Quando A Caça Vira O Caçador escrita por Padalecki, Samuel Sobral


Capítulo 13
Doze - Mason


Notas iniciais do capítulo

Então, desculpem a demora, mas estou cheio de projetos paralelos e tal, então os capítulos vão demorar bagarai esses dias. Mais do que o ocasional, sim. Eu sei que o capítulo está enorme, mas é pela quantidade de informações úteis. Enjoy!



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Sabe, antes da Jenny e da cobra gigante feita de sombras, minha noite estava indo muito bem.

Depois de dobrar meu consciente para acreditar naquela loucura toda, tudo ficou muito mais fácil: acreditar que minha família caçava monstros, que eu fazia parte de um clã super legal com super poderes, que meu pai não era apenas um guarda-florestal – pelo menos não um simples guarda-florestal. Quer dizer, quantos deles você conhece que usam arco e flecha ao invés de rifles com tranqüilizante e matam monstros ao invés de prender traficantes de animais?

Eu deveria ter surtado com aquilo tudo. Surtado muito mais do que deveria. Mas... Meu pai estava fazendo parte daquilo. Não podia ser mentira. E eu estava cansado de parecer um frágil e assustado garotinho. Aquela era a realidade; nada poderia tirar isso da minha cabeça. Eu me sentia como quando fui confrontar Jenny no dia seguinte ao meu aniversário. Uma coragem que estava se alojando em meu subconsciente, me impulsionando quando...

Espera um pouco. Jenny?!

Minha mente viajou para a garota com o pulso ferido durante um ataque sem sentido. Ela estava bem? Estava ouvindo as mesmas coisas que eu? Será que ela estava surtando? Será que ela estava assustada, chorando?

Clunck

Meu pai estava fechando a porta – sem cadeados ou trancas, apenas puxando a maçaneta. Eu ainda queria estar lá embaixo, procurando por livros ou fazendo mais perguntas. Estava ponto de ponderar sobre o que e não poderia ver no porão – ou Quartel General de Batalha, fosse o que fosse – quando notei que estava escuro lá fora.

– Uau – soltei.

Meu pai sorriu, e de repente eu estava com meu pai, Robert Hyles, novamente. Não era mais o cara tenso e assustado de antes, ou o pai forçado que sempre estava escondendo alguma coisa de mais antes ainda. Aquele sorriso... Eu não o via fazia muito tempo. Muito tempo antes... Antes de nossa primeira conversa cobre minha mãe.

– É, eu sei. – Sua voz parecia ligeiramente emocionada, mas não a ponto de eu poder perguntar o porquê. – Coisas legais e tempo; não combinam.

– Verdade – Concordei, sorrindo de volta. – Você descobre que tem super poderes, e sua tarde já era.

Ele riu baixo, espontaneamente, e eu me senti satisfeito. Não era conhecido como Mason, o Comediante, então conseguir fazer alguém rir era motivo para comemoração.

Estávamos saindo do corredor, chegando na sala, quando eu ouvi algo – um som abafado, como se alguém estivesse saltitando pela casa com meias de algodão. Meu pai, à minha frente, se retesou, e sua farda de guarda-florestal pareceu pequena demais de repente. Antes que ele ou eu pudéssemos saber o que era, Rigle estava saltando sobre mim, um floco de neve gigante com garras e dentes.

O peso dele me forçou para baixo, e, antes que caísse completamente, uma língua áspera estava roçando minha bochecha. Fiquei estupefato por alguns segundos, até finalmente perceber que Rigle estava demonstrando afeto por mim. Acho que já mencionei isso, mas aquele cachorro estava fazendo muitas coisas estranhas ultimamente.

Assim que meu pai me ajudou a levantar, eu não me segurei:

– Rigle tem alguma coisa a ver com isso, não tem?

Meu pai ergueu uma sobrancelha, e eu quase recuei com a pergunta. Mas ele sorriu.

– Pensei que fosse óbvio – então ele se dirigiu à cozinha, casualmente.

A resposta me desconcertou. Eu me senti estúpido, indeciso e confuso, tudo ao mesmo tempo. Rigle tinha agido estranho – muito estranho – nos últimos dias, mas, considerando minhas outras preocupações... Eu não tinha parado para pensar nisso.  Olhei para o fundo dos olhos azul-celestes de Rigle, finalmente percebendo uma inteligência quase humana.

Fui para a cozinha, para perto de meu pai, onde a idéia de ter um cachorro sobrenatural não era assim tão absurda. Ele estava atrás do balcão, preparando o café de forma despreocupada, mas de alguma forma eu sabia que ele estava tentando evitar a pergunta que vinha a seguir. Mesmo que eu mal soubesse formulá-la.

Sentei numa das cadeiras da mesa, tamborilando os dedos na madeira.

– Então... – Minha voz saiu meio rouca, e isso quase me desencorajou. – O quanto Rigle tem a ver com isso?

Meu pai olhou para o teto, como se eu tivesse acabado de derrubar um vaso caro e ele não quisesse parecer tão bravo quanto estava.

– Tudo. – Essa seria a resposta definitiva, mas eu o olhei nos olhos, suplicante. Ele suspirou. – Ele é a mascote da nossa família.

Tentei decifrar aquela frase, transformá-la em algo mais consistente; mas a frase era tão vaga quanto poderia ser. Olhei mais uma vez para ele. Robert de repente parecia cansado. Ele se sentou ao meu lado, afastando sua xícara da café, como se tivesse perdido o apetite.

– Mason, é uma história longa. E você já deve estar cheio delas por hoje, não está? – Havia algo nos seus olhos, mas eu não consegui distinguir até perceber que meu pai estava estralando os dedos. Ele estava inquieto. Preocupado comigo.

Ele não queria me deixar mais confuso, ou tinha medo de me enlouquecer. Eu podia ver isso claramente. Aquilo seria motivo suficiente para esquecer esse assunto, mas... Eu não sabia se conseguiria dormir com um cachorro enorme daqueles sem saber o que ele era de verdade.

– Não. Eu gosto de histórias. – respondi.

Ele me encarou, analisando-me. Depois sorriu, e a tensão se desfez como névoa.

– Ok, Mason. Você venceu. – Ele se ajeitou na cadeira, e eu poderia jurar que ele estava prestes a acariciar Rigle, do jeito como ele fazia quando tinha que manter as mãos em movimento, mas ele mudou o curso da sua mão para a própria cabeça. Rigle ainda olhava para mim, e isso era desconfortável. – Sabe quando os caçadores se dividiram, e tudo o mais?

Assenti, tentando não olhar para Rigle.  

– Bem, isso os fez se especializar em modos de caça. Mas acabou deixando-os muito unilaterais, sem muitas outras opções além de seguir um plano. E se esse plano não funcionasse... Bum, já era. – Ele fez uma espécie de efeito sonoro com a boca, imitando uma explosão. Ele não estava tentando me fazer rir, mas eu acabei sorrindo do mesmo jeito. – Foi mais ou menos aí que as mascotes entraram. Eles... Compensam as habilidades que seus mestres não conseguem ter.

Finalmente olhei para Rigle, e ele pareceu mais ameaçador do que eu me lembrava.

– Então cada clã tem uma mascote? – perguntei, muito mais desconfortável com a presença do cachorro.

– Não, não – meu pai bebericou seu café, muito mais relaxado. – Cada família. Você aprende a diferença depois de um tempo. Clã – e aqui ele pareceu frisar a frase mais do que o necessário – é um grupo que compartilha os mesmo poderes e estilos de caça. Família é uma linhagem de caçadores de um mesmo clã. Sabe, pai pra filho, e tal.

– Então existem outros além de nós? Com as mesmas habilidades no arco?

A expressão de meu pai se tornou sombria.

– Não. Não mais. – E nessa hora eu soube que aquele era um assunto que ele definitivamente não iria falar sobre o assunto. – Mas – o tom de voz dele ficou mais suave – não se diz “outros de nós com habilidades com o arco”. Existe uma denominação para isso, e é Arrow. O nosso clã. Arcos, flechas... Você sabe.

Raciocinei melhor, tentando ignorar o fato de que meu pai estava escondendo alguma coisa grande.

– Então somos a família Hyles, do clã Arrow? – tentei não me sentir ridículo enquanto falava isso.

Meu pai assentiu. Então eu me lembrei de algo.

– E o que isso tem a ver com o Rigle?

Ele pareceu decepcionado.

– Droga. Você não poderia ser menos curioso, garoto? – Se ele não tivesse sorrido, eu teria me sentido mal. Meu pai tinha uma voz rude, e se ele não sorrisse enquanto fazia um pedido num restaurante, a garçonete iria pensar que ele era um grosso. – Bem, as famílias... Não sei bem como, mas elas escolheram suas mascotes, unindo-as com seu poder; a mascote estava ligada ao seu dono enquanto ele vivesse. Então, quando o poder era transmitido, a mascote ia junto.

A idéia era... Complicada. Acho que deixei isso transparecer, porque meu pai explicou melhor:

– Imagine que o poder é um fio em linha reta. Os donos do poder são as capas do fio, cada dono um trecho de uma cor diferente. Agora, me responda: a eletricidade continuaria seu caminho pelo fio, mesmo se a capa fosse diferente em vários trechos?

– Sim, é claro. – respondi, finalmente entendendo a coisa toda.

– Então, se você unisse a essência de um animal em particular ao poder, e ele se tornasse parte do poder...

– Ele seria transmitido junto – completei. Então olhei para Rigle. – Quantos anos você tem, garotão?

– Muitos – Meu pai respondeu.

– Então ele... – Engasguei. – Ele foi mesmo do meu avô?

– E do avô do avô dele. E do avô do avô do avô dele. Continue a linha até a o início da Idade Média, e você vai descobrir quantos anos ele tem. É que ninguém contou de verdade, sabe? – Ele pensou um pouco – Ele está comigo desde que eu tinha quinze anos, então são...  Trinta anos, se contar com o meu aniversário que vai acontecer mês que vem.

Senti minha boca abrir para contestar, mas não falei nada. Eu tinha visto um ghoul. De verdade. Nada deveria me surpreender, mesmo cachorros imortais.

– Então... Cada família tinha uma mascote diferente? – Perguntei, ainda tentando absorver a última informação. 

– Não exatamente. – Meu pai terminou seu café. – Algumas outras famílias também aderiram aos cães. Eles são bons para arqueiros, você sabe, abatendo as presas que não foram mortas completamente a flechadas. Mas algumas tentaram ser originais, usando outros animais ficados na força; leões, ursos... Mas eles não eram muito fáceis de manter ou esconder.

– Eles tinham de ser focados na força?

– Se você é um Arrow, sim. Sabe, nosso clã é focado nos sentidos, sobretudo a visão. Força física... Não é nosso forte. – Ele mais uma vez moveu a mão na direção de Rigle, mas não o tocou. – Nossas mascotes têm de compensar isso. Funciona assim em todos os clãs. 

– Ah – Foi a coisa mais inteligente que consegui dizer.

O silêncio englobou a cozinha, e aquilo foi, de certa forma, bom. Ganhei tempo para pensar naquilo tudo como numa realidade, e não como nos tópicos que eu colocaria numa redação sobre essa história toda. Consegui olhar para Rigle, mas ainda não conseguia afastar a sensação de que ele estava mais ameaçador. Eu quase podia imaginar uma aura de poder rodeando-o.

Depois de alguns minutos, o silêncio tornou-se desconfortável. Resolvi voltar à conversa.

– Então, pai, se eu quisesse... Trocar meu animal, como precisaria fazer?

Rigle rosnou baixinho, e eu finalmente percebi que ele também estava ouvindo e entendendo a conversa toda. A presença dele ficou mais intensa, como se ele fosse uma pessoa que eu não conhecesse sentada ao meu lado. Meu pai sorriu ao ver a reação de Rigle.

– Não seria... Possível. – Ele respondeu. – Nem um pouco.

– Então como...? – Apontei para Rigle, que olhava para mim de forma desdenhosa. Ele não parecia mais tão fofinho assim.

– Ah, não foi intencional. Pelo menos não com ele. – Então ele assumiu um tom sombrio. – O poder... Ele não é tão palpável assim. Não como se você pudesse lançar uma bola de fogo com ele, ou qualquer coisa desse tipo. Ele corre nas nossas veias, está em nós, mas não é fácil de controlar. É como controlar o fluxo de nosso sangue, na verdade.

Eu esperei durante a pausa dele em silêncio.

– Os primeiros de nós não sabiam que tinham um poder. Eles apenas usavam seus arcos e flechas, achando que eram muito sortudos ou muito bons para acertar tantos alvos assim. Então começamos a perceber... Que éramos especiais. – ele olhou para mim, mas não focou meus olhos. – O poder foi se moldando à necessidade de acertar os alvos, até chegar ao que você tem agora. Assim é com as mascotes.

O modo como Rigle olhou para meu pai, um jeito grave e afetuoso, me deixou confuso. Eles não pareciam querer se tocar, mas não pareciam estar odiando-se mutuamente.

– A história de Rigle foi contada para todos os Hyles, desde que ele fez parte da família. – Meu pai apertou a xícara entre as mãos. – Ele era de um arqueiro chamado Cameron Hyles, um inglês, um dos primeiros a perceber seu dom no nosso clã. – Rigle gemeu como se estivesse se lembrando de seu primeiro dono. – Cameron e Rigle eram como a Dupla Dinâmica. Eles se completavam. Eram invencíveis, até... Até ficarem orgulhosos demais. – Meu pai inesperadamente se virou para Rigle. – Desculpe, amigão.

Rigle pareceu assentir, e eu fiquei boquiaberto.

– Eles resolveram atacar uma alcatéia inteira de lobisomens. – Meu pai prosseguiu, enquanto eu ainda olhava para Rigle, estupefato. – Não deu certo. Eles até conseguiram acabar com a maioria, mas o Alfa... Ele não perderia tão fácil assim. O Alfa feriu Cameron gravemente, mas, antes de terminar o trabalho, Rigle se sacrificou para salvar seu dono. Ele ainda era só um Husky, então foi morto, mas não antes de vencer o Alfa. – Ele parou quando Rigle começou a ganir, como se quisesse acariciá-lo, mas não completou o movimento.

– Ele... – Olhei para Rigle, para o peito que se mexia, para o rabo que abanava avidamente. – Ele morreu?

– Sim – Meu pai respondeu, calmamente. – Mas salvou seu dono e derrotou o lobisomem mais poderoso da época. Foi um grande feito, considerando o tamanho e força limitada de Rigle. Ele foi tratado como um herói, e teve um funeral mais honrado do que muitos outros caçadores. Mas o seu dono, Cameron... Ele ficou horrível. Muito mau mesmo. Nunca mais caçou. Nunca mais saiu de casa. Ele chorou por uma semana até se entregar às preces. Ele orou fervorosamente, na esperança de que seu cachorro voltasse. Na mesma noite... Bum, Rilgle estava lá, mais saudável e forte do que nunca.

Olhei mais uma vez para Rigle, sem acreditar.

– Na época, atribuíram a volta de Rigle ao Criador. – Meu pai sorriu. – Ele deve ter tomado parte nisso mesmo, mas, depois de um tempo, alguns caçadores especularam se não teria sido o poder canalizado com a afeição do dono e a utilidade do cachorro para caçar que o fizeram ressuscitar. Isso fez com que outros caçadores criassem mais laços afetuosos com seus animais de estimação, e funcionou. As mascotes se ligaram sua existência ao poder de seus donos, e ao poder dos netos dos netos dos netos de seus donos. E assim foi, desde então.

Por um momento, eu fiquei imóvel. Então resolvi acreditar em cada palavra que meu pai me dissera, e então acariciei Rigle. Ele pareceu enrijecer, mas não demonstrou nada mais que isso. De repente, várias perguntas surgiram em minha mente, e eu fiz a menos confusa.

– Então, nós mantemos esse poder vivo... – Tentei soar mais casual do que me sentia com a situação. – Se um dono desse poder não tiver filhos para onde mandar esse poder, ele não pode morrer? – A pergunta acabou ficando muito mais confusa de que eu achei que seria, mas meu pai pareceu entender.

– Não somos imortais, Mason. – Meu pai respondeu, e foi como se ele estivesse se preparando para essa pergunta. – O poder é, mas nós somos apenas receptáculos. Ele passa de pai para filho porque é mais provável que o filho primogênito de um receptáculo seja um bom receptáculo, como seu pai. Podemos nos regenerar de qualquer ferimento desde que todos os órgãos estejam no lugar. Somos imunes à todo tipo de doença. Mas envelhecemos. E morremos. – Ele olhou para meus olhos, mas, de alguma forma, não era para mim que ele olhava. Ele parecia triste. – O poder continua vivo. Ele apenas muda seu corpo antes que o seu atual se torne fraco. Se um receptáculo não tem filhos... O poder se torna livre. Dissolve-se. Torna-se tão abstrato que não pode mais se concentrar numa forma. Não se pode recuperá-lo, e centenas de anos de caçada somem. É mais ou menos assim que uma família morre.

Deixei aquele discurso amadurecer em minha mente, para assimilar a idéia. Eu conseguira entender, de alguma forma. O poder apenas se concentrava no meu corpo. Não estava vivendo dentro de mim. E, de repente, a idéia não era tão ridícula assim. Olhei para minhas mãos, e elas não pareciam poderosas. Apenas magras.

De repente, Rigle rosnou. Meu pai ficou rígido. Senti uma presença, algo como uma brisa gélida escorregando pela minha nuca como uma cobra. Olhei para trás, não havia ninguém lá. Mas a sensação continuava. Havia alguma coisa errada, esmo que eu não soubesse o quê.

– O que foi? – Perguntei.

Meu pai demorou para focar em mim, como se não estivesse totalmente aqui. Seus olhos estavam assustados.

– Não. – Ele murmurou, e era como se ele não estivesse falando comigo. – Não, não, não.

Ele parecia assombrado enquanto ia até o telefone da cozinha e discava os números descontroladamente.

“Clein?”, ele disse ao telefone “Eu estou bem. E Mason também. É só que... Eu o senti. Aqui! É, ele. Não, não sei a que distância. A Transição está atrapalhando, mas eu posso senti-lo muito bem. Eu me lembraria da presença dele em qualquer lugar. Se prepare, vamos atrás dele. Não pode ser coisa boa senti-lo aqui, depois de tanto tempo. Ok, entendo. Vinte minutos. Já estou indo.”

Ele se virou para mim, ainda assombrado, seus olhos confusos. Ele parecia traumatizado, frágil.

– O que foi? – Repeti a pergunta.   

Seus olhos pareciam muito mais assustados do que eu pensava. Havia algo mais brutal neles. Medo. Algo que eu nunca havia visto de forma tão representativa nele até agora.

– Pai – eu disse, tentando não parecer tão nervoso – o que foi?

Ele não respondeu. Andou pelo corredor até a porta do sótão, sem parecer perceber que eu o estava seguindo de perto. Enquanto descíamos as escadas, ele finalmente se dirigiu a mim.

– Eu senti um monstro. – Sua voz parecia rouca, vacilante. Eu esperava que fosse pelos solavancos da escada. – Um muito poderoso, e que eu não via há muito tempo. Desde... Desde minha primeira caçada.

Fiz uma conta rápida, calculando trinta anos. Mas eu não estava ligando para isso.

– Você pode... Nós podemos... – Formulei a idéia melhor em minha mente antes de terminar. – Sentir monstros?

Chegamos ao fundo, enquanto eu ainda estava absorto na conversa. Uma conversa que não poderia estar sendo tão normal assim.

– Todos os caçadores podem. É como... – Ele foi até uma prateleira, sem nem ascender o interruptor. Eu não sabia como ele poderia achar alguma coisa naquele escuro. – Um radar. Qualquer coisa... – Ele tirou uma flecha e a colocou na luz. Era prateada. – Não, essa não. – Então voltou a procurar enquanto falava. – Qualquer coisa que não seja humana é percebida por nós. – Ele puxou uma flecha de ponta escarlate. – Achei.

Ele encheu a aljava de couro com várias dessas, e pendurou nas costas. Depois foi até a parede dos retratos, pegou seu arco e subiu a escada, sem parecer ligar se eu ficaria lá dentro ou não. Subi atrás dele, tentado não correr para manter seu ritmo. Quando chegamos ao corredor, ele finalmente se dirigiu diretamente a mim, com uma seriedade urgente:

– Mason, eu... – Ele suspirou. – Eu não sei se poderei voltar.

Aquilo me pegou de surpresa. Eu não consegui formular uma resposta.

– Esse monstro, ele é poderoso. Da última vez... – Ele piscou com força. – Eu quase morri. E eu estava acompanhado de vários outros caçadores. Agora, somos só a Megan e eu. Você... Você entendeu?

Ele parecia estar tentado soar mais calmo ou relaxado, tentando não fazer aquilo parecer grave. Eu me senti assustado de repente; aquele era o meu pai, me falando que poderia morrer naquela noite. Minhas mãos começaram a tremer.

– Você não precisar ir, precisa?  – Eu sabia que estava parecendo um bebê chorão, mas não ligava. – Quer dizer, temos policiais por aqui! Eles poderiam resolver o problema caso esse monstro ataque. E ele nem fez isso, então...

Meu pai me silenciou com um olhar terno e ao mesmo tempo triste.

– Eles nunca seriam capazes, Mason. – Meu pai voltara a olhar para algo dentro dos meus olhos. – E é meu dever. Não importa se o monstro atacou ou não. Ele está na cidade. Isso já é suficientemente perigoso. – Ele balançou a cabeça, como se não conseguisse acreditar na situação. – Se... Se as coisas derem errado, seja forte, está bem?

– Me promete que as coisas não vão dar errado? – Eu estava chorando.

O rosto de meu pai de repente ficou duro.

– Você entendeu? – Ele perguntou, sua voz tremendo.

Eu não respondi. Ele se afastou pelo corredor, em silêncio. Eu me sentia irritado, confuso e desesperado. Aquela situação era ridícula. Eu mal havia assimilado tudo aquilo, aquela realidade... E ela estava prestes a matar meu pai? Eu queria gritar, me beliscar e acordar daquele coma de terror.

Só que era real.

Eu sabia disso. Eu sentia isso. Aquele poder de quem eu havia falado com meu pai... Ele estava em mim. Sem aquele pânico que eu sentia naquele momento, eu podia praticamente sentir ele em minha mente, nas minhas veias... Como ter uma armadura por dentro; você se sente diferente, mas de um modo que parece quase sua imaginação lhe pregando peças.

E eu odiava isso. Eu queria esquecer aquela história toda. Ou ao menos ignorá-la, como havia feito com a morte de minha mãe. Se eu acreditasse que não havia nada de errado...

Outro pensamento me acometeu.

Meu pai nunca havia mencionado seu outro trabalho para mim. Ele havia adiado esse momento até não poder mais. Durante quinze anos... Eu havia corrido o risco de não ver meu pai nunca mais. E não saber o porquê, nunca. Eu finalmente entendi a atitude de meu pai. Ele estava me preparando. Ele finalmente podia me preparar. Ele finalmente iria para uma caçada de consciência tranqüila.

Respirei fundo, me sentindo melhor. Rigle estava lambendo meus dedos, e sua saliva era estranhamente quente, mesmo quando ele parava de lamber. Aquilo também ajudava, mas de uma forma mística que apenas os cachorros sobrenaturais poderiam fazer. Eu ainda estava com medo de perder meu pai. Mas aquela não era a primeira vez dele. Ele voltaria

“Se meus estúpidos poderes podem fazer cachorros ressuscitarem”, falei para mim mesmo, “Eles podem trazer meu pai de volta”.

Repetindo aquilo internamente, fui para a sala. Meu pai estava lá, trajando roupas nada parecidas com as habituais, e que decididamente não era a farda do trabalho. Com aquelas roupas, seus olhos pareciam mais brilhantes do o normal, sua pele parecia mais clara... Ele me lembrava um ator de filmes góticos de ação, e conseguia não ser ridículo.

Ele se dirigiu a porta, mas hesitou. Rigle não se moveu para ir com ele.

– Ah, é claro. – Meu pai disse. – Você tem um novo mestre. Adeus, amigão. – Então ele olhou nos meus olhos, para o Mason de dentro. – Eu amo você, filho.

Então ele fechou a porta, me deixando sozinho com um cachorro imortal.

Não sei bem o que me motivou a jogar Zelda: Ocarina Of Time naquele momento.

Meu pai estava lá fora, com a morte aos calcanhares. Um monstro capaz de assustar meu pai estava à solta. Eu descobrira que tinha super poderes, e que meu cachorro também. Mas, como se aquilo não fosse nada, eu estava lá, jogando como um viciado. Coisa que eu decididamente era.

Talvez eu não tivesse absorvido a idéia tanto assim. Ou talvez eu estivesse agitado demais para ficar parado na janela, esperando meu pai voltar. Rigle estava sentado ao meu lado, respirando muito silenciosamente para um cachorro. Eu ainda não me sentia confortável perto dele, e era evidente que ele não me via como “seu mestre”. Mas ele gostara do queijo-quente que eu havia feito para ele, de qualquer forma.

Eu estava dividido entre jogar e me perguntar porque diabos um Husky Siberiano comeria queijo-quente ao invés de carne, quando vi os pêlos de Rigle se eriçando, como se ele tivesse tomado um choque elétrico. Rigle pulou do sofá e rosnou alto para a porta. Eu ainda estava pausando o jogo quando batidas fortes emanaram da porta, e Rigle rosnou com urgência.

Me aproximei da porta, mas, mesmo se não o tivesse feito, conseguiria ouvir os gritos estridentes do outro lado, chamando o meu nome. Foi uma atitude meio imatura, agora que parei para pensar, mas abri a porta. Jenny caiu – literalmente – aos meus pés. Ela parecia em pânico, delirando.

Olhei para fora. Não havia nada ali, nada para alguém como a Jenny fugir. A não ser... Os dois olhos amarelos flutuantes, que pareciam pertencer à própria escuridão. Quanto mais os olhos se aproximavam, mais eles pareciam estar tomando forma, uma forma esguia e...

Jenny fechou a porta com força. Eu pensei ter ouvido a madeira rachar quando ela fez isso.

– Estamos em perigo. – Ela disse. – Aquela coisa... Ela está atrás de mim.

– O quê?

– Uma cobra gigante, e aí Beliscão... Ah, Beliscão! – Ela olhou pela janela, mas não havia nada para ver. Nem os olhos amarelos flutuantes. Que provavelmente eu tinha imaginado. – Temos que salvá-lo, e...

Eu estava olhando para ela, e isso a fez se calar.

– Jenny, você está bem? – Perguntei, cauteloso. Se ela estivesse, me bateria por chamá-la de louca.

– Não, Mason, não! – Seus olhos estavam confusos. – Temos que voltar para salvá-lo! Aquela cobra vai matá-lo, e...

– Jennyfer! – Gritei, segurando os braços dela. Aquela situação era simplesmente louca demais para meu cérebro processar. – Se acalme, ok? Ninguém vai matar ninguém. Ninguém está em perigo, e não vamos...

Parei. Meu pai estava em perigo. E a mãe de Jenny. E talvez ela tivesse ficado confusa demais com isso. Tinha sido difícil para mim aceitar. Será que tinha sido demais para ela?

– Vai ficar tudo bem, Jenny. – Falei, por fim. – Calma.

Por um momento, ela ficou olhando para mim. Seus olhos estavam confusos, mas de um jeito mais sóbrio. Ela moveu os lábios, mas não disse nada. Era quase como se ela não pudesse acreditar em mim. Rigle soltou um rosnado de fazer os ossos tremerem, e eu olhei para ele. O animal olhava em todas as direções, procurando algo, e eu de repente tive a sensação fria na nuca. Com uma certeza sólida, eu percebi que havia um monstro por perto. Bem perto.

Me virei a tempo de ver uma sombra enorme deslizando da cozinha para a sala. Eu quase olhei para cima, para saber o que poderia estar causando aquela sombra. Mas então percebi que aquela sombra... Aquela maldita sombra era tridimensional.

Rigle saltou sobre ela, enquanto eu ainda estava absorvendo o que via. A sombra se levantou como um chicote, e acertou o Husky como um taco de beisebol. Rigle Acertou a parede com a cabeça e... Eu poderia jurar que cachorros sobrenaturais não ficavam inconscientes, mas foi isso que aconteceu. E, como se a cena toda já não fosse perturbadora, a sombra abriu os olhos.

Hum, ok. Eu já tinha visto coisas estranhas ultimamente. Ghouls, garotos-lobos, super audição. Mas aquilo... Não era possível. Aquilo era uma sombra. Com olhos amarelos e vazios. Com o formato da Anaconda. E um sorriso seco e psicopata.

Soltei um som que deixaria meu gênero discutível, e esperei que Jenny não estivesse prestando a atenção em mim. A cobra se arrastou, sem fazer som sobre a madeira. Ela não mostrava a língua como as outras cobras faziam, e eu percebi que era porque ela não era cega. O sorriso dela pareceu muito mais humano naquele momento.   

O que não foi a coisa mais tranqüilizante para se constatar quando ela estava a um bote de distância.

Eu estava paralisado. Meu cérebro ainda tentava entender aquilo. Tentava fazer aquela cena parecer... Lógica. Se não fosse por Jenny, eu teria morrido. Ela me puxou para o lado meio segundo antes de a cobra afundar no local onde eu estava, deixando uma cratera no piso encerado. Ela me puxou para trás a tempo de evitar o segundo ataque, e eu finalmente percebi a situação. Eu precisava agir. Impedi minhas pernas de derreterem, enquanto meu cérebro procurava uma saída, e puxei Jenny para trás, pelo corredor.

Alguma coisa me disse que a cobra ainda estava nos seguindo, mas eu não iria olhar para trás para descobrir. Abri a porta para Jenny entrar, e entrei ao mesmo tempo. Fechamos a porta com as costas, e sentimos um impacto como o de uma marreta contra a madeira. Estávamos cercados.

Foram os degraus abaixo de mim que me avisaram que eu estava no porão. Acendi o interruptor ao lado, e iluminei a escada e algumas prateleiras abaixo. Uma faísca de esperança acendeu dentro de mim, mesmo que sufocada pelas batidas do outro lado da porta. Havia alguma coisa lá embaixo que poderia matar aquela coisa.

Jenny seguiu o meu olhar.

– Que lugar é esse? – Sua voz estava tremida. Talvez de medo, talvez por causa das batidas.

– O quartel general do meu clã. – Respondi, meio perdido em possibilidades. Então percebi o que havia dito. – Quer dizer, aqui é...

– Eu saquei, Mason. – Ela disse, com um esboço de sorriso apagado pelas batidas na porta. – Eu sei sobre essa coisa toda. Então... – Ela pausou quando uma batida fez as dobradiças tremerem. – Você tem algum plano?

Ela estava perguntando se eu tinha um plano. Eu demorei um tempo para finalmente entender aquilo. Ela estava esperando uma saída de mim. Claro, sem pressão.

– Tem alguma coisa lá – Acenei com a cabeça para baixo. – que talvez possa nos ajudar.

– Então vá buscar. – Ela disse, prática, enquanto a porta levava mais uma pancada que tirou poeira do batente. – E rápido.

– Mas... E você? – Eu não queria ser o garoto ia pegar ajuda. Nos filmes, esse papel era da garota.

– Sou uma menina forte. – Havia sarcasmo na voz dela? – Agora, vai!

Ela se virou e empurrou os braços contra a porta, que não cedeu quando parei de segurar. Ela estava suando, a pele dourada e brilhante enquanto segurava porta com uma expressão exausta no rosto. Ela estava linda. Então ela gemeu o que poderia ser um palavrão quando veio a próxima batida, e eu me lembrei que estávamos lutando por nossas vidas.

Desci as escadas, quase caindo no chão quando pulei do quinto degrau. Liguei o interruptor enquanto passei por ele, e só tive certeza de que tinha mesmo feito isso quando as luzes florescentes ligaram, uma atrás da outra. Por um momento, eu percebi que ainda não tinha explorado aquele lugar enorme. Então veio outra batida, e o som cortante de madeira rachando.

Passei os dedos pelas prateleiras, cada uma divida em cubículos. Havia várias flechas deitadas neles, e eu demorei um pouco para perceber que todas as de um cubículo eram do mesmo tipo. Outra batida. Passei por todos os cubículos, mas a maioria das pontas das flechas parecia meio sólida demais. Havia uma azul-celeste dentada, outra verde com a porta arredondada. Havia etiquetas nos cubículos, cada uma menos acreditável que a outra:”Mata-Trolls”, ou “Brisa do inferno”. Eu estava quase me perguntando o que essa última fazia quando outra batida, acompanhada de um som forte e de um gemido de Jenny, me fez olhar para cima.

A porta tinha sido desgrudada do umbral, e era possível ver a escuridão em forma de cobra do outro lado, forçando a entrada. Do lado de dentro, Jenny empurrava a porta no rosto uma expressão exaurida. Mesmo assim, ela conseguiu, com um gemido entre dentes, empurrar a porta até o seu local de origem, e a manteve assim, mesmo que ela não estivesse presa. A porta estava rachando, e isso era o indício de que a força aplicada sobre ela era sobrenatural. De ambos os lados.

Antes que meu cérebro tentasse processar isso, meus dedos voaram pelas prateleiras. Deveria haver alguma coisa capaz de matar aquilo por ali. Eu percebi que estava rezando enquanto procurava, mas não me impedi. O lance de cético tinha ido por água a baixo há uma semana.

Por fim, na prateleira mais baixa, havia um conjunto de flechas... Estranhas. A ponta era prateada, longa demais e redonda demais. O corpo da flecha, que geralmente era de madeira, era completamente escuro, e era de um material que lembrava vidro. Eu podia ver, graças a esse material transparente, o ponto que separava a ponta do corpo da flecha, e havia um espaço vazio entre eles. Aquela flecha era simplesmente sem sentido.

Jenny soltou outro gemido, então a porta se esmigalhou. A garota caiu por toda a escada, mas se levantou se parecer muito ferida, apenas exausta. A cobra se arrastou para dentro, o sorriso parecendo ligeiramente afetado. Seus olhos dourados estavam no corpo de Jenny, que parecia estar perdendo a consciência.

“Não vou deixar aquela cobra jantar hoje”, disse para mim mesmo. “Não vou”.

Não havia arcos. Pelo menos, não que funcionassem. A cobra estava perigosamente próxima de Jenny, analisando-a com um gingado mole no pescoço – se é que aquilo ainda era o pescoço dela. Eu estava à distância de um arremesso de faca. Não me pergunte como, mas eu sabia. A flecha que eu tinha na mão poderia ser arremessada como uma faca. Eu só precisava achar o centro simétrico do peso...

A cobra sibilou e abriu a boca, revelando uma fileira de dentes como os de um tubarão, que não seriam menos perigosos pelo fato de não serem venenosos.

E depois, segurar pelo ponto mais leve...

A cobra se preparou para o bote, e Jenny estava desmaiada.

Preparar o ângulo do braço e... Jogar.

Enquanto a flecha deixava minhas mãos, eu só tive tempo de ler “Flechas Explosivas” na etiqueta do cubículo de onde eu peguei as flechas, e o formato da flecha fez sentido para mim ao mesmo tempo em que flecha entrou em contato com a cobra. Ops.

A explosão sacudiu o lugar todo. Eu podia sentir o ar se comprimindo no meu peito, então não foi uma surpresa quando eu voei alguns metros para trás. Eu só tive um pensamento: Jenny. Ela estava próxima demais da cobra. A explosão... Poderia ter sido fatal.

Aterrissei não muito delicadamente no chão, e fora uma péssima hora para perceber que ele era de pedra bruta. Meu quadril parecia ter se esmigalhado, mas me forcei a levantar. Jenny estava à minha frente, não parecendo muito ferida. Ela soltou um gemido, e eu soube que ela estava bem. O lugar estava com uma névoa grossa de poeira, e eu me perguntei a quanto tempo meu pai não lavava aquilo.

– Mason – Jenny disse, sem abrir os olhos. – O que diabos você fez?

Ela sorriu, como se estivesse tendo um sonho bom. Sorri de volta, apoiando-me em meus joelhos. Fora minha segunda situação de quase-morte em três dias. Meu timming estava ficando bom. Agora que eu havia parado para pensar no assunto, eu poderia estar morto naquele momento. Poderia não poder estar contando isso tudo para você, agora. A ficha caiu, e eu senti a vertigem me dominando.

Eu iria ser o jantar de uma cobra.

Por um momento, um desmaio seria uma idéia aceitável. Mas então o som alto de madeira rangendo encheu o ambiente, outrora silencioso. Me virei a tempo de ver uma prateleira que havia caído graças à explosão se levantar sozinha. Não, não sozinha.

Meu coração parou, e eu senti o sangue se esvaindo do meu rosto. A cobra estava se recuperando. Sua forma parecia tremular, mas estava se agrupando novamente. Seus contornos ficaram definidos. Ela sibilou para mim, e Jenny abriu os olhos para ver o bote sendo preparado para o meu peito. Eu estava travado de medo. 

Então algo passou pela cobra – algo prateado, como um lampejo de luar –, e ela se virou para onde ele tinha vindo com um sibilo indignado, enquanto o local atingido se dissolvia. Outro lampejo veio, mas a cobra foi mais rápida e conseguiu desviar dele. Quando o terceiro foi lançado, eu consegui vê-lo: uma flecha prateada. Meu pai.

A cobra avançou na direção de meu pai, que estava na névoa de poeira ainda estava densa, mas algo o interceptou. Não, alguém.

Sabe, eu pensei que imaginar meu pai lutando contra monstros era a coisa mais estranha que eu poderia presenciar. Mas ver a vizinha que me preparava muffins de chocolate deliciosos nos sábados lutando contra uma cobra de sombras conseguiu ser mais estranho.

Megan estava segurando duas adagas prateadas, grossas e longas demais para serem arremessadas. Ela não estava pensando em lutar contra uma cobra no corpo a corpo estava?

Sim, ela estava.

Com golpes precisos, ela acertou a cobra no tronco largo, deixando uma ferida a dissolver. A cobra arriscou um golpe, mas Megan foi rápida como um chacal, desviando e acertando mais um corte preciso. Eu quase pude prever o golpe que Megan iria tomar por ficar ali, parada, depois de dar o golpe, mas a atenção da cobra estava concentrada demais para perceber que estava lutando contra dois inimigos.

A serpente de escuridão sibilou o que pareciam ser maldições enquanto uma flecha fincou-se em seu peito – ou onde eu achava que era o peito –, e ela perdeu todo o seu contorno, tornando-se uma massa escura e sibilante. Ela ainda parecia estar viva, mas incapacitada demais para tentar qualquer coisa. Com um movimento rápido, a escuridão viva afundou na sombra da prateleira como se fosse um buraco, e desapareceu, deixando uma flecha prateada no chão onde descera.

Alguns segundos de silêncio denso caíram sobre nós, até a estante cair de volta. A poeira baixou, finalmente, e eu pude ver meu pai, com as flechas prateadas ainda a postos. Uma prateleira com flechas prateadas estava ao seu lado, algumas delas caídas no chão. Só depois de escanear todo o local, duas vezes após a poeira baixar, ele largou o arco e as flechas no chão e correu para me abraçar. Fora um abraço muito apertado, como se ele esperasse que eu de repente me desfizesse em sombras, como a cobra.

Depois de alguns segundos, ele olhou nos meus olhos, e eu percebi que ele estava quase chorando.

– Você está bem? – Sua voz tremia de leve. – O que... O que aconteceu?

– Estou bem. – Consegui dizer, enquanto olhava em seus olhos como que assegurando isso. – Mesmo.

Olhei para trás, para onde Megan estava levantando Jenny do chão. Ela estava rígida, como se a juntas estivessem doendo, mas conseguiu sorrir para mim. Megan acenou com a cabeça, e eu me virei para meu pai. Ele apertava meus braços como se estivesse esperando eu assumir que eles estavam quebrados. Senti que ele estava esperando eu contar o que havia acontecido.

Respirei fundo, e soltei a história toda. Jenny me ajudou algumas vezes, contando a versão dela e algumas coisas que eu estava em choque demais para poder lembrar. Enquanto falava, eu sentia as coisas menos absurdas, menos surreais. Eu havia mesmo vivido aquilo. Era um alívio finalmente perceber isso, ter certeza disso.

Mas o alívio morreu no final da história, quando o olhar de meu pai tornou-se selvagem.

– Ah, que ótimo! – Meu pai gritou, enquanto derrubava uma estante ruidosamente. – Uma armadilha!

Eu não entendi direito, e nem me preocupei em entender. Meu pai nunca havia ficado assim. Pelo menos não que eu tivesse visto. Vê-lo tão irritado, tão descontrolado... Foi assustador.

– Calma, Rob. – Megan falou, colocando uma mão no ombro de meu pai. – Pelo menos não foi o monstro que pensamos. As coisas não foram tão ruins assim.

– Não foram?! – Meu pai gritou de volta. Mas então Megan o encarou, e ele se acalmou um pouco. – Eles não enganaram, Clein. Caímos que nem idiotas. Eles queriam nossa atenção para...

Meu pai me olhou pela primeira vez depois do surto, e ficou mais calmo. Eu estava confuso demais para entender as variações de humor dele.

– Não pode ser. – Megan pareceu ter finalmente entendido o que meu pai dissera, e ficou pálida. – Eles nunca... Agiram em conjunto antes. Não de forma coordenada. Não com raças diferentes.

Um silêncio pesado caiu sobre todos. Olhei para Jenny, e ela olhava para mim tão confusa quanto eu. Enquanto ninguém pensava em algo para dizer, houve um piado estridente vindo das escadas, e um pássaro azul entrou voando no porão. Ele rodou um pouco no ar, chamando a atenção de todos, para depois pousar em Jenny com um piado alegre.

Era um falcão... Azul? Por instante, veio o impulso de tirar os óculos e limpá-los, mas me lembrei de que eles não estavam mais lá. Passei as mãos pela cabeça, mas não havia nada ali além da cicatriz da pancada que eu havia dado no asfalto, alguns dias atrás. Eu não estava dormindo.

– Beliscão! – Jenny exclamou, com um sorriso. – Você está vivo!

Ela afagou o animal, que eu ainda tinha dificuldades de assumir com um falcão, e o som de passos abafados veio da escada. Rigle descia lentamente. Não parecia ferido, apenas... Desanimado. Ele me encarou enquanto descia, e havia algo humano nos olhos dele. Parecia... Vergonha.

Ele caminhou para mim, ainda me olhando, e parecia estar esperando uma bronca, como dia em que ele havia me mordido e meu pai ficara uma fera com ele. Mas eu me ajoelhei e afaguei seu pelo macio, o que pareceu pegá-lo de surpresa.

– Ei, garoto. – Sorri. – Você está bem?

Ele lambeu meus dedos, e eu encarei aquilo como um sim. Me virei para Jenny, o falcão azul finalmente fazendo sentido.

– Esse é a sua mascote? – Perguntei.

– É, esse é o Beliscão, filhote da Sadie. – Ela olhou para Rigle. – Esse é quem eu penso que é?

Assenti. Jenny tinha medo de Rigle, talvez pelo fato de que ele sempre rosnava quando eles se encontravam. Então me lembrei que Megan tinha um falcão preto e sombrio que me dava muito medo, chamado Sadie.

– Ei, essa não é a Sadie. – Então notei que havia soltado a frase em voz alta.

– É claro que não. – Jenny respondeu. – Por quê seria?

Expliquei – ou tentei explicar – a ela o lance de mascotes de caçadores. Ao que parecia, ela ainda não sabia o que era aquilo. Quando acabei, percebi que Megan e meu pai, agora muito mais calmo, estavam observando a conversa.

–Uau. – Ela afagou Beliscão mais uma vez. – Então você está conectado a mim, é? Legal.

O modo como ela aceitou tudo o que eu disse foi meio surpreendente.

– Mas, Jenny, o estranho é que Sadie deveria ser sua mascote. Por que outro falcão? – Olhei para Megan.

– Ah, é porque, na nossa família, não é o falcão que nos pertence. É a linhagem dele. – Ela respondeu. – Nossa primeira mascote, o que foi escolhido para nos acompanhar como Rigle, morreu muito cedo. Não houve tempo para ele se juntar ao nosso poder completamente, mas deu tempo para ele ter um filhote. Como o filhote veio ao mesmo tempo em que o processo de assimilação estava acontecendo, não me pergunte como, o filhote se tornou a mascote. – Ela sorriu. – É como se o processo de junção do poder com o animal tivesse acontecido de uma forma superficial demais. Funciona do mesmo jeito que com o Rigle, só que o animal é ligado unicamente ao dono, e não ao poder.

– Então o filhote nasce... Sozinho? – Jenny perguntou. Ela parecia confusa com o que a mãe dela dissera, mas não com a situação.

– É, assim que ocorre a Transição.

Alguns segundos se passaram sem que ninguém dissesse nada, até que Jenny disse:

– Então... Em que tipo de armadilha vocês caíram?

Uau. Ela sabia ser sutil.

A mãe dela pareceu ficar surpresa demais para responder, mas meu pai não.

– Eles nos atraíram para fora de casa. – Ele disse, com o olhar duro. – E mandaram o espírito das sombras.

O quê das sombras? – Jenny perguntou. Ela se recuperara do choque melhor do que eu.

– Espíritos das sombras. – Megan repetiu. – Uma consciência que se formou da escuridão, e que foi capaz de se solidificar. Eles são muito raros, e muito poderosos. E prezam seu tempo fora da escuridão, por isso nunca entram em combates. Podem perder a forma, sendo banidos de volta para a escuridão, e nunca mais recuperarem.

Por alguma razão, aquilo não soou louco. Apenas... Estranho.

– Ooooo.k. – Jenny soltou. Parecia que ela não gostava de climas sombrios. – A cobra que nos atacou era um desses?

Megan assentiu, desconfortável.

– Então... o Vlad poderia ter apenas atraído vocês para longe? Para o espírito vir nos atacar? – Jenny perguntou.

– Vlad? – Perguntei.

– É, o vampiro poderoso que o Rob sentiu. – Então ela notou o olhar que os adultos a estavam dando. – Espera, você não contou isso para ele?

– Eu não achei... – Disse meu pai, sem olhar para mim. – Necessário.

Por um segundo, a única coisa que fiz foi olhar para meu pai. Ele não me contara nada. Ele havia me contado todas aquelas coisas, e eu senti... Que talvez ele tivesse parado de me esconder tudo da sua outra vida. Mas percebi que não. Ele ainda não confiava em mim. De repente, eu não estava mais em choque, ou aliviado por estar vivo. Eu me senti ressentido.

E também comecei a entender o que meu pai dissera. Eles foram atraídos para não poderem nos proteger. Alguém queria – talvez o monstro que meu pai sentira –, deixar a mim e a Jenny vulneráveis.

Alguém queria nos matar.


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Notas finais do capítulo

Compensou?