera independência. Não porque Pam não permitisse, mas porque ele não sentia necessidade. Brody não sabia pagar contas. Brody não sabia cozinhar. Por Deus, ele não sabia nem em qual gaveta ficavam as facas da cozinha! Pam era o seu universo, era o seu tudo. Sem ela o rapaz estava completa e irreversivelmente perdido.

Onde eu guardo as minhas gravatas? Onde estão os band-aids? Onde eu compro a comida da tartaruga? Quais contas já foram pagas? Quais faltam pagar? Quanto nós recebemos da pensão do papai? O que eu faço da minha vida?

Sem Pam aquelas perguntas não tinham respostas. Jamais teriam.

Brody estava completamente sozinho no mundo.

A família da mãe não existia. Ela crescera apenas com os avós, e estes já estavam mortos há muitos anos. Da parte do pai havia muitos tios e primos e primas, mas nenhum com quem Brody pudesse realmente contar. Não naquele nível, pelo menos. Durante os dezoito anos de sua vida, seu mundo fora praticamente ele e a mãe, mais ninguém. Os dois faziam absolutamente tudo juntos, conheciam todos os segredos um do outro. Ela era a sua melhor amiga, a sua confidente, o seu mundo. Para quem via de fora parecia um afeto exagero, que às vezes sufocava, mas Brody gostava que fosse assim. Temia o dia que a mãe morresse (gostaria inclusive de morrer antes dela), e tinha pena das crianças que não tinham mãe.

E então, da noite para o dia, ele era uma dessas crianças. Uma criança de dezoito anos.

Chorou por uma infinidade de dias, o suficiente para que todas as pessoas fossem, uma a uma, se afastando dele. Quer dizer, quase todas.

Ela continuava do seu lado.

Melissa.

A garota acompanhara cada uma das cinco fases do luto ao lado do rapaz.

Melissa não permitira o seu isolamento. Melissa abrandara a sua raiva. Melissa o acalmara na barganha. Melissa o levantara na depressão. E, por fim, Melissa estava lá quando Brody finalmente aceitou que Pam havia ido e jamais iria voltar.

Começava então uma fase de reconstrução. Brody precisava aprender a andar com as próprias pernas, a ser dono de seu nariz. Aprender em dias o que deveria ter aprendido durante os seus dezoito anos de vida.

Começou com a parte financeira. Ele não tinha ideia de como administrar o dinheiro e as contas, e Melissa o ajudou com isso. Ela trouxera um amigo advogado, Matt, para que ele pudesse ajudar Brody com todo o processo. O rapaz descobrira que a pensão do pai falecido era bastante gorda, o suficiente para que ele se mantivesse bem. O casarão em que morava com a mãe também valia muito, e o rapaz decidiu não mexer em nada disso. Ele precisava fazer algo de sua vida, senão iria enlouquecer.

Decidiu que a casa precisava ser alugada. Ele, por sua vez, precisava se mudar, ir para a faculdade. Mas qual? E onde? Iria passar no teste de admissão? Provavelmente não. A sua dislexia o impediria. Jamais seria alguém normal. Não tinha mais a mãe. Era disléxico e órfão. Era tudo tão difícil...

— Não, não é. — Melissa lera seus pensamentos, um dia.

Ela então o apresentara à outra de suas amigas. Uma loira simpática, dessa vez, chamada Lily. Ela lidava com crianças especiais, e a maioria delas com problemas de aprendizagem. Recomendou uma colega de trabalho especializada em casos de dislexia em jovens adultos, e o rapaz rapidamente começou um intenso período de redenção. Visitava a doutora Faith Wolper dia sim, dia não. Iria obter avanços em poucos meses, tinha certeza. Enquanto isso, porém, Melissa precisava prosseguir com a sua vida.

Os dois conversavam absolutamente todos os dias por Skype, mas ela não podia estar com ele. Brody morava em uma cidade, e Melissa estudava em outra há quilômetros de distância.

Os meses passaram, e o rapaz começou a perceber melhoras em sua aprendizagem, assim como todos previam. Decidiu então que precisava arriscar. Precisava tentar entrar em alguma universidade. Sabia que jamais conseguiria Harvard, Yale ou Columbia. Até tinha condições para pagá-las, mas não passaria nos testes de admissão. Foi então, em uma ensolarada tarde de verão, que a ideia mais maravilhosa do mundo cruzou a sua mente.


x-x-x-x-x


Quem acordou Melissa foi Kelsey.

— Você está atrasada. — A morena disse, empurrando as cobertas da cama da amiga.

— Atrasada pra quê? — Melissa resmungou, ainda sonolenta. — Hoje é domingo, sua vaca, me deixa dormir.

Kelsey riu. Então puxou os pés da loira com rapidez, e Melissa caiu no chão com um baque. A morena riu largamente.

— Sua vadia, você me machucou! — Melissa berrou, e jogou um travesseiro na amiga.

— É sério, Mel, você precisa ir pro banho. Você se esqueceu que prometeu ir comigo assistir uma apresentação de dança hoje?

— Apresentação de dança? De quem? — Melissa perguntou, esfregando os olhos e bocejando.

— Uns caras do time de futebol. Na verdade não é bem uma apresentação, é que eles estão ensaiando pra um flashmob de Harlem Shake e querem que a gente participe também. Não vai me dizer que você se esqueceu?

Melissa arregalou os olhos, tentando perceber se Kelsey estava blefando. Não parecia. Mas a loira realmente não se lembrava de ter combinado isso com a amiga, e ela dificilmente esquecia as coisas.

À contragosto viu-se seguindo até o auditório atrás da biblioteca numa manhã de domingo pra ver uns atletas imbecis dançarem de cueca e peruca.

Entrou no auditório e se sentou no palco. Não havia ninguém ali, o lugar estava vazio.

— Kelsey, qual a brincadeira?

Foi então que a morena assoviou, e os cinco rapazes saíram de trás da cortina.

Melissa conhecia todos eles. Angel era um, inclusive. Três eram colegas do curso de teatro, e o último...

Era Brody.

A música começou a tocar no mesmo momento.


Give you this, give you that

Blow a kiss, take it back

If I look inside your brain

I would find lots of things

Clothes, shoes, diamond rings

Stuff that's driving me insane


[...]


You've got everything you need

But you want accessories

Got to hold it in your hand

If I changed the world for you

I bet you wouldn't have a clue

Don't you know that I can't stand

When girls say...


I want, I want, I want, but that's crazy

I want, I want, I want, and that's not me

I want, I want, I want, to be loved by you


[…]

(I Want – One Direction)


Brody e os rapazes realmente dançavam, e Melissa só conseguia rir e sorrir. Eles devem ter ensaiado isso por dias, pensou.

Quando a música terminou, Brody desceu do palco e se aproximou da garota. Ajoelhou-se e perguntou, ainda ofegante e suado:

— Melissa Scott Davies, você aceita namorar comigo?

A garota meneou a cabeça positivamente, completamente vermelha de vergonha. Kelsey, Angel e os outros rapazes deram gritos de comemoração. Brody então pediu silêncio e finalizou:

— E ah! Você sabe onde eu posso pegar a minha carteirinha de estudante?

Era isso. Brody havia se mudado para a famosa universidade onde acontecera o infame Massacre da Babilônia.


x-x-x-x-x


O teste de DNA estava em cima da mesa.

— Eu não sei se eu quero saber isso, Mel. — Brody resmungou. — Quero dizer, o René já é praticamente como um irmão pra mim. Que diferença vai fazer saber se ele é o não o meu irmão Adrian?

Melissa deu com os ombros.

— Eu não sei. Eu te trouxe isso só porque... Eu não sei. Se fosse comigo eu iria querer saber se o meu irmão realmente morreu ou se ele está vivo. Acabar de vez com a dúvida.

Brody remoeu aquele pensamento por vários dias. Várias vezes esteve a ponto de rasgar o envelope e ver o que ele dizia, mas sempre mudava de ideia. Adrian morrera quando ele tinha dois anos, e ele tinha pouca ou nenhuma lembrança do irmão. Só me lembro de que ele tinha os cabelos ruivos. Fantasiara com como seria a vida dele e da mãe com o pequeno Adrian por várias vezes, mas agora que ela não estava ali, recuperar o bebê parecia... Sem sentido. Eles jamais seriam uma família feliz, mesmo se René fosse Adrian. E ele ainda causaria muita dor a todos os envolvidos. O ruivo estava feliz com sua família, e descobrir que a sua mãe biológica esteve viva e ele a conhecera e ela então morreu... Parecia crueldade. Isso supondo que ele realmente fosse Adrian. No fim das contas, poderia ser apenas uma coincidência.

O rapaz suspirou. Contou até três e rasgou o envelope.

O olhar ficou preso à resposta que procurara por toda a sua vida.


x-x-x-x-x


Melissa moveu a rainha duas casas e disse em tom desafiador:

— Xeque.

Bill resmungou. Moveu o rei para o lado, e então ela surpreendeu-o com o bispo.

— Xeque-mate.

O homem levantou as mãos no ar, numa fúria fingida. A garota riu largamente.

— Quatro anos e você ainda não me vence no xadrez. Pff.

William Bludworth deu com os ombros.

— Algumas pessoas nascem com talento para essas coisas, outras não. Temo ser uma dessas pessoas sem talento.

Melissa levantou-se da cadeira e pediu que o amigo fizesse o mesmo. Ela então deu o braço para ele e os dois começaram a caminhar juntos.

— Você tem bastante talento, Bill.

— Qual, por exemplo? — Ele perguntou de maneira gentil.

— Você é bom com as pessoas. — Melissa respondeu prontamente. — Tanto as vivas quanto as mortas.

— Isso é mórbido. — Bludworth comentou.

— Tanto faz. — A garota resmungou.

Os passos se tornaram mais lentos, enquanto os dois amigos observavam o pôr do sol.

— Você acredita em céu e inferno, Bill?

O homenzarrão pensou por alguns segundos. Então disse:

— Não. Não acredito e nem desacredito. Eu acho que é uma daquelas coisas que jamais saberemos. Não é algo que o conhecimento humano possa compreender. Pelo menos não por enquanto. Mas quem sabe no futuro?

— Como as visões? — Ela perguntou, verdadeiramente curiosa com a primeira parte do que ele tinha dito.

— Como as visões.

Mas a garota continuava inquieta. Seu interior, como sempre, era um turbilhão de pensamentos e dúvidas. E William Bludworth, mais do que todos os outros, parecia obter uma boa quantidade de respostas.

— Então Bobby, Skip, Pam e todos os outros... Eles não estão no céu?

Aquela parecia uma pergunta ingênua e boba, mas não havia qualquer tom de deboche na voz de Melissa. Pelo contrário: ela perguntava com uma seriedade espantosa, quase como se acreditasse que ele tinha a resposta.

— Eles podem estar. Ou não. Quero dizer... Se o céu existe eles estão lá com certeza. Se não existe, então eles estão em outro lugar. Um lugar bom, eu tenho certeza. Independente do caso.

Melissa tinha de se satisfazer com aquela resposta. Não estava disposta a descobrir a verdade. Podia custar caro.


Apenas feche seus olhos,

O sol está se pondo.

Você vai ficar bem,

Ninguém pode feri-lo agora.

Venha luz da manhã,

Você e eu vamos estar são e salvos...


O vento soprou forte, e Melissa teve certeza de que todos eles estavam felizes, onde quer que estivessem...


Fim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Premonição 6: Inferno" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.