Cante! escrita por Layton Maia


Capítulo 13
Ep12 - O manuscrito


Notas iniciais do capítulo

Gente, primeiramente, desculpem esse mega hiatus. :/ Sério, foi irresponsabilidade minha, fiquei sem inspiração e sem ânimo pra continuar escrevendo, mas criei vergonha e estou aqui de volta xD
Preparei esse episódio especial que fala sobre o passado do Osmar.
Sem mais delongas, espero que gostem! xD
Baixe as músicas do episódio:
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I

- Talita, – sussurrou Fernando – isso não vai dar certo. – seus olhos mostravam todo o pavor que estava sentindo.

- Calma Fernando! – Talita esgueirou-se pela parede – Sei o que estou fazendo...

- Tô te dizendo... – disse o rapaz preocupado enquanto a seguia – Isso não vai dar certo.

- Fernando, - ralhou Talita – você pode parar de dizer que não vai dar certo?

- Posso parar se você me explicar por que quer invadir a sala dos professores...

Talita puxou o namorado para uma sombra entre duas colunas.

- Já disse que preciso saber o resultado das audições – aproximou-se com um olhar psicótico – Minha vida depende disto: vencer essas audições.

- Você não acha que tá exagerando? – afastou-se dela tentando esconder o medo que aquele olhar lhe fez sentir.

- Não. – Talita virou-se e observou cuidadosamente o corredor, puxou Fernando pelo braço e o guiou até a porta que dava acesso à sala dos professores.

- Talita, isso é loucura! – argumentou – Como você sabe que não tem ninguém aí dentro?

- Cruzei os horários das aulas de todos os professores e esse é o único em que todos estão dando aula ou em casa. Então, - analisou o relógio em seu pulso – temos 43 minutos para achar onde o Osmar fez as anotações das audições. – abriu a porta delicadamente, sem fazer barulho – Entendeu?

- Não. – respondeu enquanto a acompanhava para dentro da sala.

Talita dirigiu-se para o local em que estavam instalados os armários dos professores.

- Os armários são trancados com um segredo – disse Fernando observando os pequenos cadeados nas portas dos armários – É melhor a gente ir.

- Uhm... – resmungou Talita enquanto analisava a tranca – Quatro dígitos...

- Vai me dizer que você sabe a senha? – disse ironicamente enquanto espiava pelas persianas o movimento no corredor.

- 1-9-4-4 – disse enquanto rodava as pequenas travas.

Clique. O cadeado abriu.

- Como você sabia? – disse o rapaz incrédulo.

- Lógica, meu caro Fernando. O nascimento de Chico Buarque. – disse com um sorriso vitorioso.

- E como você sabia que era o nascimento do Chico Buarque? – disse sem tirar os olhos do cadeado aberto nas mãos da moça.

- O Osmar passou um ensaio todo falando sobre as composições do Chico. Tinha que ser algo relacionado a ele. – disse enquanto vasculhava o armário. – E nada mais óbvio do que a data de nascimento. Sinceramente, esperava algo mais criativo dele.

- Que aula foi essa? – disse confuso.

- Você tava dormindo. – disse enquanto retirava um bloco de provas.

Nada de interessante repousava ali. Apenas provas, vários papeis, algumas canetas jogadas aqui e acolá. Algo, porém, no fundo do armário, chamou-lhe atenção: era um pequeno livro de capa preta posto com cuidado em pé. Retirou delicadamente o volume e o analisou. Abriu e ficou surpreendida com o que havia escrito na capa.

- O que foi? – perguntou Fernando percebendo a expressão pensativa e confusa na namorada – Achou alguma coisa?

- É esse livro... – disse passando as páginas rapidamente e analisando o conteúdo.

- É onde ele anota tudo? – uma leve excitação tomou conta de suas palavras. Ela achara de fato as anotações do professor?

- Não... – disse retornando à folha de rosto – É o “Memorial de Osmar Camelo”.

- Como? – perguntou confuso, enquanto vigiava novamente o corredor.

- Ele escreveu um livro contando as memórias dele... – disse Talita passando para a primeira página escrita a próprio punho.

Leu quase num sussurro, mas mesmo assim, Fernando ainda a podia ouvir.

II

PRÓLOGO

Dizem que só os corajosos sabem viver; coragem é algo imprescindível para viver os obstáculos que nos são impostos pela grande roda viva. Só os destemidos conseguem vencê-los com louvor. Não sei se sou corajoso, mas posso afirmar que os empecilhos que foram conferidos a mim, faria com que qualquer um desistisse da vida.

A pior dor que se pode sentir é ver a morte dos próprios sonhos e não poder fazer nada para salvá-los. Ter os sonhos destruídos – e quando me refiro a sonhos, não digo aqueles que temos a cada mês, a isso, chamamos “metas”, refiro-me aos sonhos de uma vida toda, aquele tipo em que você se constrói os tendo como alicerce – faria qualquer um abortar-se, mas consegui sobreviver a isso; tive ajuda de pessoas que sou grato até hoje, ou pelo menos a grande parte delas.

CAPÍTULO UM – INFÂNCIA E JUVENTUDE

Nasci logo após o início da ditadura, no ano 1965. Minha mãe me deu a luz em casa, uma simples moradia na periferia de São Paulo de tijolos a mostra e cheia de goteiras no telhado. Nossa vida era bastante simples; não tínhamos muitas posses, mas mamãe nunca deixou faltar nada para mim e meu irmão menor.

Mamãe dizia que no dia em que nasci, chovia bastante, mas no momento em que vim ao mundo, o Sol raiou imponente. Ela sempre disse que fui a luz que guiou sua vida, principalmente após meu pai morrer. Ela viveu praticamente por mim e meu irmão, ela quase não aproveitou sua vida. Este é um dos maiores arrependimentos de minha vida: não ter ajudado minha mãe a aproveitar a própria vida.

Ela foi a pessoa mais forte e ironicamente frágil que já conheci. Enfrentava o mundo com a cabeça erguida e com toda a garra, mas para nós, seus filhos, era frágil como uma taça de cristal.

Sempre estudei em escolas públicas, mas isso não me impediu de perseguir meu sonho: ser um historiador. A História sempre me atraiu de uma forma excepcional. Achava os historiadores fascinantes e não me cansava de assistir “Indiana Jones” na pequena TV em preto-e-branco. Mas a vida não copia a ficção, e nem todos os sonhos podem ser realizados.

***

Talita pulou algumas páginas; agora ele falava sobre a escola e seus colegas de infância. Olhou o relógio rapidamente. Restavam 34 minutos. Deveria parar de ler aquele livro para poder encontrar as anotações do professor, mas sempre se perguntou o que o levara a se tornar tão frio. Aquelas folhas certamente continham a resposta.

Algo lhe chamou a atenção perto do fim do capítulo sobre a infância. Continuou a leitura, enquanto Fernando se mantinha concentrado na vigília do corredor.

***

Minha vida mudou drasticamente naquele setembro de 1977. Lembro claramente que meu irmão saíra para brincar com alguns amigos, enquanto eu ficara lendo um surrado livro de história que mamãe me comprara com todo carinho num sebo. Ela estava lavando roupa. Sempre gostara de cantar enquanto fazia seus trabalhos domésticos e naquele dia cantarolava uma triste valsinha. O suor tomava conta de seu rosto e as mãos cansadas e já enrugadas, mesmo sendo tão jovens, moviam-se agitadas pelo tanque. Ela queria descansar, mas não podia deixar de fazer suas obrigações. A vida lhe maltratara bastante, mas ela persistia na luta, por nós.

Estava entretido com algumas figuras curiosas da arte contemporânea, achava aquilo tão engraçado...

Uma vizinha entrou apressada em nossa casa. Correu até a cozinha, talvez para que eu não ouvisse, mas mesmo assim pude ouvir suas palavras doloridas:

- Cumadre, o Felipe foi atropelado agora há pouco.

Virei-me instantaneamente; Felipe era meu irmão. Pude ver apenas mamãe saindo apressada de casa. O olhar aterrorizado dela marcou-me como uma ferida.

Quando ela voltou, dirigiu-se para seu quarto. Ouvi seus soluços e lamentos durante toda a noite. Queria fazer algo para ajudá-la, mas sabia que ela precisava de um momento a sós. Precisava descarregar toda a tristeza e revolta.

O velório de meu irmão fora dali a dois dias. O céu estava nublado. Mamãe tentava ficar indiferente a tudo aquilo, mas seus olhos vermelhos e apoiados por fortes olheiras causadas por duas noites sem dormir transpareciam toda a tristeza escondida em sua alma. Ela queria me proteger da dor; sabia que eu estava triste, mas sabia que ficaria mais triste ainda se ela parecesse entristecida.

Depois daquele dia, mamãe nunca mais fora a mesma. Parecia mais fria ao mundo, a todos os problemas que ele lhe causara, mas ironicamente, aproximara-se muito mais de mim. Depois que meu irmão morreu, ela passou inúmeras noites dormindo abraçada comigo.

...

Uma das coisas que me ajudou a superar a falta de meu irmão, fora o coral do colégio. Comecei a participar em março de 1978 e encantei-me por todo aquele mundo das artes. Ia animado para o colégio todas as segundas e quintas, pois havia ensaio do coral.

Professor Francisco era um homem muito duro e exigente, mas possuía uma sensibilidade que vi em muito poucos. Lembro que ele nos fazia voltar para o começo da música, se alguém errasse alguma nota. Os ensaios eram cansativos, mas inteiramente prazerosos.

***

Talita virou a página. Começou a ler o capítulo seguinte.

III

CAPÍTULO DOIS – (IN)DECISÕES

Meu último ano de colégio chegou apressado e assim passou. E com ele, consequentemente, o crucial momento de prestar vestibular. Estava totalmente indeciso sobre qual curso pleitear, então, fui conversar com mamãe.

- Mamãe, - disse eu timidamente aproximando-se dela enquanto ela fazia crochê numa fria noite de primavera – posso lhe pedir um conselho?

- Claro filho. – disse ela sem tirar os olhos das agulhas e dos fios.

- Não sei qual faculdade devo escolher...

Ela me olhou serenamente com seus pequeninos olhos cobertos pelos óculos de armação desgastada.

- Você está em dúvida entre quais, meu filho? – perguntou voltando seus olhos para as linhas.

Hesitei em responder. Mamãe era uma pessoa muito serena, mas era dura e conservadora em relação a seus pensamentos. Tinha receio do que ela me diria.

- Bem, - disse esfregando os dedos freneticamente, ela moveu os olhos lentamente para minhas mãos ansiosas – estou em dúvida entre História e Música.

Mamãe despojou-se dos óculos. Olhou-me seriamente, como se refletisse sobre o que acabara de lhe dizer. Mordeu o lábio e disse firme:

- Sabe, meu filho, - era firme, mas seu tom transpassava uma incrível compreensão – sou uma mulher já velha – passou os olhos rapidamente pela pele já ressecada das mãos -, mas durante minha vida aprendi algumas coisas valiosas – acomodou-se na cadeira. Desde minha infância todos diziam que quem trabalhasse com música era vagabundo. E sabe de uma coisa, Osmar? – meus olhos estavam fixos em seus lábios – Os tempos não mudaram tanto assim...

- Mas mamãe... – ela levantou a mão e me calei instantaneamente.

- Ainda hoje os músicos não trabalham. Só vivem para vadiar por aí, se drogando, bebendo e fazendo sexo sem pudor. Essa profissão de músico, meu filho, é só para gente que não teve boa criação. Gente que não tem Deus no coração. E não criei filho para que ele se perdesse no mundo. – seus olhos encheram-se de tamanha fúria que me fez ter vergonha de ter-lhe dito aquilo. Mas aquele era meu sonho... Queria fazer Música, não História. Precisava lutar por aquilo, afinal, ela me ensinara que devemos lutar pelos nossos interesses.

- Mas os tempos mudaram mamãe...

- Não me interrompa menino! – seu tom passou de agradável a totalitário e aquilo me assustara – Mudaram coisa nenhuma! Não viu aqueles doidos que tentaram fazer uma revolução? Onde estão agora? Ou estão mortos ou foram mandados para fora do país.

- Eles estão certos, mamãe – disse sem pensar – Não podemos aceitar esse regime que nos é imposto.

- Deus sabe o que faz, meu filho. – seu olhar penetrava como uma fina lâmina.

Tive vontade de gritar, berrar.

- Mas nós precisamos mudar, às vezes. – disse tentando me acalmar.

- Tudo ao tempo de Deus. – voltou ao crochê mesmo sem os óculos.

- Mamãe, se formos esperar pela boa vontade de Deus, nunca conseguiremos nos livrar desses militares imundos! – minha voz tomou-se por uma emoção sem proporções.

Ela olhou-me séria. Largou o tecido de lado e aproximou-se, lentamente, de mim. Quis correr, mas era melhor que ficasse ali.

- Nunca mais repita isso! Ouviu bem? – seus olhos avermelharam-se e algumas tímidas lágrimas queriam livrar-se do cárcere – Nunca mais repita isso! Se temos essa casinha, pelo menos, quem nos deu foram as Forças Armadas. Você sabe muito bem disso! Temos que agradecer nosso teto às Forças Armadas e ao bom e misericordioso Deus.

- Quem nos deu essa casa, mamãe, foi o esforço de papai. – meus olhos também se encheram de lágrimas; lembrar-me dele, doía-me no peito.

- Mas ele nos proporcionou isso com o salário que ele recebia como sargento do exército. – ela continha as lágrimas.

- O Exército pode ter nos dado a casa, mas em troca, levou papai. – duas ou três lágrimas rolaram pela minha face.

Ela fechou os olhos, aumentando o esforço em conter o choro. Aprumou a coluna na cadeira e disse abrindo os olhos lentamente:

- Vá rezar filho, você está precisando de um pouco de contato com Deus.

Antes de me levantar e ir para o meu quarto, pude presenciar uma triste lágrima correndo por sua bochecha direita. Ela baixou a cabeça triste e respirou fundo.

***

- Nossa! – exclamou Talita – A mãe dele era muito conservadora. Que mulher do pensamento quadrado. – disse num tom perplexo, talvez fora a mãe dele que o deixara daquele jeito.

- Você tem que entender que ela nasceu há muito tempo atrás, Talita. – ponderou Fernando, ainda atento no corredor – Numa época que não existiam automóveis, nem televisão, nem quase tudo que a gente conhece hoje.

- Mas mesmo assim ela tinha a mente muito fechada, não dava a menor atenção ao mundo que lhe rodeava.

Talita pulou alguns parágrafos e continuou a leitura.

IV

CAPÍTULO TRÊS – FACULDADE

Meu primeiro ano na faculdade de História não teve grandes acontecimentos ou aventuras; passava meus dias lendo grossos volumes de teorias filosóficas e almanaques de história. Era feliz, mas a dúvida se seria mais feliz cursando música me perseguia. Fazia de tudo para evitar esse tipo de questionamento.

Meu curso era integral, portanto, acordava bem cedo, me arrumava depressa e pegava o ônibus expresso para o campus. Normalmente chegava cansado na primeira aula, mas tentava permanecer atento a tudo dito por meu professor. O horário do almoço era pequeno, apenas uma hora, e a comida do Restaurante universitário não era das mais saborosas. Lembro que gostava quando chegavam às sextas-feiras; juntava as gorjetas que recebia na lanchonete onde trabalhava à noite e comprava um belo sanduíche para meu almoço. Comia com gosto... Pequenas coisas, como esse sanduíche, tornavam meus dias um pouco mais alegres.

Numa dessas sextas, uma garota sentou-se a meu lado e começamos a conversar:

- Oi. – disse ela; parecia tímida, mas a forma como se vestia não denotava uma garota introspectiva.

- Oi. – respondi atento a meu sanduíche.

Ela sorriu e ajeitou o cabelo para trás da orelha. Olhava para mim medrosamente e quando percebia que também olhava para ela, voltava seus olhos castanhos brilhantes para o suco a sua frente.

- Você estuda aqui? – perguntei descompromissadamente.

- Sim. – disse após tomar um gole de suco, o que deixou sua face menos ruborizada – Mas não nesse prédio, tenho alguns amigos aqui e de vez em quando venho visitá-los.

- Legal. – mordi generosamente meu sanduíche – Você faz o que?

- Matemática. – brincava com o canudo e parecia não querer olhar diretamente para mim, aquilo me fez rir. – O que foi? – perguntou cautelosa; as bochechas voltando a avermelhar-se.

- Nada não. – sorri para ela, ela sorriu timidamente e voltou sua atenção ao copo.

Ficamos calados por alguns minutos. Terminei meu sanduíche e olhei o relógio da cantina. 13h50min. Minha aula começaria daqui a pouco. Arrumei minha bolsa e me levantei. Ela acompanhou-me com o olhar, parecia triste agora.

- Preciso ir para minha sala.

- É... Eu também. – disse levantando-se.

Pude ver agora seu corpo: os seios perfeitamente esculpidos eram protegidos por uma blusinha branca que parecia nova, o quadril não tão avantajado ficava encoberto por uma calça jeans.

Sorri para ela, ela também.

- Prazer, Osmar. – estendi minha mão para cumprimentá-la.

- Prazer, Vivian. – ela apertou a minha e sorriu da forma mais iluminada que já vi.

***

- Essa Vivian é a que estou pensando? – disse Talita surpresa.

- Parece que sim. – disse Fernando boquiaberto.

- Uhm.. – refletiu Talita – Quer dizer que a história desses dois é mais antiga do que pensava...

- Como assim mais antiga do que pensava?

- Você nunca percebeu? – ele acenou negativamente – Parece que houve algo entre eles. Sempre quando o Osmar fala com ela, parece frio. E ela sempre o olha de uma forma tão apaixonada...

- Parece que não é de hoje mesmo...

Talita retomou a leitura.

***

Meus encontros com Vivian ficavam cada vez mais frequentes; parecia até que o destino queria nos ver unidos.

Lembro perfeitamente a primeira vez que saímos: era meu aniversário, tinha folga no trabalho e aula ate às 18hrs. Saí esgotado da aula e fui comer rapidamente na lanchonete do prédio de História. Lá estava ela, como sempre, tomando seu suco e usando um vestido que mostrava boa parte de suas pernas – para uma jovem da nossa época, era bem “para frente”.

Sentei ao lado dela, que sorriu quando me viu. Começamos a conversar e no momento em que contei que era meu aniversário, ela levantou e meu abraçou apertadamente. Perguntou o que faria naquela noite e lhe respondi que planejara jantar com minha mãe, como fazia todos os anos. Ela ficou calada por alguns segundos e me perguntou se eu não queria ir a uma festa com ela. Confesso que foi uma decisão difícil; queria sair com Vivian, mas se não fosse para casa, mamãe ficaria desapontada comigo.

- Onde é a festa? – perguntei enquanto refletia.

- No bloco da filosofia. – ela sorriu; minha vontade de sair com ela cresceu ainda mais.

O bloco de filosofia não era tão longe dali e, para minha sorte, ficava perto de uma parada de ônibus.

- Tudo bem. Vamos.

Ela sorriu e me deu um beijo na bochecha. Minha temperatura subiu e senti como se visse estrelas.

Ela me levou até o bloco. Fomos de braços dados e ela me contou casos de sua vida. Gostava dela, gostava de estar com ela. Estava apaixonado? Naquele momento, não sabia responder.

Frequentei poucas festas durante minha vida, mas as que fui, ela estava presente. Dançamos muito. Podia ver a alegria em seus olhos por estar comigo e também estava feliz em estar com ela.

“Dois pra lá, dois pra cá”, da Elis Regina, começou a tocar. Ficamos abraçados. Aquele contato fez nossos corpos ficarem cada vez mais quentes e trêmulos. Ela apoiou a cabeça em meu ombro. Senti a respiração dela brincando pela pele do meu pescoço. Aquilo me arrepiou todo. Não conseguia segurar mais aquele sentimento. Beijei-a.

***

Talita estava perplexa. Osmar e Vivian realmente se envolveram e ela não imaginara que era algo tão antigo.

Olhou para o namorado. O coitado preocupado vigiava o corredor amedrontado.

Voltou os olhos novamente para o livro. Leu para si dessa vez.

***

Passamos o resto de nossos cursos juntos, assim como vários anos de nossas vidas. Foi uma ótima época da minha vida; sentia-me completo, não havia mais nenhum espaço vazio dentro de mim. Aliás, ainda havia um. Não suportava mais trabalhar como professor; aquilo era maçante para mim.

Foi nessa época que decidi investir no meu outro sonho: o canto. Já fizera inúmeros cursos de canto e eu, com meus tenros 28 anos, retornei à faculdade para cursar música.

Nessa época, eu e Vivian morávamos juntos e ela segurou o orçamento da casa com seu salário de professora. A coitada matava-se trabalhando em duas escolas, mas sempre me recebia com um sorriso. Ela, de fato, sempre me amou.

Não parei de trabalhar, se é o que você, caro leitor, está pensando, apenas diminuí minha carga horária na escola para um turno. Trabalhava pela manhã, estudava à tarde na faculdade e, à noite, revisava o conteúdo, corrigia provas e preparava trabalhos para o colégio. Essa época voou, e logo já estava formado em música e ansioso para trabalhar – como trabalhava, não pude fazer estágio durante o curso.

Uma tarde, numa rua próxima ao colégio onde trabalhava, vi um cartaz que anunciava audições para um grupo vocal bastante conhecido. Animei-me imediatamente. Copiei o telefone e fui correndo para casa, contar a Vivian. Inscrevi-me no mesmo dia e, ansioso para a audição, recebi a notícia que seria dali a uma semana. Precisava encontrar a música perfeita para minha voz e logo me veio à cabeça uma das obras-primas da música brasileira: Carinhoso, de Pixinguinha.

A semana seguinte veio à galope e na hora marcada estava no auditório onde aconteceria a seleção. Estava nervoso, minhas mãos tremiam e suavam como nunca. O diretor do grupo me chamou ao palco. Meus passos eram inseguros e parecia que o chão desabaria a qualquer instante.

- Boa tarde. – disse ele com um sorriso simpático.

- Boa. – tentei sorrir como ele.

- Você é o...?

- Osmar Camelo.

- Pois bem Osmar, o que lhe levou a fazer a inscrição para participar do grupo?

- A música. Sempre fui apaixonado pela música e essa seria uma ótima experiência para começar minha carreira.

- Uhm... – murmurou ele enquanto com certeza lia minha ficha – Quer dizer que você não tem experiência?

- Não. – fiquei tenso, confesso; meus músculos estremeceram – Mas sou formado em música.

- Eu sei. Você colocou na sua ficha. – colocou a ficha de lado e disse olhando em meus olhos – O que você vai cantar então?

- Carinhoso, do Pixinguinha.

- Ótima escolha.

[Carinhoso (Pixinguinha {Marisa Monte}) – Osmar]



Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo,
Mas mesmo assim foges de mim.

Ah se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero.
E como é sincero o meu amor,
Eu sei que tu não fugirias mais de mim.

Vem, vem, vem, vem,
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus.
Vem matar essa paixão
Que me devora o coração
E só assim então serei feliz,
Bem feliz.

Serei feliz, bem feliz

Serei feliz, feliz.

Terminei de cantar. Estava tremendo por completo, meus braços e pernas chacoalhavam descontroladamente. O homem não falava nada, apenas olhava para minha ficha e coçava a nuca, como se procurasse as palavras certas.

Fui tão mal assim? A meu ver, fui até bem, embora estivesse muito nervoso e não pude sustentar algumas notas como deveria. Mas não fora tão mal assim... O que ele estava esperando? Vamos homem! Fale!

- Você – disse ele quebrando o silêncio – fez faculdade de música?

- Fiz sim. - o que ele queria insinuar com aquilo?

- Pois acho melhor você voltar pra faculdade – disse em tom de deboche – pelo visto, não aprendeu muito por lá.

Fiquei paralisado. Não consegui falar mais nada. Tinha certeza que não fora tão mal assim, porque então ele dissera aquilo? Para me fazer de besta? O que seria afinal? Ele tinha inveja de mim? Só podia ser isso. É claro! Era isso. O maldito homem tinha inveja do meu talento e queria me ver longe do seu grupo para não roubar sua posição.

Ah! Queria acreditar que aquilo era verdade. Acredito que foi a coisa que mais desejei em minha vida. Não conseguia mais falar, não conseguia nem sequer pensar.

Voltei com ombros baixos para casa, nada poderia piorar aquele dia terrível. Queria que ele terminasse o quanto antes, queria que o relógio badalasse doze vezes, queria ver o sol do dia seguinte nascer.

Cheguei em casa. Abri a porta melancolicamente. Entrei e deparei-me com Vivian sentada no sofá. Os olhos vermelhos e inchados preocuparam-me, algo acontecera a ela. Droga! Nunca diga que nada pode piorar seu dia terrível, porque sempre a algo que se pode piorar. Bem, pelo menos era com ela, provavelmente que envolvia seu trabalho, como briga com uma colega ou recebera a notícia que seu horário no próximo ano aumentara, era algo que eu deveria apenas consolá-la e naquela mesma noite estaria tudo bem.

- Vivian, você não deveria estar no trabalho a essa hora?

Ela concordou com a cabeça, mordeu os lábios contendo as palavras.

- Tá tudo bem com você? - perguntei.

- Recebi uma péssima notícia essa tarde. - disse com a voz embargada.

- O que aconteceu?

- Acho melhor você sentar. - arrumou o cabelo para trás da orelha, retirando algumas mechas defronte do olho.

Achei aquele pedido muito estranho. Porque ela queria que eu sentasse? Será que era algo que me envolvia? Ajeitei-me ao lado dela e a abracei carinhosamente.

- Bem... - começou ela – É... - ela media as palavras cuidadosamente – Não sei como te dizer isso.

- É só deixar as palavras fluírem. - sorri escondendo minha angústia com aquela notícia.

- Hoje, agora à tarde, ligaram lá pro colégio...

- Sim...

- E avisaram que... - ela parou, não conseguia dizer mais nada.

Aproximei-me aos poucos, conforme minha expectativa aumentava.

- Pode dizer. - tentei ser o mais compreensivo que pude.

- Avisaram que... - algumas lágrimas caíram, como se o que fosse me dizer doesse muito mais nela. - Sua mãe sofre um acidente.

Pareceu que o mundo parara de girar. Minha visão girava como numa montanha-russa, perdi todas as noções. Não sabia mais onde estava, o chão e o céu desapareceram quando ela falou sobre mamãe. Lembrei de tudo o que ela significara para mim durante toda minha infância e juventude e não pude esquecer as últimas palavras que lhe disse no dia anterior durante uma rápida visita: “Eu te amo”.

As lágrimas correram pela minha face. Vivian abraçou-me, tentando proteger-me do mundo.

***

Talita fechou o livro; não conseguia mais ler aquilo. É impossível que tanta coisa ruim acontecesse com um só homem e num só dia. Agora ela conseguia entender o por que de toda aquela amargura que o professor carregava. Praticamente seus sonhos e suas bases foram destruídas. Ela não podia imaginar como sobreviver àquilo, como vencer tudo aquilo.

- Você tá bem, Talita? - perguntou Fernando, virando-se.

- Mais ou menos. - disse com um sorriso nos lábios para confortar o namorado.

- Você quer alguma coisa? Um remédio? - arguiu preocupado.

- Não precisa querido, obrigada. Vou voltar a ler. - sorriu.

V

CAPÍTULO V – ERROS DE UMA NOVA VIDA

Não sabia mais o que fazer da minha vida. Não conseguira meu emprego dos sonhos, perdi a pessoa que me mantinha sonhando e, devido a constantes faltas, estava desempregado agora. Vivian estava fazendo o que podia para me reerguer, mas, naquele momento, ninguém poderia me ajudar, a não ser eu mesmo.

Estava muito deprimido, não conseguia fazer nada além de ficar deitado e comer. Estava engordando rapidamente e minha saúde diminuía pouco a pouco. Foi assim por três meses. Vivian precisou até mesmo chamar um médico para me ver. O coitado receitou-me um antidepressivo e um coquetel de vitaminas. Os remédios, felizmente, surtiu efeito e eu, rapidamente, estava me sentindo melhor. Sabia que não podia mais permanecer no estado que estava. Precisava sair e lutar pela minha vida. Posso ter perdido a pessoa mais importante de minha vida, mas Vivian ainda estava ao meu lado. Sabia que podia confiar nela, ou achava que podia.

***

O sinal tocou. Fernando correu para dentro da sala.

- Vamos Talita. Já tá todo mundo vindo, se a gente não se apressar, vão nos ver saindo. - disse o rapaz desesperado.

- Calma Fernando, vai dar tudo certo. - disse Talita enquanto admirava a capa do livro.

- Descobriu algo interessante?

- Algumas coisas. - disse a garota com um sorriso contido nos lábios.

- Então, tá esperando o que?

Talita levantou-se e guardou o livro dentro da bolsa.

- O que você tá fazendo? - perguntou Fernando quase gritando.

- Preciso descobrir o que aconteceu com o Osmar e a Vivian pra ele odiá-la tanto.

- E pra isso você precisa roubar o livro de memórias dele?

- Não estou roubando – disse a garota calmamente enquanto tomava o rumo da saída. - estou apenas pegando emprestado. Depois devolvo.

- Talita – disse preocupado – ele vai perceber.

- Vai não, - segurou a mão do namorado tranquilizando-o – quando ele pensar que alguém sabe do diário dele, já terei devolvido.

Fernando suspirou. Não argumentaria com Talita; sabia que ela sempre arrumaria um contra-argumento. Precisava confiar na namorada, pelo menos dessa vez. Confiar como não fez quando desconfiou que ela não conseguiria fazer as pazes com Annah. Confiar como nunca confiou em alguém. Espero que Talita não me decepcione.


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Notas finais do capítulo

Então, bom ou ruim?
Queria desejar "até próxima semana!", mas não sei se terei terminado o próximo capítulo - intitulado "Pai" - até lá.
Então, até mais! >
Baixe as músicas do episódio:
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