The Lie escrita por Jonathan Bemol


Capítulo 1
One Shot




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Charley nasceu e cresceu num país em que a liberdade, a fraternidade e a vida eram supervalorizados. Nunca tinha sido privado desses seus fundamentais direitos, e vivera feliz no seu país de origem. Pelo menos, até agora. Era um homem não muito rico, mas feliz, de já 40 anos. Trabalhava numa olearia fazendo de tudo um pouco, 5 dias por semana, 8 horas por dia. De lá, tirava dinheiro para sustentar a coisa mais preciosa que tinha na vida: sua mulher e seus dois filhos, um de 8 anos e outro de 6. Família... Com certeza, era o que dava sentido à vida daquele homem.

Um mal tinha surgido sobre a Europa naqueles tempos. Nem Charley nem os franceses achavam que aquilo era muito sério, pensavam que aquilo logo sumiria. Mas estavam enganados. O mal se espalhou mais rápido do que qualquer coisa antes já vista. A Polônia, Bélgica, Iugoslávia, Noruega, Holanda e Grécia já tinham sido derrotadas e infestadas pelo terrível mal em apenas algumas semanas, e agora, a França também tombava após cerca de um mês de resistência. Agora, ele já esperava pelo pior. Provavelmente, seria recrutado pelo exército para lutar pela causa do inimigo.

O que eles fariam agora? Com certeza, nada podia ser feito. Quando soube da derrota do seu querido país, Charley não pensou no futuro da nação, na sua vida, nem nada disso. Só pensou na vida de sua mulher e de seus filhos. Ele tinha ouvido que o grande mal que se alastrava pela Europa odiava malignamente os judeus, negros, homossexuais, e muitas outras etnias. E sim, a família de Charley era judia.

As imagens dos soldados entrando em sua residência, quebrando tudo atrás de bens e algemando sua mulher não saia da cabeça de Charley. Depois que os soldados pegaram livros, comida e outras coisas, ele disse suplicante ao homem que ele podia levar o que quiser, portanto que não fizesse mal algum a seus filhos. Um dos soldados nazistas levou seu filho menor, de 6 anos para fora da casa. Charley implorou de joelhos que daria qualquer coisa em troca de paz. “Qualquer coisa?” foi o que provavelmente o soldado perguntou, já que Charley não falava alemão. Ele pegou todo o seu dinheiro que estava guardado por de baixo do colchão e entregou ao homem. O nazista olhou para o dinheiro e riu. Mandou que os outros soldados levassem Charley e sua família para fora, e assim fizeram.

Agora, ele estava dentro da caçamba de um caminhão. Sua mulher e filhos tinham sido colocados em outro carro, e Charley só queria que eles ficassem bem. Podia sofrer, trabalhar, morrer, mas queria que sua família ficasse em paz.

No caminhão junto com ele, haviam outros homens. Uns vinte no mínimo. A caçamba já estava apertada com tanta gente ali dentro, e cheirava mal. Ele não conseguia parar de pensar para onde tinha ido sua família. Será que iriam presos? Provavelmente. Tinha chorado a viagem toda naquele caminhão, que já havia viajado um bom tempo. Parava às vezes para que os nazistas colocassem mais homens na caçamba. Charley conversou com alguns. Um contou que sua família também havia sido presa e jogada em outro caminhão que não aquele. Outro rapaz, adolescente ainda, contou que o grupo nazista que o raptou, queimou a antiga casa dele no meio de sua fazenda. Ouvindo isto, Charley pensava e refletia no que aconteceria com sua casa... Como diabos alguém tinha o poder de “raptar” as pessoas assim, e tirar delas todos os seus direitos?

Não... Provavelmente, aquelas pessoas estavam apenas sendo recrutadas para o exército. Mas e sua família?

Pra onde estavam indo? Depois de algumas horas, o caminhão parou e os soldados mandaram que todos os homens descessem. Charley saiu da caçamba. Em uma fila indiana, supervisionada por nazistas armados, ele e os outros se viram em uma grande estação de trem, totalmente fechada. Outros carros e caminhões descarregavam pessoas, que eram direcionadas até o trem. O esquisito, era que o trem não era para o transporte de pessoas, e sim para transporte de comida, alimentos, suprimentos, etc. As pessoas tinham de entrar dentro dos vagões apertados e sem nenhum assento. A viagem seria tão longa assim, para usarem um trem?

Haviam militares por toda parte, supervisionando tudo o que podiam. Charley se aproximou de um velho que estava por ali também, e não era militar. Perguntou a ele pra onde o trem levava. O velho olhou para ele com uma cara debochada e disse: “você não sabe? Para o nosso fim!”. “Nosso fim?” Charley perguntou, mas como o velho falava com um sotaque estranho, ele não entendeu absolutamente nada do que ele respondeu em seguida.

Os nazistas mandaram todos entrarem num dos vagões do trem, o último. Charley ficou indignado, pois, provavelmente não cabia mais ninguém naquilo. O vagão estava absurdamente lotado, sem sombra de dúvida, morreria sufocado se entrasse. Mas os guardas conseguiram um jeito de colocar todos dentro do vagão. Fecharam a porta, tudo ficou escuro, e a viajem começou.

Charley já tinha andado muito de trem, e aquele estava andando muito mais rápido do que a velocidade comum. Estava estupidamente abafado lá dentro, e muito apertado. Era impossível não ficar se esfregando em alguém. A guerra estava tão agravada, que precisavam de tantos soldados assim?

Depois de algumas horas, que passaram muito lentamente, o trem parou. Passaram 10, 20, 40 minutos até que abrissem o vagão onde Charley estava. Pela primeira vez naquele dia, o sol cegou a sua vista e ele agradeceu pelo ar que estava respirando.

Parecia bastante com uma base militar aquele lugar. Era cheio de pavilhões cinza e escuros. Não... Charley não gostou nada daquele lugar, tinha uma atmosfera bastante... Opressora. Mas como ele não era muito forte, era bastante magro, provavelmente não seria aceito.

A sua esquerda, havia um grande prédio, e mais a frente vários blocos organizados, como... Um colégio. A direita tinha um campo e mais atrás mais e mais pavilhões. Não havia quase nada de natureza naquele lugar, era um tipo de selva de pedra. O trem logo partiu novamente, deixando um grande rastro de fumaça. Charley olhou para trás, para a entrada daquele lugar, e viu grandes portões de ferro sendo fechados. Neles, havia uma mensagem em alemão, que ele conseguiu ler ao contrário:

“Arbeit Macht Frei”

(O Trabalho Liberta)



Colocaram todos em fila indiana novamente, e começaram a marchar em frente. Andaram e andaram por todo aquele mundo sombrio, e enquanto marchavam, Charley só pensava no que tinha acontecido com sua família.

Num determinado ponto, a grande fila de pessoas se dividiu em várias, cada uma ficou com cerca de 100 pessoas e andou em direções diferentes. A de Charley chegou em um pavilhão escuro e sombrio. Ele e todos os outros entraram nele, e ele viu que o que aparentava ser grande, era apenas um pequeno quarto. Um quarto pequeno e sujo, com triliches nas paredes. Todas as 100 pessoas daquela fila entraram, e o guarda fechou a porta. O lugar só estava iluminado por conta das janelas, não havia nenhuma lâmpada ou coisa do tipo. Os homens escolheram suas camas, e Charley logo escolheu a sua, para não ficar sem.

O que inferno era aquilo? Ele não sabia mais se aquilo era um alojamento, um recrutamento, ou qualquer coisa do tipo. Estava muito grande para ser uma prisão também.

“O que é isso aqui?”, “O que farão com a gente?”, “Irão nos torturar antes de nos matar?”, “Prefiro morrer a ficar o resto da vida aqui” eram as frases mais faladas entre os prisioneiros. Mas nenhuma afirmação ou pergunta esclarecia o que era aquilo.

“Saia daí imbecil!” um homem negro falou para Charley. Ele se recusou a sair de sua cama, então o homem o tirou de lá. Ele era forte e musculoso, e conseguiu levantar Charley e jogá-lo no chão. No chão já, o homem o chutou, atingindo sua cabeça. A orelha de Charley começou a sangrar, e as conversas de repente ficaram mais baixas. Não, ficar surdo era o que ele menos precisava.

Quando se levantou, três soldados entraram no quarto. Todos se levantaram, como num sinal de respeito. Os nazistas gritaram algumas coisas, e um dos prisioneiros foi até eles. Iria ser no esquema de tradução. O alemão gritava as coisas, e o prisioneiro traduzia. Infelizmente, Charley estava praticamente surdo, e não conseguia escutar quase nada.

“... trabalho às... logo depois... quando vocês... não pisem na...” era o máximo que Charley conseguia ouvir. Logo, os soldados se retiraram, e os prisioneiros formaram uma fila. Charley a furou e seguiu os mesmos. Foram até um outro pavilhão, onde receberam uniformes com listras pretas e brancas, e assinaram um papel amarelado lá.

É, Charley logo percebeu que não sairia logo daquele horrível lugar.

Os dias eram longos e extremamente cansativos. Todos os prisioneiros trabalhavam das 8 da manhã até as 22 da noite. Trabalhavam fazendo armamentos, carregando metais e materiais ridiculamente pesados pra lá e pra cá. Não comiam quase nada, só alguns biscoitos uma vez por dia, e tomavam água suja às vezes. A única coisa que dava força a Charley era a foto de seu filho mais velho, que tinha guardado escondida. Cada vez que a olhava, renovava as energias e a esperança.

As regras eram extremamente rígidas. Num dia em que estavam saindo em fila para o local de trabalho, um dos prisioneiros tentou fugir. Correu para a direita da fila, onde não havia nenhum guarda. Mas um soldado numa torre acertou vários tiros no rapaz, e os soldados que cuidavam da fila também.

Naquele dia, eles saíram um pouco da rotina, finalmente. A fila foi até um pátio, e numa fila virada a 90º, todos se prepararam para receber ordens. Um tradutor foi ao lado de um soldado, e começou a traduzir o que ele gritava. Charley estava um tanto surdo ainda, mas sua audição tinha melhorado um pouco. Só ouviu algumas coisas:

“... não ousem, não tentem nada contra o nosso supremo chefe... abaixem a cabeça, não olhem no rosto dele, não... não digam uma palavra, não respirem muito fundo... não façam qualquer som que...” foi o que ele conseguiu ouvir. Esse “chefe” devia ser um deus, para ser tratado tão... Assim.

Os soldados que estavam ali ficaram eretos em posição de sentido, e o tal chefe apareceu. Ele estava num traje militar completo, andando devagar e reclamando um pouco. Charley abaixou a cabeça, pois não queria ser fuzilado de jeito nenhum. Curiosamente, o tal chefe estava acompanhado de um Pastor Alemão, que andava calmamente ao seu lado. Charley escutou o tal reclamar alguma coisa em alemão. “... dumme menschen...”.

Essa foi a maior quebra de rotina. Os outros dias eram iguais, trabalhar, dormir, trabalhar, dormir, trabalhar, dormir. Era só o que faziam lá. E sinceramente, Charley preferia morrer a ficar naquela monotonia. Ele só não tentava suicídio porque ainda tinha esperanças de encontrar a sua família. De algum jeito, tinha esperanças.

Depois de semanas naquela rotina cansativa, todos daquele quarto apertado foram levados naquele pátio novamente. Mas dessa vez, nenhum chefe estava presente. Agora, um soldado e um médico analisavam cada um dos prisioneiros.

Alguns eram chamados a frente. O médico os analisava e de acordo com o diagnóstico, eram mandados para outra fila. Mas muito poucos iam até aquela fila, do outro lado do pátio. Quando chegou a vez de Charley, ele estremeceu de medo. Mas, provavelmente, se não tivesse um porte físico adequado, seria liberado e não precisaria mais ficar lá. Ele pelo menos esperava que fosse isso.

O médico olhou suas retinas, olhou dentro de sua boca e apalpou os seus braços. Quando ia marcar algo em sua prancheta, o soldado do lado dele gritou alguma coisa, apontando o braço de Charley. O médico retrucou, mas mandou Charley para a outra fila.

O que aconteceria agora? Iria sair vivo, são e salvo daquele lugar? Charley esperou na outra fila. Assim que o exame terminou, a fila original foi até o pavilhão de trabalho, e a fila de Charley foi até um pavilhão que ele ainda não tinha visitado. Era um tanto afastado dos outros, e era um tanto maior também.

Entraram todos, e sentaram em algumas cadeiras de plástico que haviam por ali. Um militar chamou a atenção de todos e disse em francês fluente:

“Vocês agora, vão tomar um banho para visitarem as suas famílias. Funcionará assim: vocês tiram as suas roupas na próxima sala, absolutamente todas as suas roupas, e esperam o sinal. A terceira sala são os chuveiros. Tomem um banho rápido para sair esse fedor, e na quarta sala vocês pegam suas roupas, e as vestem”.

Charley ficou feliz. Iria ver a sua família depois de todo aquele tempo. Com toda certeza, daria um forte abraço nos seus dois filhos e... Ah, a sua mulher... Estaria linda como sempre, é lógico!

Entraram na segunda sala, e todos começaram a se despir. Estavam ali as pessoas mais... “fracas” para o trabalho, por assim dizer. Idosos, mulheres e homens mais fraquinhos. Seriam poupados do sofrimento do trabalho, é claro. Charley devia se sentir constrangido por estar nu na frente de mulheres e de outros homens, mas a felicidade de tomar um banho e ver sua família era maior. Os outros com certeza sentiam o mesmo.

Em cima da porta da terceira sala, estava escrito “chuveiros” em alemão. Todos entraram lá dentro e a porta foi fechada. Todos esperaram a água jorrar dos chuveiros para limparem-se. Charley tinha tirado todas as roupas, estava sem nada, a não ser por uma coisa: a foto de seu filho. Olhava a mesma com felicidade e com a sensação de ter seus desejos realizados.

Quando menos esperou, começou a ficar tonto, e caiu no chão. Ouviu gritos e mais gritos, mas não sabia de onde vinham. Rolou no chão, e viu a maioria das pessoas batendo na porta, implorando para saírem dali. Devagar, uma a uma, caiam no chão também. Charley tentou respirar mas algo extremamente doloroso aconteceu. Teve a sensação de que uma pedra estava passando pelas suas narinas, sentiu elas queimarem como fogo, e essa sensação insuportável descendo até os pulmões, eu imploravam por um pouco de oxigênio. Sentiu sua voz afinando e a sensação de não conseguir mais dizer uma palavra, nem pedir socorro para alguém. A sensação de sua garganta arder o torturou mais do que nunca, fazendo-o rolar pelo chão frio. Os gritos das pessoas que antes incomodavam seus ouvidos, agora estavam quase cessando. Suas orelhas estavam amortecidas, o judeu não sentia mais boa parte do nariz, boca ou cabeça. Seu corpo doía, como se 50 elefantes tivessem o pisoteado. Tinha a sensação de que as pernas estavam quebradas e o peito aberto. Sua visão ficava cada vez mais escura e embaçada. A última coisa que viu antes de perder todos os sentidos, foi a foto de seu filho tão querido, que ele ainda tinha esperança de ver.

Curiosamente, muitos anos depois, no mesmo lugar onde Charley passou os últimos dias de sua vida, foi escrito no grande muro:

“Que o exemplo dos que foram exterminados aqui entre 1933 – 1945 pela sua resistência ao nazismo ajude a unir a humanidade pela defesa da paz e da liberdade e em respeito aos seus semelhantes”.





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