O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado
A empregada da loja fez aquela cara de quem analisava a roupa para ver se combinava com quem a vestia, mas já com a resposta preparada que não tardou:
- Fica-lhe muito bem.
Maron, de mãos apoiadas nas ancas, girou a cintura para a esquerda, depois para a direita, sem desfitar o espelho. A empregada completou com o sorriso mil vezes ensaiado:
- Parece que foram feitas especialmente para si.
Maron admirou um pouco mais as calças pretas e depois anunciou que iria levá-las. A empregada concordou com a escolha, teceu mais um elogio pré-fabricado, sorria por ter conseguido subir um pouco mais a sua comissão naquele mês. Maron entrou na cabina e descerrou as cortinas prateadas para se despir.
O melhor remédio para um coração partido era ir às compras e gastar uma quantia indecente de dinheiro. Dissera à mãe que iria até à rua das lojas da cidade porque queria renovar o guarda-roupa. Não lhe estava a pedir autorização e esperara o sermão condizente, que haveria de começar e terminar mencionando que ela só tinha dezasseis anos. No entanto, número 18 entregara-lhe o cartão de crédito dizendo:
- Não tem limite.
Recebera incrédula o cartão de crédito. Número 18 acrescentara:
- Não te demores demasiado. Já sabes que o teu pai fica preocupado.
Guardara o cartão de crédito na mala.
- Isso vai passar.
Olhara para o rosto sereno da mãe.
- Essa dor não dura para sempre.
- Não me dói nada – dissera na defensiva.
Mas a mãe não respondera.
Maron pagou as calças pretas, agarrou no saco de papel reciclado com o logotipo da loja e saiu para a movimentada ruas das lojas. Já contava com uma impressionante coleção de sacos na mão esquerda e estava disposta a colecionar mais. Parou diante de uma montra admirando os vestidos. Gostou principalmente das cores quentes da nova coleção, dos boleros a condizer, dos cintos e dos sapatos. Reparou noutro canto da montra, nas blusas e nos casados de malha, que também eram muito bonitos e aconchegantes.
- Maron?
Ouviu o seu nome e estremeceu, porque ninguém a tratava por aquele nome ali, a não ser que a conhecessem. Mas ela não tinha reconhecido a voz e voltou-se rapidamente.
- És tu, não és?
Olhou para o homem que a interpelava. Cabelo preto comprido e liso, olhos claros rasgados, duas argolas douradas nas orelhas. Em redor do pescoço, tinha um lenço vermelho. A roupa que usava chamou-lhe a atenção, tudo a combinar num estilo muito irreverente.
Reconheceu-o de repente, ligando a imagem verdadeira da Dimensão Z àquela imagem distorcida conferida pela Dimensão Real e exclamou:
- Número 17?!
Ele sorriu.
- Ah, lembraste-te de mim.
Quando ela ia sorrir também, como se um sorriso tivesse o poder de unir a distância que havia entre eles, apesar de serem tio e sobrinha, ele ficou sério, agarrou-lhe num braço e perguntou-lhe num sussurro junto ao ouvido:
- Ouve, Maron… O que raios se passa aqui? Que sítio é este?
A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi responder que estavam na rua das lojas da cidade, mas depois percebeu a profundidade da pergunta. Pensou em pedir-lhe que a largasse, mas se respondesse talvez surtisse o mesmo efeito e o afastasse. Não gostava daquela proximidade com um completo desconhecido, apesar de serem tio e sobrinha.
- Estamos noutra dimensão, chamada Dimensão Real. Fomos enviados para cá por um feiticeiro louco chamado Zephir, que quer conquistar o Universo. Com um feitiço, todos aqueles que estão ou estiveram ligados a Son Goku, viajaram da Dimensão Z para Dimensão Real.
Como esperado, número 17 soltou-lhe o braço, deixando a pele dormente onde os dedos apertaram. O seu tio era forte, muito mais que a mãe, pensou com um laivo de curiosidade, a alma de lutadora a espicaçar-se com um possível desafio.
- Goku… – murmurou número 17.
- Estás aqui durante este tempo todo e ainda não sabias?
Ele inspirou uma grande porção de ar pelo nariz, enfiando as mãos nos bolsos do casacão.
- Eu não me dou propriamente com os amiguinhos do teu pai. Como querias que soubesse?
A secura da resposta abalou-a. Apertou as alças dos sacos de papel, apetecendo-lhe apertar o pescoço dele, em vez das alças dos sacos de papel. Mas, de seguida, número 17 mostrou-lhe um sorriso enigmático e piscou-lhe o olho, como se lhe estivesse a pedir desculpa por ter sido tão seco. Maron corou.
- No entanto, não deixa de ser um lugar agradável. Diferente.
Ela pensou em contar-lhe o que não poderiam fazer na Dimensão Real, como interagir, transformar o feiticeiro num deus, ficar naquela dimensão para sempre ao fim de doze meses, perder os poderes, mas desistiu da ideia. As regras só atrapalhavam e ele aparentava ser daqueles que detestava cumprir regras.
- Presumo que seja uma estadia temporária.
Ele inclinou-se para dizer aquilo, aproximando-se do rosto dela. Maron respondeu, recuando um passo:
- Hai.
- Hum… Poucas palavras. Como a tua mãe. Estou a aborrecer-te, miúda?
- Não.
- Como é que regressamos à nossa dimensão?
- Eh… Está a ser construída uma máquina.
- Quando a máquina estiver acabada e pronta para a viagem, conto contigo para que me avises. Quero regressar à minha casa, apesar de este lugar ser agradável. Ouviste, miúda?
- Não tenho nenhum problema de audição. E não gosto que me trates por miúda. Tenho nome e tu sabes qual é.
Número 17 riu-se.
- Igualzinha à mãe.
Tornou a inclinar-se, perscrutando-lhe o rosto ao perguntar:
- Sabes combater?
Um arrepio fê-la estremecer. Ajeitou os sacos de papel na mão.
- Porque é que queres saber?
- Sabes combater, ou não?
- Sei.
- Tens treinado? – Reparou no que ela segurava e completou com algum desdém: – Ou preferes andar nas compras, a gastar o dinheiro dos paizinhos?
Ela indignou-se com aquela observação. Tanto parecia aproximar-se dela, seduzindo-a com os seus modos insinuantes e a sua voz maviosa, como parecia escorraçá-la com ditos cortantes e ofensivos. Quem é que desejava um tio instável e louco daqueles?
Rangeu os dentes.
Ele riu-se outra vez.
- És mesmo igualzinha à tua mãe!
- Não me tenho treinado – respondeu numa rajada, para que ele parasse de rir. – Não me apetece.
Número 17 ficou sério.
- Queres vir treinar comigo?
Nova pergunta desconcertante. Ela olhou-o fixamente.
- Se pensas que te vais divertir à minha custa, estás enganado. Sei lutar e não me vais conseguir derrotar facilmente.
- Nem eu te quero derrotar. Só quero treinar contigo. Ver se realmente…
Agarrou-lhe no queixo e completou:
- És igualzinha à tua mãe.
Pediu-lhe um pedaço de papel e uma esferográfica. Maron entregou-lhe um dos talões das compras da tarde, pediu a uma mulher que passava uma esferográfica e número 17 anotou o nome do sítio onde morava, um lugarejo situado na serra, servindo-se de uma montra como apoio para escrever. Devolveu-lhe o talão das compras escrito, ela devolveu a esferográfica à mulher.
- Então, está combinado? – Perguntou número 17.
Maron assentiu, sem demonstrar o receio que estava a sentir por estar a aceitar aquele convite:
- Está combinado.
Número 17 piscou-lhe o olho, despediu-se com um curto aceno e desceu a rua das lojas, de mãos enfiadas nos bolsos do casacão, num andar que transpirava segurança e presunção, uma pitada de perigo e doses incomensuráveis de mistério. O tio que todas as sobrinhas gostariam de ter, pensou.
Olhou para o talão das compras. A morada estava escrita numa letra irregular. Notava-se que número 17 detestava escrever ou escrevera tão pouco ao longo da vida que nunca praticara a caligrafia.
Mordeu o lábio inferior. Aquilo era uma loucura, mas não iria recusar o convite de número 17 e iria lutar com ele, na serra onde morava, a mesma serra que ela via desde a janela do seu quarto pejada de casas, onde se acendia um tapete de luzinhas quando anoitecia. Talvez uma dessas luzinhas fosse a casa de número 17.
Guardou o talão das compras no bolso das calças e deu-se por satisfeita.
O dia de compras tinha sido proveitoso e o coração partido estava parcialmente remendado.
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Próximo capítulo:
Afastamento.