Borboletas na Lua escrita por Aluada


Capítulo 3
Aquela noite


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo foi uma das coisas mais "gracinha" que eu já escrevi *^^*



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São quase seis horas da tarde; pra meu desgosto, o sol já está  ameaçando a ir embora. Cruzo correndo os gramados do jardim e, pela primeira vez nestes três anos, começo a notar como eles parecem não acabar nunca, em como essa subida é tão íngreme — por Merlim, eu penso, o ar parece fugir dos meus pulmões como se estivesse escapando pelos meus poros! — e como eu tenho que entrar logo nesse castelo. Logo. Claro que essa pressa toda minha é totalmente desnecessária, quase vergonhosa. Eu tive três meses, longuíssimos e massacrantes, de planejamento pra esse dia, que só vem uma vez a cada mês, mas só pude me decidir em cima da hora. Ahn, do quê estou reclamando? Se não fosse por Hagrid, eu ainda estaria desolada e indecisa.


       Venho procurando-o muito desde o Natal, desde que Harry e Ron arranjaram motivos estúpidos pra pararem de falar comigo. Não que eu ligue pra isso, de jeito nenhum. Eles que façam o que quiserem, chorando por ratos perebentos e arriscando suas vidas com assassinos loucos. Eu... já me preocupei com eles, e muito, o suficiente pra ser taxada como mandona e irritante. Agora não me preocupo mais com eles. Nem um pouco. Óbvio que não. Óbvio! Óbvio... óbvio que... — e lá vem de novo meu senso de responsabilidade, tão intragável quanto eu — que sinto a falta deles desesperadamente e queria mais do que tudo eles do meu lado pra me ajudar! Meninos tontos, tanta coisa eu queria conversar, perguntar, contar! Afasto cabelo do rosto e engulo a borboleta-verdade com dor rasgada de garganta machucada.


     Depois de novembro, cada dia tem sido terrível. As últimas semanas, in-di-ges-tí-veis. Hoje, quando entrei na cabana do Hagrid, minha intenção era falar do processo de Buckbeack. Não consegui. Chorei tudo o que vim disfarçando e tentando desviar de mim. Harry e Ron, também entre as lágrimas, claro. Também, porque revelar tudo seria... inconcebível, no mínimo.


      Seu chá estava horrível, mas o propósito de Hagrid era lindo, de modo que eu não poderia fazer uma careta. Usei o fim da terceira xícara para fazer a pergunta estratégica final, de qualquer forma. 


      — Hagrid... você não acha que... se alguém tem um problema... e você sabe dele... Você não deveria tentar ajudar essa pessoa? Não deveria tentar mostrar... que... se preocupa...?


  Mesmo que estivesse achando que eu me referia a Ron e Harry — como realmente achou, tenho certeza —, eu não poderia descartar sua resposta.  Ele segurou minha mão tão carinhosamente, ah, tão verdadeiro e sem malícias, que meus olhos inchados quase voltaram a ficar da cor do seu nariz de gigante. Ele disse que sim (sim! — a confirmação do meu desejo), e que me prometia que falaria a respeito com... com quem? Não sei; olhei pela janela e vi que, se não corresse, iria perder a chance de cumprir o conselho recebido. Abracei Hagrid, como mais ninguém no mundo, e deixei a cabana.


      Agora já acabei de subir o último lance de escadas de pedra e me preparo para empurrar — Merlim, como essa porta é pesada! Perco o fôlego, sugo o ar em goladas. Os ponteiros do meu relógio de pulso trouxa, presente de aniversário da tia Margie, estão quase alinhados, o que quer dizer pouco mais que seis horas. Correndo contra o tempo de novo, Hermione. Como se já não estivesse com a cabeça confusa e os dedos doloridos de tanto girar a ampulheta do pescoço. Decido que por hoje não farei as coisas do modo mais fácil; empurro a porta com um dos pés (e daí que ela não se move um milímetro?) e saio em disparada para mais três lances de degraus exaustivos.


      Não... aaaa...credito... que... che... guei.


     Sei que, se esta porta fosse mágica o suficiente pra poder falar, estaria aos berros: “sua covarde!”. Felizmente, tudo o que ela pode fazer é me encarar com as riscas zangadas da madeira (elas parecem escorrer e formar dois olhos doentios que me dão arrepiiios). Olho ao redor, apreensiva novamente, mas não por pessoas ao redor, e sim por sinais de sol atravessando os vitrais. Eles são curtos e fracos; o dia já vai acabar. É agora ou nunca.


     Três batidas.


     — Professor?


     Silêncio.


     — Professor, é Hermione Granger.


     Ainda silêncio. Ele está lá, eu sei que está, vi sombras na fresta da porta... Mais três batidas.


     — Professor, desculpe pelo incômodo, mas eu preciso muito falar com o senhor. Não é sobre nenhuma redação, é sobre... é que eu... —  É como se uma borboleta me escapasse pela boca para sair: — É que eu sei de tudo, professor!


     Segue-se automaticamente um click ruidoso, certamente controlado por uma varinha em mãos cansadas. Aperto no coração. A porta abre um espaço tímido para a luz entrar. Aberta, está realmente aberta, tenho de me explicar pra sair do surrealismo da situação. Meu Merlim, o que estou fazendo? Ele não é qualquer pessoa, ele não é só o menino do primeiro beijo, ele é um professor, um professor! Quero parar, quero voltar, quero — quero mais que tudo vê-lo, controlar o compasso da minha respiração e abraçá-lo... até parar...


     Os últimos raios de sol vão de encontro a minha vista; fecho a porta para não ficar cega e procuro um canto de sombra com a cabeça baixa. Encontro dois pés perto de mim, e logo constato que tinha razão, as mãos que empunhavam a varinha estão realmente cansadas, até meio trêmulas. Uma delas aponta a cadeira mais próxima, a mesma em que me sentei em novembro; porém, antes de aceitar o convite calado, minha curiosidade me impele a erguer um pouco mais a cabeça e continuar pelo braço, até encontrá-lo. E, Merlim, encontro-o. E ele está... tão... tenho a impressão de que seu cabelo está mais branco, e seu rosto mais pálido e enrugado, como se a pele tivesse escorregado muito rápido. Suas olheiras estão escuras, os olhos, fundos, distantes, e posso ver nitidamente os contornos do crânio.


     Talvez eu tenha feito cara de susto, porque ele instantaneamente evita me olhar. Resolvo sentar, sentindo minhas unhas afundarem de nervoso na palma da mão.


     — Então, Srta Granger — ele soa extraordinariamente mais tenso que rouco —, o que é exatamente isso que você sabe?


     Ah, o que eu sei... Sei que eu deveria ter prestado mais atenção por onde andava. Que meus lábios não deveriam ter ficado expostos assim tão  facilmente, quanto mais meu coração. Que aquele livro deveria ter caído embaixo de um móvel, e se perdido para sempre. Que eu deveria ter dado mais atenção aos meus relatórios do que a completar a leitura no prazo, para devolvê-lo logo. Que eu deveria ser menos curiosa. Que Neville deveria ter terminado a lição de Astronomia mais cedo aquele dia. E que o Chapéu Seletor certamente errou em me colocar na Grifinória, porque não tenho coragem nem para falar:


     — Eu... eu sei daquilo, professor.


     — Daquilo...?


     — Que o senhor é... O senhor é... — as mil borboletas brotaram de novo no meu estômago e estavam forçando a saída — um... lobisomem...


     Enquanto eu engulo meus próprios órgãos de volta, ele parece ser o extremo da tranqüilidade. Quem visse agora a cena de fora acharia que eu estaria prestes a passar pela transformação. Os quadros ao meu redor, eu sinto as risadas deles, de mim sobre a minha nuca, mas a tensão é mais forte que a vaidade. Meu ouvido começa a apitar. Não sei se devo ficar (mais) preocupada — é óbvio que ele não vai atacar, ele ainda está humano, me convenço por fim —, então tento só manter minha pose ansiosa de aluna que aguarda pela confirmação da resposta. Minha coragem grifinoriana definitivamente não vem.


     — Há quanto tempo você sabe?


     — Há... séculos. Desde a redação do professor Snape...


     — Ele ficará encantado. Passou aquela redação na esperança de que alguém percebesse o que significavam meus sintomas. Você verificou a tabela lunar e percebeu que eu sempre ficava doente na lua cheia? Ou você percebeu que o bicho-papão se transformava em lua quando me via?


     — Ahn — pigarreio — os dois...


     — Você é a bruxa de treze anos mais inteligente que já conheci, Hermione! — riu.


     Na verdade, tenho catorze, penso em dizer, mas seria muito indevido. Também por pouco considero aquela histeria de tempos atrás — inteligente, ele me chamou de inteligente! —, mas tudo isso muito mais no cérebro que no coração. Eu jamais poderia estar confortável diante daquela situação, porque seu riso foi escancaradamente forçado, e eu posso detectar em seus olhos pensamentos correndo muito rápidos, como se ele estivesse avaliando. Me avaliando. Não posso deixar de imaginá-lo socando a mesa e me rogando uma praga eterna, ou chorando rios de desgosto na minha frente. Ajeito a coluna e controlo as borboletas, até finalmente ouvir sua voz:


     — E o que exatamente você quer pelo seu silêncio?


     O que você quer dizer com isso?, penso.


     — O quê? — é o que sai, ao franzir a testa.


     — Quer a nota da sua avaliação final garantida? Não freqüentar mais a matéria? A menos que suas intenções sejam maiores —


     — Não, professor, não... eu não estou te chantageando! Eu não quero nada do senhor!


     Vejo suas sobrancelhas subirem, incrédulas. Incrédula estou eu!


     — Quem mais sabe a respeito do meu problema, Hermione?


     — Mais ninguém, mais ninguém! Eu... — eu não espalhei a história pra ninguém, eu não quero tirar proveito de nada. — Eu estou aqui só porque quero, de alguma forma, ajudar o senhor!


     — Me ajudar? — simplesmente quero morrer quando a impressão de falsidade sai de sua boca e ele ri com sinceridade. Eu não sou engraçada. — Você é inteligente, Hermione, deve ter lido acerca do assunto. Não existe ajuda. Não há cura.


     — Harry me contou que o professor Snape prepara uma poção para o senhor — quero parecer séria, porém ele não me deixa terminar:


     — Ela só me ajuda a recuperar a consciência enquanto estou transformado.


     — Sim, sim, foi o que eu pensei, é isso que quero dizer! Eu poderia ficar aqui, fazer companhia.


     Vejo-o se remexer desconfortável dentro do robe. Deve estar doendo, sua cabeça, seus músculos, tudo. E eu, no meu impulso hermionístico, aqui, correndo, mostrando idéias esganiçadas, quando tudo o que ele quer é sofrer em paz. Ah, Hermione, onde é que você foi parar? Seu cérebro, sua razão? Não posso ficar revoltada com os julgamentos dele sobre mim. Não tenho o direito. Minha proposta é... ridícula! Fazer companhia, é isso mesmo o que eu disse? Ah, sinto vergonha de mim, vergonha extrema. Acabo de estragar nosso relacionamento.


     Isso, relacionamento, Hermione, relacionamento. Continue pensando assim que vai continuar estragando as coisas!


     OK, paro de pensar. Ao retornar ao momento presente, ainda vejo-o do mesmo jeito, desconfortável dentro da roupa.


     — Hermione... — Eu sei que não há nenhum tom de desconfiança agora, porém a nova voz não me deixa mais aliviada. Com visível dificuldade, ele deixa o assento da cadeira somente para voltar a se apoiar, agora no parapeito da janela, diante dos últimos raios de sol — Não é como se eu só ficasse doente. Eu me transformo. Crescem pêlos, e garras, e dentes... Eu triplico de tamanho. A maioria das pessoas não suportaria o som da minha respiração. Eu viro um monstro. E você — ah, você não deveria sequer olhar pra mim.


     — Por favor, professor, não diga isso!


     —Volte para seu dormitório, esqueça nossa conversa. Será melhor.


     Sem perceber, me levanto.


     — Eu não seria capaz de fazer isso. E-eu...


     As borboletas voam. Livres.


     — Eu não consigo parar de pensar... em... você. Eu estou tentando, ah, estou tentando tanto, mas é como se minha cabeça não pudesse ser desligada... E não há preocupação maior, nem aula, nem redação nenhuma, a-além de... você. Não consigo, não há nada que me faça fechar os olhos pra dormir desde que descobri o-o seu problema. Eu não quero só ajudar, eu quero — quero ficar perto de você. Você... me tocou de um jeito que eu... nunca... tinha sentido... antes.


     Meus olhos estão fechados — não, atados, e espero que para sempre, porque jamais terei coragem de encarar — sequer olhar de relance, por acidente! — a expressão que tenho certeza que me condena. Ele sente vergonha por mim, eu sei. A pobre garota que pensa que foi beijada, e que se acha no direito de se apaixonar.


     O parapeito da janela não é duro o suficiente; eu poderia afundar meus dedos nele, me fundir, virar mármore para nunca mais ter de passar por isso. Nem ter de pensar em passar por isso novamente, nem criar finais alternativos felizes, nem considerar a mais absurda ideia do universo de ter um sentimento ridículo correspondido. Não, não, melhor: morrer logo, me jogar da torre do terceiro andar, aqui, agora, sentir a brisa pelos cabelos para afundar na escuridão.


     Minha mão sobre a janela dói de tão forte que aperto.


     Começo a sentir a brisa... no meu pescoço.


     — O que você quer dizer — seu sussurro percorre a minha espinha —, “eu te toquei como você nunca sentiu”...?


     Enquanto os segundos parecem eternos, viro meu rosto. Você me beijou, quero dizer, você me beijou de verdade. Nunca vou conseguir negar, porque nunca vou conseguir apagar de mim. Você me beijou... como está beijando agora. Ou não, porque talvez agora eu possa realmente senti-lo — os dedos entre meus cabelos, os lábios mornos sobre os meus, a respiração que se confunde com a minha, o toque que aproxima nossos corpos, que nos envolve. Minha cabeça é um vazio, só uma tentativa de controlar os batimentos descontrolados do coração. Estou surda. Cega. Minha única sensação é a de suas mãos que me percorrem, acariciam meu rosto, abraçam meus ombros, descem até a cintura, comprimindo, caindo —


     — Remus?


     Ele está de joelhos, uma mão de suporte no chão, a outra na cabeça que martela.


     — Se afaste! Vai, vai, vai, VAI!


     Quê, como? Assusto-me com o grito inesperado, ando de costas, tropeço estupidamente no nó de meus próprios pés e caio sentada com um gemido de dor. A cena se forma diante de mim; perco a figura do homem enquanto vejo exatamente o que ele tinha me descrito, os pêlos rasgando a pele, as pupilas violando a cor, os ossos encurvando a postura, o rosto e os membros desfigurando-se até a perda da identidade. N-não posso falar, tudo é... Recebo seu primeiro gole de ar com um arquejo inevitável, e paraliso quando ele vira seu olhar amarelo-fera contra mim. Eu gostaria, mas não posso deixar de notar as sobrancelhas franzidas e os dentes à mostra. Oh, meu Merlim, ele não está bem, ele está perigoso, ele vai —


     Mas então sua expressão se desmonta, e mal tenho tempo de detectar qualquer Remus Lupin ali, porque ele foge para a escuridão.


     Calma, Hermione, calma, repito muitas vezes, até pôr a situação de volta a seu devido lugar. Recordo os pontos principais. Você foi à casa do Hagrid, voltou para o castelo, bateu na porta dele. OK. Vocês conversaram. Foi desagradável. Você vomitou tudo o que queria dizer e ele te beijou — beijou... Oh, Merlim, beijou, a melhor sensação do mundo! (a ser retomada assim que possível, tilinta a borboleta-razão). Ele se transformou em lobisomem. Você estragou tudo e ele correu pra longe de você. OK, certo. Chego á conclusão de que o histórico e as circunstâncias apontam que tenho uma considerável sorte com atitudes inadequadas. Se eu for capaz de sair do chão e agir como deveria, talvez ainda continue não estragando tanto as coisas assim. Faço isso.


     Ele está rente à cama, encolhido sobre si. Não sei exatamente o que fazer.


     — Sinto muito — me resta a dizer —. Você me avisou que eu poderia me assustar. Eu que não estou ouvindo meus professores ultimamente.


     Por um momento, tenho medo de que ele me olhe, de que eu não vá conseguir me controlar novamente. Ele afasta as patas do rosto... e eu tão claramente vejo-o lá, nos cabelos grisalhos e nas sobrancelhas caídas e gentis, que o abraço num impulso.


     Poderia ficar aqui para sempre.


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