O Contemplador De Estrelas escrita por Bia


Capítulo 1
A Senhora do Parque.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/299811/chapter/1

Todas as noites eu visitava aquela praça que ficava mais ou menos no centro da minha pequena cidade. Ali era um bom lugar para se fugir, é bem longe da minha casa e sempre posso vir aqui para pensar e esquecer um pouco dos problemas. Aquela praça quase sempre estava vazia, excerto por alguns caras que iam para lá para jogar papo fora, beber e fumar. Ah, também tinha uma senhora, ela sempre vinha para aquela praça, o que eu sempre achei estranho já que sempre achei que as senhoras escolhiam a manhã ou a tarde para visitar a praça, mas ela era diferente. Vinha todas as noites, observava o céu por horas, às vezes escrevia sentada naquele banco onde ela sempre estava presente a noite, mas na maior parte do tempo encarava o céu, era um olhar  tão triste que deixava qualquer um curioso para saber sua história. Havia boatos sobre ela, boatos ridículos inventados pelos moleques da região.

Parecia que ninguém entendia que ela era só uma senhora que gostava das estrelas só isso, mas parece que as pessoas tinham que inventar algum motivo fantasioso para tudo isso. Em uma noite lá estava ela sentada no banco da praça escrevendo algo que parecia uma carta, fiquei observando-a  em quanto eu estava encostado em uma árvore, fumando. Depois de um tempo, não lembro o quanto, ela levantou-se e foi embora, deixando a carta  em cima do banco. Não sou de bisbilhotar as coisas alheias e nem nada, mas se aquela carta fosse mesmo importante e ela acidentalmente havia esquecido? Era melhor não arriscar. Fui até o banco e peguei a carta, mas quando me virei a senhora já tinha ido embora. Tudo bem, eu esperaria a noite seguinte para entregá-la. Encarei a carta, era errado abri-la sem a permissão do dono, mas naquela carta poderia estar escondida todos os segredos daquela senhora tão misteriosa, eu poderia esperar a noite seguinte e perguntar a ela, mas não, minha curiosidade era bem maior. Abri cuidadosamente a carta, para que quando eu fosse devolvê-la, a senhora não notasse que ela tinha sido aberta e lida por um estranho. A carta era grande e a letra estava bem caprichada e um pouco trêmula, mas era legível. Comecei a ler.

Olá, meu amor.


          Sabe que dia será amanhã? Será noite de Ano Novo, mais uma noite onde você não estará ao meu lado. Mas hoje estou sentada num banco de uma praça tranquila  com uma visão privilegiada do céu coberto de estrelas , sim , eu não perdi essa paixão pelas estrelas meu amor, ainda lembro que era com você que eu dividia essa paixão. O tempo está gélido, mas está mais ainda porque estou sem você, sei que prometi que seguiria minha vida, mas é difícil sem você, mesmo depois de tantos anos. O céu está estrelado como sempre, a Lua Cheia tão bela e solitária no meio de tantas estrelas, mas todas juntas conseguiram iluminar as belas noites deste ano. Eu queria tanto que você estivesse ao meu lado segurando minha mão... Poder te sentir, sentir o calor de seu beijo que tanto amei, o teu abraço tão acolhedor e seu cheiro tão agradável. Sabe você era o único que conseguia fazer esta antiga garota, tão fria e dura como uma pedra de gelo, sentir o calor tão quente quanto o sol pela primeira vez. Sinto-me como se uma parte de mim tivesse faltando, clichê eu sei, mas é isso que eu sinto e isso não vai mudar. Adorávamos as estrelas, éramos eternos contempladores de estrelas. Nunca irei esquecer daquelas noites geladas onde nos cobríamos com um edredom e observávamos aqueles pontinhos luminosos no céu negro que tanto nos atraíam. Você dizia que se observasse bem podia vê-las dançarem, eu achava graça de tudo aquilo que tu dizias, mas você sempre parecia tão feliz meu amor, que eu nem reclamava. 

          Não tinha como dizer qual das constelações era a mais bela, mas sempre gostávamos das três estrelas do Cinturão de Órion, as Três Marias. Três estrelas que sempre estão juntas neste infinito céu. Começamos a dizer que era a nossa constelação quando Lucas estava a caminho, lembra meu querido? Seria nós três: você, eu e nosso pequeno Lucas. Mas então aquela época inesperada chegou. Você sabe da preocupação que eu senti? Fiquei horas no hospital, ajudando-te como podia, amor. Ficava ao teu lado vendo as estrelas contigo até pegar no sono. Os dias foram se passando  e a cada noite você encarava o céu de uma maneira diferente, não era mais com um olhar fascinante e atento, agora tinha mais compaixão, calma e sofrimento. Às vezes você começava a falar baixinho, sabia que não era comigo porque você parecia que só tinha olhos para o céu. Me disseram que você estava perto de ir, que não tinha outra maneira. Você sabe o tanto de lágrimas meus olhos derramaram naquele dia? Eu não conseguia acreditar que meu amor não estaria mais presente. Sonhávamos com nossa família, na hora de dormir contaríamos as histórias das constelações ao nossos filhos, levaríamos  as crianças para acampar ao ar livre e observaríamos as estrelas até pegarmos no sono. Lembro-me que você estava poupando dinheiro para aquele telescópio novo e sempre me falava dele, eu até sentia ciúmes bobos porque você parecia gostar mais daquele telescópio do que a mim, eu sempre te dizia isso, você sempre ria do meu comentário e abraçava-me dizendo que eu sempre seria sua estrela preferida. 

          Planejávamos nosso futuro como qualquer casal bobo e apaixonado, aquilo tudo foi horrível, caí de cara na realidade e agora estava perdida naquele breu doloroso sem você, já que era você minha luz, amor. Era horrível demais ter que jogar aquilo tudo fora, tudo aquilo que chamávamos de nosso. Eu ainda lembro do seu último dia aqui na terra, era de noite, e como sempre,  você observava o céu da pequena janela do hospital, eu estava ao teu lado meio sonolenta segurando tua mão quando do nada você chamou meu nome. Fiquei realmente surpresa, os médicos disseram que por conta da sua doença você provavelmente não se lembraria mais de mim, muito menos do meu nome. Você olhava pra mim com um sorriso fraco no rosto, como estava pálida sua face que antes era tão cheia de vida! O brilho de seus olhos amendoados havia voltado, me encarava como se eu fosse sua filha que havia acabado de nascer. Eu estava tão surpresa que nem percebi você repetindo meu nome de novo. Lembro tão bem daquele dia que até do nosso último diálogo eu lembro de cor:


"Lia!"


Engoli em seco naquela hora, mas consegui falar.


" O que foi, amor?"


" Olhe para o céu, Lia!"


Eu olhei e como sempre, estava estrelado com uma lua solitária e brilhosa ao fundo.


" Eu estou vendo, meu amor." Disse eu.


" Viu as estrelas? Elas estão dançando, Lia! Melhor que isso, elas estão falando! Comigo! Eu não sabia que elas falavam!"


Qualquer um riria se alguém dissesse isso, mas tudo o que pude fazer foi começar a chorar, nem falar estava conseguindo mais. Então senti ele apertando minha mão.


" Lia, elas estão me chamando, querem que eu vá com elas."


Eu não falava, só soluçava. Aquilo estava mesmo acontecendo?


" Lia, eu preciso ir, já faz um tempo que estou falando com elas e finalmente elas me chamaram para eu ir."


" Não, por favor!"


Eu realmente comecei a soluçar feito uma louca, consegui implorar para que você ficasse, usei minhas forças para dizer aquilo. Isso me destruía por dentro. Demais. Eu não tinha coragem de encarar-te, mas você sim. Você apertou tanto minha mão que a sua própria começou a tremer, então levou minha mão até a boca e beijou-a. Não tive como não encará-lo nessa hora, você me olhava com um  brilho nos olhos que eu nunca tinha visto, era estranhamente comparado ao das estrelas.


"Adeus, minha doce Lia"


Você parou de apertar a minha mão, sua visão ficou vidrada e eu só chorava. Mas consegui tirar minha mão de baixo da sua e, trêmula, fechei teus olhos com a palma de minha mão. Era mesmo muito doloroso saber que eu nunca mais veria aqueles olhos abertos novamente. Tudo começou a se desandar desde aquele dia, são lembranças tão dolorosas que você nem imagina. Me entreguei as drogas e as bebidas, não via mais razão em viver. Eu tinha mudado muito querido, nem parecia mais a sua Lia de sempre. O nascimento de nosso filho foi difícil e apenas com seus três meses ele foi tirado de mim. Eu realmente não estava em condições de cuidar dele, nem de mim mesma eu estava dando conta, ele foi tirado de mim tão pequeno... eu nem sei onde ele deve estar agora. 

          Esqueci das estrelas por um bom tempo, não sei como consegui viver até onde eu estou, mas foi dificilmente doloroso. Até que um dia eu estava totalmente acabada, pensando seriamente em desistir quado eu casualmente encarei o céu negro. Automaticamente eu te vi, meu querido. Lembro-me quando ainda éramos jovens e você tinha me dito que a cada estrela nova no céu alguém morria e a cada estrela morta alguém nascia. Então eu me via contemplando uma estrela, não era a mais brilhante, mas seu brilho era lindo do mesmo jeito. Não sei porque, mas neste momento você me veio a cabeça, fazia tanto tempo que não pensava em ti que quando olhei para aquela estrela tudo veio a tona e quando me dei por mim eu estava chorando todas aquelas feridas que eu tentava esconder. Depois daquela noite tão dolorosa eu decidi refazer minha vida, eu renasci, refiz tudo. Larguei todos aquelas males, virei professora de astrologia e quando me aposentei, mudei-me para uma cidade pequena. Se eu finalmente consegui ser feliz com essa nova vida? Infelizmente não posso dizer que sim, tu sabes que odeio mentir paras as pessoas, logo para você, eu não aguentaria. Todos os dias eu penso em ti, como seria nossa vida e onde estaria nosso pequeno Lucas que com certeza, hoje já deve estar um adulto. Toda noite eu observo você, as outras estrelas e a Lua. Ah, a Lua, ela deve ser a única que sabe realmente como eu me sinto: tão solitária no meio de tantos. Não sei bem porque estou escrevendo isso, já faz uns meses que estou escrevendo essas cartas  para você, mesmo sabendo que tu nunca lerás e isso me deprime um pouco. Pelo menos eu sei que você não está sozinho, espero que estejam cuidando bem de você, já que isso eu não posso fazer mais há anos.


Sinto muito sua falta, minha estrela.


De sua doce Lia.


Terminei de ler a carta com um tremendo nó na garganta. Eu realmente não devia ter lido aquilo, trêmulo, fechei a carta e levei-a para casa. Não dormi pensando naquela senhora, enrrolei o dia todo até que finalmente a noite chegou. Quando cheguei  na praça, ela já estava lá sentada olhando para o céu, como sempre. A praça estava mais vazia do que já era, era noite de Ano Novo então a maioria estaria na praia ou em casa comemorando com parentes ou amigos, mas ela ainda estava lá. Nem sabia o que eu falaria, mas meus pés foram automaticamente em direção a ela.

" Com licença, senhora"

Demorou um pouco para ela notar minha presença e quando notou ficou me encarando ,confusa. Continuei falando.

" É que... ontem você foi embora e esqueceu esta carta."

Estendi o braço com a carta em minha mão e ela encarou-a, ficou pálida e me encarou novamente. Seus olhos azuis profundos pareciam me perfurar por dentro.

" Eu não queria ter aberto, mas é que... você sempre vem aqui e é tão misteriosa... só queria te conhecer melhor... desculpe."

Fiquei tão nervoso que acabei revelando que eu havia lido sua carta, e eu ficava cada vez mais nervoso porque ela não parava de me encarar, então ela esticou o braço e pegou a carta de minha mão, ficou encarado-a e tocando-a como se fosse uma joia rara. Eu já ia indo embora de fininho quando ela de repente me abraçou. Notei que ela soluçava no meu ombro, fiquei realmente confuso, mas antes que eu pudesse pensar em algo ela começou a falar:

" Eu não acredito que seja você... cresceu tanto! As estrelas foram generosas comigo por me guiarem até você!"

"Mas o quê..."

" Eu te encontrei, finalmente! Lucas, senti tanto a sua falta!"

Eu não tinha palavras e ela continuou falando.

"Você é meu filho, tenho certeza! O brilho de seus olhos são iguais ao de seu pai, querido. Eu nunca me engano. Foi o meu pedido, eu havia pedido o que eu peço todos os anos desde que me mudei para cá, e finalmente fui ouvida e agora eu te encontrei. Uma mãe reconhece seu próprio filho de longe! Que saudade Lucas!"

Ela parou de me abraçar para me encarar novamente, tinha lágrimas nos olhos, ela estava mesmo feliz em quanto eu a encarava totalmente perplexo, depois Lia voltou a me abraçar.

Parecia que eu havia sido nocauteado no estômago e meu coração começou apertar-se.

Porque eu não era o filho de Lia.

Meus pais morreram em uma acidente quando eu tinha oito anos e eu sabia que ela não era minha mãe, eu queria ter dito isso a ela, mas como falar isso sem estragar sua felicidade? Aquela senhora havia esperado mais do que podia suportar para ver esse Lucas que ela tanto fala, a saudade era tanta que acabou me confundido com seu próprio filho. Sofreu demais em sua vida e parecia que pela primeira vez depois de tantos anos ela estava realmente feliz. Eu não poderia ser tão cruel a ponto de tirar sua felicidade.

E eu não queria admitir, mas fazia muito tempo que eu também não sentia esse carinho... esse afeto maternal.

Em quanto eu pensava nisso tudo,  o nó na minha garganta só aumentava. Podia se ouvir barulhos de fogos de artifícios ao fundo. O novo ano havia acabado de chegar.

 Notei então que a carta que antes estava nas mãos de Lia soltou-se e começou a ser levada pelo vento, não corri atrás e nem avisei a ela sobre a carta que agora flutuava entre os ventos. Quem sabe, a carta poderia voar até o lugar onde Lucas está agora, ou talvez a carta voasse tão alto até chegar na estrela do amado de Lia. Ué? Pode acontecer, certo? Sinceramente, aquela senhora me ensinou que o amor pode ser eterno; ela nunca esqueceu de seu amado contemplador de estrelas; ensinou a ter paciência; esperou todos esses anos pela volta do filho, mesmo que tenha me confundido com ele; e acima de tudo me ensinou a ser forte, mesmo em momentos difíceis ela conseguiu se estabelecer em sua vida.

Uma lágrima corria pelo meu rosto.

"Lucas, eu te amo meu filho"

 Ouvi ela dizendo isso entre as lágrimas.

 " Feliz Ano Novo... mamãe."


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Contemplador De Estrelas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.