Quando A Caça Vira O Caçador escrita por Padalecki, Samuel Sobral


Capítulo 15
Catorze - Mason


Notas iniciais do capítulo

Hey, Hunters! Sam falando. Aqui está o capítulo do Mason, cheio de revelações mas sem (vamos todos dizer: Ahhhhhh) a ação que eu amo. Vai ficar para o próximo capítulo. Não revisei ele, e a Paula não aprovou as falas da Jenny desse capítulo, mas, enfim, estou com pressa. Ela corrige depois *--* Enjoy!



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Parar Jennyffer Clein é impossível.

Eu já deveria ter descoberto aquilo naquela vez na sexta série, quando Jenny se comprometera em bater num garoto que estava me perturbando. Ou talvez naquela vez na quarta série, quando uma menina grandalhona tinha pensado que roubar o giz de cera de Jenny seria uma ótima idéia. Mas, só naquele momento, no meio da rua, entre a minha casa e a dela, eu tinha percebido aquilo.

Eu me sentia impotente, para variar. Meus tênis derrapavam pelo asfalto como se eu estivesse patinando. Jenny apenas bufava pelo pouco esforço enquanto andava contra mim, ignorando minhas mãos pressionadas contra seus ombros. Eu só não estava me atracando à ela pela minha honra por causa do incidente anterior, olhando para a barriga dela. Deus. Eu teria sido menos sutil se tivesse piscado sedutoramente.

Chegamos à calçada da casa de Jenny. Ela não estava nem suando. Eu, por outro lado...

– Okay, Mason. – Jenny disse. – Eu vou ter de te empurrar ou você vai ceder gentilmente?

Eu a encarei. Ela estava completamente determinada, e seus olhos castanhos quase pareciam vermelhos. Seus cabelos loiros emolduravam um rosto que parecia completamente diferente, embora eu ainda pudesse descrevê-lo em qualquer lugar, sob qualquer circunstância. Parecia o rosto de uma viking. Ainda bonito, lindo, mas severo, também. As feições não pareciam mais delicadas. Pareciam capazes de suportar uma explosão à queima-roupa. Ah, já tinham feito isso. Ops.

– Jenny, seja lá o que você for fazer... Esqueça. – Eu disse, pressionando ainda mais minhas  mãos nos ombros dela. – Estamos tentando sobreviver, lembra?

Ela revirou os olhos. Tive que conter o impulso de sorrir. Ela ficava tão bonita quando fazia birra.

– É, eu me lembro. – Havia mágoa em sua voz. – Me lembro de termos quase morrido porque não tínhamos nossos pais em casa. Não somos bebês, Mason! Não precisamos de proteção! Temos os poderes, por que não podemos usá-los?

Fiquei tentando a largar os ombros dela e usar as mãos para expressar minha frustração em não poder convencê-la a parar com o que quer que fosse. Mas tocá-la sem me parecer estranho era... Bom. Eu me limitei a encará-la fixamente.

– E quem disse que só bebês precisam ser protegidos? – Tentei parecer calmo, como se soubesse do que estava falando. – São nossos pais, Jens. Eles sabem o que é melhor para nós, principalmente em situações como essa. Proteção é uma coisa boa.

Ela bufou. A mágoa em seu olhar parecia prestes a se tornar fúria. Eu me senti intimidado, mas forcei-me a continuar encarando-a. Ela é a apenas minha amiga, Jennyfer. Eu a conheço. Ela não vai me matar com as próprias mãos.

Não é?

– E por acaso você gostou de ser protegido durante todo o Fundamental? – A pergunta tinha um tom irritante que eu sabia que era proposital.

Mas que me irritou do mesmo jeito.

Jennyfer havia me protegido desde o primeiro ano até o nono. No momento, eu não estava nem ligando – éramos ela e eu, lendo e brincando juntos. Eu não via os meninos que queriam me bater, mas que não puderam. Não via minha própria covardia ao deixar Jenny lutar minhas batalhas. Até agora.

Soltei os ombros dela. Naquele momento, eu percebi que eu era um covarde de marca maior. Deixava garotos me baterem. Deixava me ofenderem. Deixava me roubarem. E agora, eu estava fazendo o mesmo, só que com monstros ao invés de garotos malvados. Meu pai estava me protegendo. Mas e quando ele se enchesse disso, e resolvesse que eu não precisava mais de proteção, como Jenny no Ensino Médio? E quando ele... Morresse? Será que ele me trataria como seu “filinho indefeso” até a morte? Será que me esconderia mais informações?

A frustração da garota loira na minha frente finalmente fez sentido. Mas, de qualquer forma, anos de discussão na internet me ensinaram a não mudar de opinião tão fácil.

– Ok, ok. – Massageei as têmporas. Jenny não parecia mais tão apressada agora, e eu me perguntei se estava deixando transparecer meu caótico estado mental. – Certo. Você tem um plano para “mostrar que é uma caçadora de verdade”. Posso saber qual é?

Ela sorriu de modo travesso. Quase sorri de volta.

– Não posso contar. – Ela disse. – Pelo menos, não até você concordar com ele.

A idéia era perigosa. Insegura. Eu nunca faria algo assim.

Mas... Eu queria mandar uma mensagem para o meu pai. Que eu não era mais uma criança. Que ele não precisava esconder informações. Que eu podia entender a vida dele. Aquela era uma oportunidade.

Assenti.

– Eu concordo. – Fiz um gesto de escoteiro.

Ela riu, tentando imitar meu gesto.

– Ótimo, comparsa. – Eu teria me sentido mais seguro se ela não tivesse dito aquilo. – Vá buscar algumas flechas e me encontre aqui em dez minutos.

Flechas?

– Sem perguntas. – Jenny avisou, antes mesmo de eu verbalizar a pergunta.. – E vá rápido, antes de recuperar a razão.

Sorri, olhando-a nos olhos. Ela sorriu de volta, mas seu olhar pareceu afetado. Em transe. Franzi a testa, e o olhar dela recuperou o brilho que predizia uma loucura. Estávamos sem os pais por perto. Prestes a fazer algo de que eu provavelmente me arrependeria. Era excitante; uma sensação boa que me lembrava dos velhos tempos de brincadeiras e expedições sem sentido.

Eles estavam de volta.

***

Com uma sensação desagradável, eu percebi que toda aquela loucura que me cercava – incluindo o que quer que fosse que Jenny estava planejando – era mais “normal” para mim, agora, do que fazer qualquer outra coisa.

Um exemplo efetivo disso foi minha ida à escola naquela manhã.

Eu ainda estava meio aturdido pelo modo como Jenny havia feito as pazes comigo. Tão rápido, tão objetivo, deixando de lado qualquer motivo para não acreditar nela. Algo dentro de mim ainda se sentia desconfortável, ainda recitava tudo o que ela disse no meu aniversário. Mas o que quer que fosse, ficava sufocado pelo resto de mim, que vibrava por estarmos bem novamente.

E, mesmo que eu não estivesse completamente confuso do jeito que eu estava, a escola teria sido tão estranha quanto tinha sido de qualquer forma.

Eu me sentia diferente. Aquele pessoal, aquela bagunça... Eles nem sabiam o que havia ao seu redor. E saber daquilo enquanto observava dezenas de adolescentes indo para suas aulas... Era como observar crianças pequenas que não sabiam o quanto o mundo era perigoso. Eu era responsável pela vida de todas aquelas pessoas?

Minhas divagações ainda pertenciam a esse tema quando a primeira aula chegou, Inglês, com Megan me lançando olhares significativos e uma Jenny pensativa e pouco comunicativa. Foi a única aula em que realmente prestei atenção – todas as outras foram apenas ignoradas por mim, assim como qualquer outra coisa fora de minha mente. Até que uma garota disse algo do meu lado.

Uma garota? Dizendo algo para mim? Do meu lado?

Olhei para o lado. Havia uma menina sentada no banco ao meu lado, dividindo a mesa de experimentos comigo. Ela usava o uniforme das líderes de torcida encoberto por um casaco grosso e marrom. Tinha olhos da cor do café e cabelos negros. Sua pele morena refletia a luz da manhã, em parte, deixando-a com um aspecto angelical.

Era uma garota que andava com Jenny durante o intervalo. Eu não sabia seu nome, mas sabia que ela era líder de torcida. Era o suficiente para que eu me afastasse dela. Mas notei algo em seus olhos. Ela tinha me feito uma pergunta alguns segundos atrás, percebi.

– O que disse? – Perguntei. – Desculpe, eu estava...

Mas a menina sorriu de repente, e eu me interrompi. O que viria a seguir? Um comentário sobre como eu era lerdo ou esquisito ou idiota?

– Tudo bem, hã... Mason, não é?

Assenti, desconfortável.

– Eu só desejei um bom dia. – O sorriso dela se tornou tímido.

Meu cérebro travou. Uma líder de torcida, sentando ao meu lado, sendo gentil e sem aparentes segundas intenções? Aquilo era mais impossível de se acreditar do que os monstros que meu pai caçava. As pessoas me evitavam em todas as aulas. Eu sempre estava sozinho. Então, de repente, uma linda e amigável líder de torcida estava me desejando um bom dia?

A garota se mexeu, desconfortável. Percebi que eu estava encarando-a, imóvel. Como se fala com desconhecidos?

– Ah, ok. – Tentei parecer gentil, mas não escondi minha desconfiança. – Um bom dia para você também, hã... – Ótimo, eu não sabia o nome dela.

– Alexandra. – Ela esticou a mão. – Todos me chamam de Alex. Sou amiga da Jenny.

Hum. Agora ela dava informações, também?

Apertei a mão dela, que tinha mais calos do que a minha. Que constrangedor.

– Eu... – Eu não sabia se a Jenny havia “oficializado” que éramos amigos, então decidi não dizer nada que pudesse causar confusão. – Eu sei.

– Tudo bem se eu for sua parceira hoje? – Ela perguntou, ignorando meu vocabulário limitado. – Sou péssima em Química.

Olhei ao redor. Havia algumas garotas com quem ela poderia trabalhar, garotas como ela. Felizmente, nenhuma delas estava olhando para trás e piscando, então não se tratava de uma pegadinha. Infelizmente, eu sabia que haveria a possibilidade de fazer alguma burrice; eu não era muito bom em me relacionar com as pessoas. E por que ela estava sendo tão amigável assim? Ela também me evitava muito nessa aula.

Decidi ser gentil. Moderadamente.

– Claro, tudo bem.

No final das contas, Alex não tinha segundas intenções. Ela era gentil o tempo todo, e não queria me levar para lugar nenhum que pudesse se mostrar uma armadilha. Ela riu das minhas piadas horríveis, e eu muito mais das piadas dela, que eram muito boas. Almoçamos juntos, e isso fez o grupo das líderes de torcida levantar sobrancelha. Felizmente, eu não vi Jenny. Seria embaraçoso explicar aquilo para ela. Embora eu não soubesse muito bem o porquê.

Foi estranho falar com outra pessoa além de Jenny ou meu pai, que eu percebi que eram meu círculo de amizades. Para mim, as outras pessoas eram... Complicadas. E agora, que eu sabia tudo o que sabia, que tinha uma nova realidade com que me preocupar, as pessoas pareciam muito mais complicadas. Mas Alex driblava isso. Ela apenas queria ser... Minha amiga? Eu esperava que sim.

E, enquanto procurava por flechas naquela tarde, esperava não estragar minha relação com Alex. Se é que tínhamos uma “relação”.

Decidi me concentrar no que estava fazendo, ignorar o fato de que aquela situação em que eu estava me metendo não parecia tão anormal quanto falar com uma garota. E percebi que eu não sabia o que estava fazendo.

Jenny queria que eu pegasse flechas. Certo, mas pra quê? Eu não sabia. Poderia ser um tiro ao alvo esportivo, poderia ser Jenny querendo pegar uma flecha no ar (eu não duvidaria), ou... Não. Ela não iria...

Peguei um bolo de flechas de cada cubículo da estante em que eu estava procurando, empurrei tudo numa aljava que estava largada no chão e subi as escadas apressadamente, sem nem reparar na arrumação que meu pai havia feito. Atravessei a casa feito um louco, até me ver na porta da frente. Jenny ainda não tinha saído.

Parte de mim queria esperá-la, mas a parte sensata de mim não me deixaria em paz até que eu impedisse a loucura que estava por vir. Atravessei a rua, abri a porta da casa dela. A sala, assim como todos os outros cômodos, estava vazia. Ela estava no galpão.

Enquanto corria para ele, eu rezava internamente algo muito complexo, como: não, não, não! Atravessei o gramado. A porta do galpão estava entreaberta, me dando uma brecha grande o suficiente para que eu passasse sem problemas – mas, é claro, eu esbarrei nela e a fiz ranger ruidosamente.

Jenny não estava na área de leitura. Atravessei as estantes, chegando numa área depois dela que eu não tinha dado muita atenção anteriormente. Havia um armário num canto, onde eu presumia estarem as adagas de Megan. Ao lado dele, colada na parede, havia a maior coleção de mapas que eu já tinha visto pessoalmente. Acima deles, colado na madeira da parede aparentemente há muitos anos, era possível ler: “Os Focos de Weston Ville”. Além disso, havia apenas uma prateleira fixada na parede, com os retratos que já tínhamos visto antes.

Jenny encarava os mapas verazmente, parecendo traças rotas neles com os dedos. Ela tinha trocado de roupa. Ao invés de usar a farda tradicional das líderes de torcida, tinha sobre o corpo calças camufladas, botas de caminhada e uma camiseta preta justa. Seus cabelos loiros estavam comprimidos sob uma touca preta. Havia um par de adagas realmente grandes preso em seu cinto. Parecia muito com sua mãe no dia em que me salvara do lobo gigante.

Pigarreei para chamar a atenção dela. De novo. Então chutei sua canela.

Ela se virou com uma expressão assassina nos olhos. Por um único momento, eu cogitei gritar como uma garota e sair correndo, mas o brilho medonho sumiu rapidamente. Jenny deu um meio sorriso.

– Oi – Ela disse. Então me analisou de cima a baixo, algo que me deixou muito desconfortável. – Você vai sair assim?

Olhei para minhas próprias roupas: um suéter marrom com estampa de renas sobre uma camisa de botões, jeans recentemente lavados e um par de tênis. Eu adoraria dizer que não me senti ridículo naquela hora, mas estaria mentindo descaradamente.

– É. – Respondi, me afastando. – Porque alguém não me disse o que íamos fazer.

Ela abafou uma risadinha.

– Claro, Sr. QI. Como se você não tivesse descoberto sozinho.

Droga. Ela ia mesmo fazer aquilo.

– Jennyfer Clein. – Avisei. – Nem pense em fazer nada disso.

Ela fingiu estar assustada, e depois voltou a observar os mapas. Depois de alguns segundos, percebi que ela não estava mesmo me levando a sério. Como sempre.

– Jens – Falei, ficando do lado dela, tentando assumir uma postura cheia de seriedade. Então percebi que, nos mapas, minha casa estava circulada em azul. – O que é isso?

Ela sorriu, triunfante, antes de responder. Minha maldita curiosidade.

– Um mapa da cidade sob o ponto de vista dos caçadores. – Explicou, e parecia orgulhosa por isso. – Aqui temos os QG’s. – Ela mostrou minha casa e a dela, que estavam circuladas em azul e vermelho, respectivamente, com inscrições em cima delas. – E aqui – ela mostrou diversos pontos circulados em preto na floresta ao redor da cidade. – São os focos de monstros, ou seja, os locais onde eles mais são vistos/sentidos. São mais ou menos como os locais onde eles esperam a oportunidade para entrar na cidade sem serem notados.

Hum. Não era tão difícil de entender.

– E você está estudando isso por que...?

– Porque faz parte da natureza do meu clã – Ela disse. – E também porque precisamos de um lugar para fazer nossa pequena demonstração de habilidade.

Engoli em seco.

– Como assim “demonstrar”?

– Nossos pais não estão nos deixando lutar porque acham que não somos capazes. – Ela lembrou. – Vamos provar que eles estão errados.

– Espera um pouco! – Minha voz tentava sair grave, mas parecia que eu tinha nove anos de idade. – Não vamos provar que ninguém está errado, ok?! Jenny, nós não precisamos adiantar as coisas.

Ela se virou para mim. Seus olhos estavam tão magoados quanto antes.

– Então vamos fazer o quê? Esperar? – Sua voz estava rouca. – Esperar como esperamos para saber a verdade? Esperar para saber que temos poderes que podem quebrar ginásios? Esperar para saber que, na verdade, seu pai está morto e não viajando?!

Percebi que ela estava prestes a chorar. Eu não queria isso.

– Tudo bem, Jennyfer. – Coloquei a mão em seu ombro. – Tudo bem. Vamos... Vamos fazer isso. – O semblante dela foi ficando mais leve, e eu decidi que ia mesmo fazer aquilo. Por ela. – Qual é o plano?

Ela sorriu. Estava quase me arrependendo de fazer parte daquilo.

– Existe um lugar. – Ela disse. Sua voz ainda estava rouca, mas ela parecia bem. – A antiga mansão dos Rosswood.

Assenti.

Meu pai havia me falado sobre esse lugar. Era a casa dos colonizadores que fundaram a cidade. Originalmente, Weston era uma clareira gigante. Os colonizadores fizeram um centro administrativo no centro dela, o que se tornou a prefeitura depois de alguns anos, e fizeram uma mansão na beira da clareira, pensando que a área a redor da mansão se tornaria o bairro para pessoas ricas da cidade. Ninguém sabia exatamente o porquê, mas os donos da mansão se mudaram de lá depois de uma semana. Os Rosswood se mudaram para o centro da cidade, onde se tornaram a família mais rica de Weston, mas nunca voltaram para a mansão ou fizeram menção de destruí-la; a moradia acabou se tornando um viveiro de animais selvagens.

– Sim, ok. – Agora que estava tão ligado ao mundo sobrenatural, percebi quão estranha a história da mansão era. – E daí?

– E daí – Jenny explicou – que existe uma razão para os Rosswood terem se mudado. A casa ficava muito perto da floresta. A floresta é o lar de todas as criaturas caóticas... Sobrenaturais ou não. – Ela fez uma pausa, como se nem ela mesma entendesse como fora capaz de formar aquela frase. – A casa estava no território dos monstros. Os monstros tentaram ocupá-la. Afugentaram a família que morava dentro dela...

– E vivem lá até hoje – completei. Fazia sentido, exceto por uma coisa: – Os caçadores já não mataram o que quer que estivesse lá?

Ela apontou uma linha verde que eu não tinha percebido nos mapas, que rodeava a cidade inteira em seus mínimos contornos. A mansão estava fora deles.

– A floresta é o território deles. – Jenny recitou. – Desde que não façam mal a ninguém lá, não serão incomodados. E nada anormal aconteceu naquela área, exceto uma visão que um carregador teve quando foi retirar os móveis da casa. – Ela mostrou uma matéria de jornal pendurada junto com os mapas.

Ela tinha estudado mesmo. E era um bom plano, se com “bom” ela queria dizer “ir lutar com alguma coisa que nem sabemos o que é e que tem mais de trezentos anos”. Eu poderia ter voltado com minha palavra naquele momento, mas Jenny não poderia ir sozinha. E eu sabia que ela iria. Além do mais, tentei me tranqüilizar, a casa pode simplesmente estar vazia depois de tanto tempo. E ainda estava de dia.

O que poderia dar errado?

– Certo, tudo bem – Sorri para ela. – Bom plano, Jenny. E... Como vamos chegar num lugar a três quilômetros de distância antes de anoitecer?

Eram três da tarde. Era uma pergunta extremamente válida.

– Eu cuido disso, sim? – O sorriso travesso dela era antítese de alguém que poderia cuidar de alguma coisa. – Então... Você vai pegar seu arco ou vai atirar flechas como facas?

Percebi o detalhe.

– Ei, eu não sabia que você ia...

– Tá, ok. – Ela me cortou. – Vá buscá-lo enquanto eu arrumo nosso transporte.

Corri para casa, ainda não acreditando no que estava fazendo. Que loucura. Era tão... Excitante. Desconcertantemente prazeroso. E eu estava amando aquilo tudo. Fazer algo que eu estava sugestivamente impedido de fazer, sem que meu pai nem suspeitasse – eu me sentia o próprio Denis, o Pimentinha. Sim, eu estava histérico.

O arco não estava no porão. Estranho. Procurei-o por toda a casa, e só o encontrei sobre minha cômoda, lugar onde ele não estava quando eu acordara aquela manhã. Meu pai o havia colocado lá. Pensar nele, no pai atencioso que eu tinha e amava, me fez hesitar. E se ele ficasse tão irritado como quando teve de me contar a verdade? E se ele nunca me perdoasse?

E se ele nunca contasse nada para você por falta de confiança de novo?, uma voz insistente perguntou em minha cabeça. Era verdade. Ele não tinha confiado em mim. Eu teria de fazê-lo confiar... Do modo mais difícil.

Peguei o arco. Quando o fiz, o ruído de uma queda metálica chegou em meus ouvidos. Eu havia quebrado o arco? Não, ele estava inteiro. Então notei um lampejo prateado no chão. Agachei-me. Era o pingente que meu pai havia me dado. Eu não sabia onde ele estava desde quando toda aquela loucura tinha começado. Meu pai havia achado... E trazido para mim junto com o arco. Olhando novamente para a cômoda, percebi um bilhete dobrado para poder ficar em pé por si só. Na letra curvada para a direita de meu pai, percebi uma mensagem:

Pratique mais”

Coloquei o pingente no pescoço, e prometi a mim mesmo que jamais o tiraria novamente. Percebi que era o símbolo de meu clã. Uma flecha em pleno vôo. Provavelmente, tinha sido usado por milhares de Hyles diferentes. Eu carregava todo aquele legado, e seria o responsável por passá-lo a diante. Pode deixar, pai. Eu vou praticar.     

Segurei o arco com mais força. Este seria o meu treino real. Meu teste. Eu provaria ao meu pai que era capaz.

Algo gemeu embaixo da minha cama. Quase pulei de susto, mas aí me lembrei do que havia acontecido durante a manhã, enquanto me preparava para a escola. Rigle estava lá, ganindo como se estivesse em depressão, mastigando um brinquedinho de borracha. Seu olhar era triste, e ele evitava olhar nos meus olhos. Quem diria que cães podem se sentir deprimidos?

– Ei, garotão. – Tentei afagar o pelo amarelado dele, e me perguntei de o dono do cão também deveria lavá-lo. – Eu já disse, está tudo bem. Não se sinta triste por ter tentando me salvar.

Rigle gemeu. Ele parecia indisposto. Me senti mal por isso.

– Ei,que tal sairmos para passear? – A ideia veio assim que falei. Ele fazia isso da vida, não era? – Nós dois e a Jenny?

Ele levantou as orelhas. Então saiu de debaixo da cama. Ainda parecia indisposto, mas eu acho que ele havia encarado como uma ordem. Descemos as escadas juntos, e eu comecei a ouvir um som muito familiar do lado de fora. Um motor ruidoso e debilitado. Eu sabia que era o Camaro velho de Megan antes mesmo de abrir a porta.

E lá estava ele, do outro lado da rua, o motor roncando como se fosse poeira, e não óleo, que o fizesse funcionar. Mas o que mais me chamou a atenção foi a motorista acenando freneticamente para mim pela janela do carona.

Ela não fez isso, disse para mim mesmo enquanto atravessava a rua. Mas a questão é que ela tinha mesmo feito aquilo. Jenny, a garota com um ano a menos do que a idade permitida para dirigir, estava sentada no banco do motorista, com um palito de dentes pendendo nos lábios e um sorriso psicopata no rosto. Já seria muito assustador se ela não estivesse ouvindo rock no volume máximo do rádio e batucando os dedos no volante como se a situação toda – a mansão assombrada, ela estar dirigindo, os monstros – estivesse sob controle.

Tentei falar com ela, mas o vidro estava levantado e o rock pulsava pela lataria. Que banda era aquela? Ignorei a pergunta inconveniente e tentei abrir a porta, mas a maçaneta estava emperrada. Bati no vidro, e Jenny finalmente abriu a porta para mim. O som dentro do carro me fez recuar um passo. Estava muito alto.

– Você é louca?! – Gritei. Eu tinha certeza que meus tímpanos nunca seriam os mesmo depois disso.

Jenny baixou o volume, mas, mesmo quando eu poderia ouvi-la, ela gritou a plenos pulmões:

– O QUÊ?!

Meu Deus.

– Ah, o carro? – Jenny ainda falava alto. Me perguntei se um caçador poderia se regenerar de algo assim – Não vai ter problema! Eu tenho licença de aprendiz!

Ah, que tranqüilizante. Rolei os olhos.

– Vamos andando. – Falei, alto o suficiente para ela me ouvir. E discordar automaticamente. – De bicicleta, então?

Ela balançou a cabeça. Por muito mais tempo do que deveria.

– Minha bicicleta está quebrada. – Ela explicou. Com um arrepio, percebi que ela estava fingindo o tempo todo. Então ela sorriu de um jeito muito assustador, e eu me percebi que poderia ter errado minha conclusão anterior. – A não ser que... Eu sente no seu colo.

Senti meu rosto esquentando. Demorei uns bons vinte segundos para entender que ela estava brincando. Sorri de volta, completamente humilhado. Jenny apenas sinalizou o banco do carona.

– É nosso único meio de transporte, Sr. QI. – Ela insistiu. – E, numa fuga desesperada por nossas vidas, uma bicicleta não seria muito útil.

Odiei aquela suposição. Aquele carro demorava uns dez minutos para pegar, num dia bom. E com Jenny dirigindo... Bem, ela sabia dirigir desde os doze anos. Aprendera sozinha. Mas, até onde eu saiba, vários dos amassos na lataria eram culpa de Jenny.

– O que sua mãe vai dizer?

Ela deu de ombros.

– Se matarmos alguma coisa legal, talvez ela até me dê o carro. – Ponderou. – Quer dizer, ela nem usa. Vive indo a pé para quase todos os lugares depois da escola. Ela deve estar com seu pai, matando alguma coisa da qual não temos permissão para saber.

Eu a encarei. Estava gostando cada vez menos da ideia.

– Relaxa – Ela tentou usar um tom são. – Não vamos ficar encrencados por causa disso se os resultados forem bons.

Ela tinha razão. Ou eu tinha esquecido a minha em algum lugar.

– Explica isso para o policial. – Falei, enquanto levantava o banco para Rigle se sentar nos fundos.

Jenny ficou tensa. E não era sobre a menção de polícia. Nem eu teria medo de encontrar com eles se estivesse roubando um banco. Era Rigle.

– Ele tem de ir mesmo? – Perguntou.

– Ele vai ser útil. – Sentei-me no banco do carona e sussurrei no ouvido dela: – Ele está meio depressivo depois de ser derrotado ontem.

Jenny olhou para trás. Ver aquela máquina de matar triste era mesmo avassalador. Então ela olhou para mim.

– Tá vendo? Até ele precisa disso.

– Tudo bem, tudo bem! – Ergui minhas mãos em sinal de rendição. – Precisamos disso!

Jenny riu, e algo azul aterrissou ao seu lado. Como era mesmo o nome dele? Balofão? Bicudo?

– Beliscão! – Jenny acariciou o animal, que se aninhou no topo do banco do carro e começou a bicar a cabeça dela de leve. O bico do falcão estava completamente sujo de sangue. – Agora que você está alimentado, que tal uma aventura de sobremesa?

A ave enorme piou, alegre. Era um animal realmente bonito. As garras negras brilhavam, lustrosas e mortais. As asas dele eram majestosas. E seu olhar era... Assassino? O falcão piou para mim ameaçadoramente. Rigle rosnou baixo.

– Tudo bem, somos todos amigos aqui – Jenny gritou. – Não é?

– Sim, claro. – Falei, então senti algo.

Como uma voz na minha cabeça, completamente diferente da minha. Era quase como se dissesse... “Se você quiser, a gente come frango assado hoje mesmo”. Com uma certeza assustadora, percebi que era a voz de Rigle. Estávamos conectados. Mentalmente.

Demais.

– Não, Rigle, tudo bem. – Falei. E percebi, em minha mente, que o animal tinha captado a mensagem. – Bom garoto.

Jenny olhou de mim para Rigle, sem decidir que a impressionava mais. Rigle apenas sentou-se em seu lugar voltou a ter o olhar triste. “Deixa de manha” falei para ele, em minha mente. Não houve resposta, mas eu ainda sentia a mente dele ali, em algum lugar. Tinha tomado um gelo mental. Que divertido.

Beliscão piou, mais tranqüilo, e Jennyfer aumentou o volume do rádio a tempo de ouvir a introdução de uma música que eu realmente não sabia qual era. Mas ela sim, e começou a cantarolar. Eu tinha certeza que ela tinha parado com esse lance de rock de velho quando entrara para as lideres de torcida, mas, pelo visto, era apenas para não parecer estranha naquele grupo. Que estranho.

Eu não tinha nada contra aquelas – eu acho que posso defini-las como – músicas. Mas, sério, entre essas barulheiras sem sentido e um bom e velho indie... Eu tentei achar uma rádio que passava ótimas músicas do gênero, mas o falcão me paralisou com um pio.

– Nem pense nisso – Disse Jenny, antes de gritar, junto com a música – Cherry Bomb!

Com esse nada convencional grito de guerra, Jenny engatou a segunda, e o carro arrancou rumo a nossa aventura.

***

Esqueça cobras de sombras e ghouls. Meu mais novo trauma era aquela viagem.

Eram apenas três quilômetros. Tínhamos tudo para ter uma viagem tranqüila com nossos adoráveis animais de estimação. Mas Jenny simplesmente não sabia se acompanhava o especial do AC/DC na rádio ou se desviava das pessoas e postes. Ela costurava pelas ruas como uma louca, gritando ofensas para outros motoristas assustados. Seus olhos estavam selvagens, e ter toda aquela cena banhada pelo rock da vanguarda era simplesmente aterrorizante.

Acho que nunca mais consegui ouvir “Highway To Hell” sem imaginar estar mesmo numa estrada para o inferno depois disso.

Meus pés pressionavam o tapete do carro, como se pisassem num freio imaginário. Rigle apenas olhava pela janela casualmente, enquanto me chamava de medroso por telepatia, enquanto Beliscão se agarrava ao banco, deixando evidente que queria poder voar ao invés disso. Muito mais seguro.

Finalmente, chegamos a uma estrada secundária de terra que foi capaz de parar nossa motorista louca. Beliscão, assim que percebeu a situação, saiu voando pela janela. Jenny ficou um pouco desnorteada pela atitude do falcão, mas então enrijeceu. Seus olhos se arregalaram. Então, ela voltou ao normal, mantendo o carro em seu curso.

– O que foi? – Perguntei, quase pronto para pular pela janela ao menor sinal de loucura.

– Beliscão está... – Ela virou à direita, numa estrada que eu quase não tinha percebido. – Me passando as coordenadas. Dando uma olhada por aí. O perímetro está limpo, exceto...

Paramos na frente de uma enorme mansão. Era enorme mesmo, e só o jardim depois dos portões cobertos de líquen era do tamanho da minha casa. Logo após o jardim que mais parecia uma selva, com árvores grandes e uma neblina densa escorregava pelo chão como areia no deserto, havia uma escadaria de mármore e um par enorme de portas duplas. A frente da casa poderia ter sido linda em sua cor branca e acabamentos em azul, mas agora estava levemente assustadora com sua pintura amarela descascada e seu acabamento em um verde aguado que parecia doentio. Havia várias janelas, e a porta era coberta por uma varanda que possivelmente contornava a casa toda.

Ali, tudo parecia de um cinza escuro e sinistro. Mais selvagem. Mais desolador. Meu alarme de monstros começou a coçar em minha nuca. Droga. Agarrei meu arco com mais força enquanto descia do carro. Rigle ficou do meu lado, e eu pensei ter ouvido um “Vamos morrer” em sua mente. Ou talvez “Vamos comer”. É. Ele só queria comer. Sem pânico. Ele não era um cachorro imortal que estava com medo de morrer.

Beliscão pousou no portão, piando para Jenny, que estava do meu lado. Para um falcão que estava com medo durante a viagem, ele parecia extremamente destemido. Assim como Jenny. Ela puxou suas adagas do cinto, mostrando as lâminas cruelmente afiadas. Senti que poderiam partir um fio de cabelo ao meio. Na vertical.

Jenny sorriu para mim.

– Pronto para isso, Sr. QI? – Ela perguntou animadamente.

Aspirei o ar grudento da floresta, tentando não encarar a mansão em minha frente.

– Claro, Srta. Aventura.              


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Notas finais do capítulo

E aí, que acharam? Quero reviews U.U



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