O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado


Capítulo 29
VI.1 As canções do fim.


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado na primeira pessoa.



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O bar de Vilamoura onde se cantava karaoke estava cheio e muito animado.

A Catarina agarrou no microfone e preparou-se para cantar “True Colors” da Cindy Lauper. Todos lhe disseram que era uma canção muito difícil, que tinha muitos agudos, mas a Catarina já tinha bebido dois gin tónicos e sentia-se pronta para conquistar os palcos do mundo. Saltou do seu lugar e postou-se diante da televisão, à espera que aquilo arrancasse, a música e depois a letra, palavras brancas que se iam colorindo à medida que era necessário cantar.

- Será que ela vai conseguir ler? – Perguntou o Mário a fingir-se preocupado.

- Eu ouvi essa! – Barafustou a Catarina, ajeitando o fio do microfone para não atrapalhar.

- Deixa-a cantar – disse a Luísa agarrando no copo de whisky-cola.

A música começou. Eu acabei o resto do meu vodka. O André disse-me ao ouvido:

- Queres outro, Ana?

Olhei para ele.

- Outro? Olha que já bebi muito esta noite.

- Não estás a conduzir…

- Mas devo manter a minha sanidade mental.

- Para que queres isso?

- Ora… Não quero sair daqui de gatas.

- Estás com medo do quê? Solta-te… Vou buscar outro copo.

Não lhe consegui dizer que não.

A voz da Catarina encheu o bar. A nossa mesa calou-se para ouvi-la cantar. As outras mesas, nem por isso.

O espetáculo começou. Com as duas mãos coladas ao microfone, a Catarina esforçava-se para acompanhar a letra com a melodia, sem desafinar muito. Mas como estava nervosa por estar sob os holofotes, acabava a cantar três versos adiantados. Calava-se quando se apercebia do facto trauteava para não perder totalmente o fio à meada, arrancava no tom errado e prosseguia a cantoria, a completar o desempenho com uma mão que subia e descia, ao ritmo da canção.

- “And I see your true… colors… shinning through”.

A Catarina elevava a voz como uma profissional.

- “That’s why I love you, so don’t be afraid”.

Naquela sexta-feira de meados de setembro alguns colegas da turma da universidade tinham combinado uma saída noturna, para recordar os bons velhos tempos e pormos a conversa em dia. A Luísa tinha-me telefonado na tarde e eu não dissera que não, até porque, mesmo que tivesse dúvidas, a Catarina ligara-me cinco minutos depois da Luísa e haveria de mas desfazer.

Eu adorava aqueles jantares, aquelas saídas, rever as antigas amizades universitárias, especialmente se no grupo estivesse incluído o André. O que era raro não acontecer, porque o André nunca falhara esses encontros. Sentávamo-nos ao lado um do outro, conversávamos no restaurante, acabava sempre por ir no carro com ele, bebíamos juntos na mesa do bar que fechava a noite, o assunto nunca se esgotava, falávamos de tudo.

O André tinha sido a minha grande paixão na universidade, mas no fim do curso separámo-nos, cada um começou a trabalhar e à força de encontros esporádicos nalgumas sextas-feiras durante o ano, a paixão foi esmorecendo, reacendendo-se timidamente quando nos voltávamos a ver. Nunca tinha acontecido nada de substancial. Eu gostara dele, não sabia muito bem se ele gostara de mim. Apesar de a Catarina afirmar que o André adorava-me, só que tinha medo de dar o último passo e aquilo acabava sempre numa morna conversa entre dois grandes amigos, com algumas brincadeiras pelo meio e algum álcool.

Se o André perdesse o medo, porém, se cruzasse a fronteira e se avançasse no meu território, eu não fugiria. Havia qualquer coisa que retinia no meu interior sempre que o reencontrava à sexta-feira à noite, para mais um jantar de turma, sempre que ele me cumprimentava com dois beijos na face, demasiado junto à minha boca. Porque o André existia muito antes do bonitinho do Hugo. E muito, muito antes…

Engoli em seco, desesperada de repente por uma gota de vodka que me devolvesse ao mundo azul da universidade.

Muito antes do Tiago.

Os últimos acordes. A Catarina baixou o microfone, deu dois saltinhos ao som dos derradeiros batuques.

Irrompemos em palmas, em assobios, em rasgados elogios. O André pousou um novo copo de vodka na nossa mesa e sentou-se ao meu lado. A Catarina agradeceu com uma pronunciada vénia. Devolveu o microfone à animadora do karaoke e atirou-se para o sofá que ocupávamos. O Mário entregou-lhe o terceiro gin tónico. Começaram os comentários e as piadas, a Catarina defendendo a sua atuação e incitando o próximo corajoso para agarrar no microfone e ir cantar também.

- Oh, Ana! Faltas tu, pá! – Exclamou ela, limpando o suor da testa com os dedos da mão.

Afastei o copo de vodka dos lábios.

- Eu já vou.

Apanhei um olhar caloroso do André.

- Vai lá cantar uma dos anos sessenta, que tu gostas tanto.

Realmente estava a ficar quente ali dentro. Também já me sentia a suar por todos os lados.

- Uma dos Beatles – insistiu a Catarina.

- Eu disse que já vou.

- Não vês que ela está entretida? – Observou o Mário, piscando o olho ao André.

A Luísa agarrou na tabela plastificada das canções. A Catarina achou-a com mais disposição para ir cantar do que eu e concedeu-lhe todas as atenção, escolhendo também a melhor música para animar o pessoal, que estava tudo muito murcho. Não notava que era ela quem estava mais acelerada, por causa do gin tónico. E eu por causa do meu vodka.

Saboreei um pequeno gole da bebida, sentindo-a queimar o palato, o odor quente enchendo-me as narinas e mergulhei de cabeça no mundo azul da universidade que procurava emular naquele local de diversão em Vilamoura.

O André colou o seu copo de imperial ao meu copo.

- Vamos fazer um brinde.

- Brindamos a quê?

- Aos encontros felizes.

Sorri.

- Hum… Estamos inspirados hoje?

- Desde que mantenhas a tua sanidade mental.

Lancei uma risada, que me soou um pouco ébria, mas o vodka passava rapidamente do estômago para as veias e daí para o coração, que a pizza que tínhamos jantado já não devia fazer qualquer lastro.

O André olhava para mim e eu comecei a contar mentalmente os segundos. Oito, nove, dez, onze, doze. E eu também olhava para ele, sorrindo, querendo encurtar, finalmente, aquela distância parva que sempre tinha existido. Quinze, dezasseis, dezassete, dezoito. Começava a ficar tonta de tanto fixar o olhar dele, mas não seria eu que iria quebrar aquele fio invisível que nos estava a ligar inexoravelmente. Vinte, vinte e um, vinte e dois e já eram segundos a mais.

O Mário lançou mais uma das suas piadas, escutei alguém a rir. O André decidiu que estava satisfeito, bebeu outro gole de imperial, pousou o copo na mesa e finalmente apartou o olhar. Tive a impressão que também ele estivera a contar os segundos. Mais do que dez e era crítico, química certa, como dizia a minha amiga Patrícia.

A animadora do karaoke anunciou mais um participante e passou o microfone a um homem. Começou a tocar “Wonderful Tonight” do Eric Clapton.

A minha paixão antiga hoje não me parecia assim tão impossível. Recostei-me no sofá, embalando-me na tontura do vodka, recordando os pequenos nadas daquela noite, tentando ler os sinais necessários para não esbarrar quando chegasse o momento de abrir o território e ir mais longe do que alguma vez tinha ido com o André.

- “… you look wonderful tonight…”.

Claro que não era a voz do Eric Clapton, mas o homem cantava bem, com uma voz grossa e envolvente. Notava-se que conhecia bem a canção e que estava habituado a cantá-la, porque raramente desafinava.

- Não te vais deixar dormir aqui, pois não?

Abri os olhos de repente. O André sorria, debruçado sobre mim.

- Eh… Não, claro que não.

- Trouxe-te o vodka para que fiques divertida. Não era para adormeceres.

- Eu não estava a dormir – protestei, endireitando as costas.

- “I feel wonderful because I see the love light in your eyes”.

Por um instante, parecia que iria beijar-me.

Entrei em pânico. Estava demasiada gente à volta! E eu não suportaria as piadas do Mário, haveria de me derreter de vergonha.

- “… you just don’t realize how much I love you…”

O anúncio da Luísa interrompeu a cena:

- Já sei o que vou cantar! Vai ser Tina Turner.

O André voltou ao seu lugar, bebeu mais um gole de imperial. O Mário perguntou-lhe qualquer coisa.

- Qual é a canção? – Perguntou a Catarina.

- “What’s Love Got To Do With It”.

- Boa escolha. Essa é espetacular!

A Luísa pousou a tabela plastificada das canções na mesa e agarrou no whisky-cola. A Catarina propôs um brinde. Eu sei que levantei o copo, fizemos o brinde e bebi uma grande porção de vodka que me pôs literalmente a arder.

Teria de me ir refrescar, acalmar um pouco. Fui até à casa de banho lavar a cara. Quando saí tropecei num rapaz, pedi desculpa mas reconheci-o e a alegria que senti por encontrá-lo no mesmo bar que eu frequentava, porque ainda não o tinha descoberto no meio daquele ambiente cheio de fumo, deixou-me mais quente que o vodka que tinha a circular no sangue.

Sorri para o Tiago e cumprimentei-o entusiasmada:

- Komba-wa! Genki desu?

O rosto dele contorceu-se de uma forma estranha, um remoinho a engolir-lhe as feições, a partir da boca e depois explodiu numa gargalhada alarve.

Só vi cabeças a girarem na nossa direção.

Quedei-me varada de espanto com aquela reação. Fora igual a uma bofetada que me tivesse rebentado a boca. 

O Tiago ficou sério de repente e disse com brusquidão:

- Estou ocupado, nena. O que é que queres?

Uma rapariga alta e ruiva enroscou-se no braço esquerdo do Tiago, materializando-se do nada, uma cobra envolvendo-o lentamente como um pequeno demónio tentador. Olhou para mim com sobranceria. Tinha a boca entreaberta e vi a língua dela passar pelos dentes, medindo-me e avaliando-me como qualquer coisa inferior a um inseto.

Ele tinha-me feito uma pergunta e eu devia responder. Achava eu…

Gaguejei:

- Não quero nada…

Resposta errada. Apercebi-me disso tarde demais.

O Tiago mostrou um sorriso enviesado, apertando a cobra de encontro a si, que continuava de boca aberta e com a língua cor-de-rosa a passar pelos dentes.

- Queres sim. Sempre que nos encontramos tens esse…

- Acho melhor não continuares – murmurei.

- Fogo dentro de ti.

Inclinou-se, como se me fosse beijar, arrastando a cobra consigo, que se aproximou demasiado como se me fosse beijar também, envolvendo-nos numa espécie de casulo. Encolhi-me.

- E hoje estamos a experimentar o lado selvagem, nena? Tens um hálito de quem andou nos copos… O que é que tens estado a beber?

- Não te interessa!

- Queres vir comigo? Hum? Fazemos uma festa a três. Aqui a Vânia não se importa… Importavas-te?

A cobra negou com a cabeça. Mas por que é que não fechava a boca e insistia em mostrar-me a língua cor-de-rosa a passar pelos dentes?

Um braço pesado carregou-se nos meus ombros. Senti-me aprisionada. Olhei para o lado e descobri o João.

- Espanhol, engataste mais esta?

O Tiago disse-me ao ouvido:

- Ou então, uma festa a quatro. Tu ficas com ele… Ou queres ficar com a Vânia? Seria o máximo, nena.

Empurrei o João.

- Eh, lá… Não gostas?

- Então, não aceitas o convite? O lado selvagem, nena. E estás no bom caminho. Uns bons copitos, depois uma aventura na cama. Que dizes?

- Estou acompanhada, Tiago.

O João disse:

- Eu não conheço esta gaja, espanhol? Não é aquela coisinha do outro dia?

- Porra, estás sempre a vê-la e a dizer a mesma coisa.

- Já a comeste?

O Tiago riu-se para mim.

- Tenho de a comer, sim… Para ver se acabo com esse fogo.

Olhei-o perplexa e, sobretudo, desiludida. À beira das lágrimas, não fui capaz de lhe dizer o que estava a sentir naquele momento: um enorme e azedo desprezo. Uma terrível e infindável desilusão. Pela enésima vez, ele despedaçava a imagem imaculada que eu tinha dele.

Disse com tristeza:

- Desculpa se te incomodei… Adeus, Tiago.

Acabou-se. Deixei-o para sempre.

Nunca mais iria insistir… Mesmo que me doesse, que me despedaçasse.

Odiava o Tiago. E o meu coração morreu com esse ódio.

Porque havia muito mais no Tiago… Sabia-o.

A animadora do karaoke anunciou o próximo artista. A Luísa deixou o seu whisky-cola na mesa e recebeu o microfone. A música começava, ela gingou as ancas, num tímido passo de dança. A Catarina bateu palmas, enfiou dois dedos na boca e assobiou.

Sentei-me. O André perguntou:

- Quem era?

Corei. Não queria que nenhum dos meus amigos tivesse presenciado aquele encontro lamentável, muito menos o André.

- Ninguém. – Forcei um sorriso. – Um amigo da Patrícia. Uma pessoa sem importância.

- Hum…

Agradeci-lhe interiormente por não insistir nas perguntas. 

A Luísa cantava bem, no ritmo certo. Ela sempre fora amiga da perfeição, em qualquer coisa que fizesse. Quando passava a computador os manuscritos dos trabalhos de grupo, era bem capaz de imprimir dez vezes a mesma página até acertar com a formatação do texto que mais lhe agradava.

O mundo azul da universidade regressava para me envolver e acalmar.

Olhei para o André. Estava farta daquela indecisão. Agarrei na cara dele, puxei-o e beijei-o na boca. Ele olhou para mim surpreendido.

A Luísa cantava:

- “What’s love got to do… got to do with it?”.

Soltei-o, recuei no sofá, atrapalhada. Provavelmente, fora demasiado rápida, quase faminta. Não queria que também ele me acusasse de ter aquele fogo dentro de mim. Antes que eu me afastasse demasiado, o André aproximou-se e arrancou-me um segundo beijo. O meu coração deu um salto.

- “Who needs a heart, when a heart can be broken?”.

Entreolhámo-nos, ainda na dúvida. Depois aconteceu um beijo mais caloroso, com muita língua e muita saliva. Ele abraçou-me, eu abracei-o, acabámos finalmente com a distância do sofá e de todos aqueles anos em que alimentámos a paixão em lume brando. Ninguém comentou, nem mesmo o desbocado do Mário, sempre tão disponível para fazer piadas sobre qualquer situação. A seguir, rimo-nos, nos braços um do outro, os narizes roçando-se.

Nessa noite de sexta-feira, o André e eu começámos a namorar.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
A pisar o risco.



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