Austral escrita por Letícia Silveira


Capítulo 1
Capítulo Único - Austral


Notas iniciais do capítulo

Obs.: a minha bisavó (eu ainda não era nascida) perdeu a voz repentinamente, e a mesma voltou depois, sem tratamento. Não houve causa ou motivo, simplesmente aconteceu, como na história aqui apresentada.
Obs.2.: Aurora AUSTRAL é um efeito raro e diferente - assim como a perda de voz da principal - como a Aurora Boreal, mas no Hemisfério Sul :)



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CAPÍTULO ÚNICO DE AUSTRAL


Observava o meu reflexo no espelho do pequeno banheiro do meu apartamento. Não, eu não deveria culpar-me por um erro que nem meu era. Não deveria, mas não conseguia evitá-lo. Era tanto masoquismo para uma pessoa só que até cortar-me eu já havia feito.

As lágrimas que desciam de meus olhos eram quase imperceptíveis: com o tempo, estavam secando felizmente. As olheiras, marcas de noites sem dormir, não poderiam ser, porém, disfarçadas. Muito menos, as cicatrizes em meu coração.

Os machucados em meu rosto também eram visíveis: marcas irreversíveis que comprovavam o espancamento que eu sofrera no colégio. As lembranças doíam, todavia, muito mais do que os curativos.

Nunca pedira dinheiro a Deus, muito menos um carro ou algum bem de consumo. Tudo o que eu pedira fora uma voz, que nunca voltou; uma vez que, sem explicação, aos quinze anos, eu perdi-a, tornando-me o motivo de piada para a escola inteira. Eles podiam falar o que quisessem, pois eu não conseguia revidar. As palavras que estavam entaladas em minha garganta há dois anos, posto que eu já tinha dezessete anos, não saíam, o que me frustrava muito. Ter voz e perdê-la, certamente, era pior do que nunca ter tido-a. Talvez, se eu nunca tivesse falado antes, não me sentiria tão mal com as ofensas que me faziam.

– Filha, – despertou-me de meus pensamentos a minha mãe – está na hora de pegar o ônibus para o colégio.

Não gritei que já ia; nem, sequer, sussurrei. Eu não podia, afinal.

A sensação de impotência era tão grande que arrastei os meus pés até a parada do ônibus escolar. A brisa gelada do inverno bateu em meu corpo, avisando-me que apenas um suéter e uma calça jeans seriam competidores fáceis contra ela.

Minha respiração formou uma pequena fumaça no ar enquanto eu esperava o bendito ônibus aparecer. Eu só queria que alguém me ajudasse, ligasse para o motorista e perguntasse o motivo do atraso. Mas não, nem ter alguém eu tinha.

Resolvi não me preocupar. Provavelmente, o ônibus já teria passado por ali; então, resolvi ir a pé.

Quando finalmente avistei o colégio, fitei-me no reflexo de um carro. Com um pouco de maquiagem, eu havia disfarçado muito mal os meus machucados. Mas tudo bem, eu não queria ser afetada por aqueles infantis naquele dia.

Entrei no colégio, e as risadas que se seguiram direcionadas a mim foram horríveis. Não faziam piadas de mim apenas por ser muda, mas também por nunca ter beijado alguém. Claro, quem gostaria de uma menina muda, com cabelos estupidamente castanhos e olhos azuis sem vida? Eu era, simplesmente, uma cópia das animadoras de torcida (em quem todos babavam). Mas eu era uma cópia falsificada, vinda com defeito. Se você tiver uma boneca Barbie oficial, por que quererá a chinesa?

Olha, olha! A aberração veio de óculos escuros para não mostrar o que a Bárbara lhe fez ontem! – Exclamou uma das líderes de torcida, apontando o dedo para mim.

Não, eu não iria chorar; mas o marejar em meus olhos dizia outra coisa. Eu havia prometido a mim mesma; porém fora inutilmente.

Entrei rapidamente na sala de aula; esbarrando, sem querer, em um aluno que por ali passava. A professora pensou, contudo, ter sido proposital e fitou-me zangada.

– Não sabes que é feio esbarrar nos outros?

– Senhora Bells, – dirigiu-se um menino do fundão à professora – não esqueça que essa pergunta é retórica: ela não pode responder!

– Senhor Crawler, por favor! Eu não estou gostando da atitude de nenhum de vocês.

Apenas assenti com a cabeça à professora, mesmo sem saber o que ela queria que eu respondesse. Nessa vida, eu apenas tinha de aceitar o que os outros falavam; já que muitos não compreendiam a linguagem de sinais.

O dia seguiu-se sem atribulações até o último período, onde receberíamos o anuário da turma por estarmos no último ano do ensino médio. Assim que visualizei a página em que deveria estar a minha foto, não a encontrei, estranhando tal fato.

Como eu não tinha nenhum amigo, não tinha como perguntar a ninguém o motivo daquilo. Logo, no entanto, Ashley, uma menina com quem eu não me simpatizava, tratou de explicar-me:

– Vocês acreditam que consegui subornar o vice-diretor a tirar a foto da aberração do álbum? O que uma cara bonita, como a minha, não faz! Eu não sou demais?! Aquilo simplesmente estragaria o meu ano!

"E como você acha que eu estou me sentindo por você ter pensado em, apenas, você mesma com esse seu ego enorme?" Escrevi em um bilhete, deixando-o na mesa e saindo da sala a passos largos, em seguida.

As lágrimas tão conhecidas por mim voltaram a manchar o meu rosto. Não, eu não queria aquilo: toda aquela dor novamente! Era insuportável o quanto eu sofria por algo que não era minha culpa. Por que eu fazia aquilo comigo mesma?

Era hora de pará-lo, e o único jeito de fazê-lo era descansando. Agora eu estava decidida. Não havia motivo mais para viver assim: sem pai, sem namorado, sem amigos... Apenas a minha mãe sofreria muito, mas seria melhor do que a ver trabalhando dezoito horas por dia para pagar consultas que não levavam a nada.

Nada. Era isso que eu tinha e que eu era.

Não fora preciso pensar duas vezes antes de encontrar o lugar perfeito para fazê-lo: a praia. Foram tantos momentos que eu passara ali com o meu pai, na minha infância...

Lembrava-me de quando ele carregava-me no colo e girava-me. Eu gritava alto sem importar-me com os outros... Sem imaginar que, um dia, nem um mero grito de surpresa, susto, êxtase ou medo, eu conseguiria dar.

Era ali que eu encontraria meu pai: naquela praia, com tal mar cristalino.

Rumei àquela direção, decidida. Retirei os meus pertences mais valiosos, como uma corrente de coração que eu carregava comigo, um presente de meu pai, e o meu iPod, que se encontrava no bolso. Se eu não ia utilizá-los, poderia dar a alguém que faria um melhor uso.

Molhei a ponta dos meus pés, sentindo a água gelada misturar-se à temperatura da estação. Minha espinha arrepiou-se, mas seria o melhor para todos.

Adentrei-a em meio a uma reza, agradecendo pelo tempo que vivi ao lado de meu pai e pela minha mãe amar-me tanto. Minha vida fora boa, retirando o fato de eu estudar naquele colégio.

Assim que mergulhei com ímpeto, senti meus pelos arrepiarem-se. Realmente, a água estava muito fria, o que poderia resultar em uma morte de hipotermia. Não que eu importasse-me muito com a causa da morte, mas era "legal" especular o que diriam aos meus colegas. Provavelmente, a culpa atingi-los-ia; entretanto, seria tarde demais.

A negritude, logo, atingiu-me. Mesmo não sendo a melhor das sensações, a que viria a seguir seria. Isso me tranquilizava.

A imensidão tomou-me em seguida, e o negro que cercou meus pensamentos dava-me uma estranha sensação de paz.

Permaneci ali por algum tempo, sem conseguir medir os segundos ou minutos, talvez até horas. Porém, comecei a ouvir uma voz no fundo implorar algo inteligível.

Algo pressionava o meu peito tão forte que me causou uma grande sufocação. Assim, entreabri os olhos e cuspi uma enorme quantidade de água no chão.

Só então percebi que me encontrava sobre a areia do mar, mas longe do mesmo. Um homem fitava-me aparentemente nervoso com a roupa toda molhada, cheirando a sal.

– O que houve com você? Como se afogou?

Então era isso: eu estava viva! Mas que droga! Sendo que o homem que estava parado à minha frente contradizia-o, já que era a pura imagem da perfeição.

Seus ombros largos abrigavam braços fortes e compridos, que se uniam a mãos com diversos calos. Seu abdome parecia ser bem trabalhado debaixo da camisa molhada, que grudava em seus gominhos. Seus cabelos castanhos escuros contrastavam com os seus olhos azuis, tão claros como aquele mar que acabara de presenciar tal deus grego.

– E então? – Voltou a indagar, porém eu não tinha como respondê-lo. – Acho que está em choque. Vou levá-la para minha casa por enquanto.

A partir daquele dia, no qual ele descobriu que eu era muda, tornamo-nos verdadeiros amigos. Talvez, fosse o meu primeiro melhor amigo. Expliquei a ele, depois, que eu não possuía voz. Claro, escrevi em um papel, e foi assim que passamos a comunicarmo-nos. Ele ajudou-me na escola, onde alguns alunos (com exceção dos populares) pediram-me perdão pelo bullying contínuo. O meu amigo não se importou com a minha deficiência, preenchendo o meu íntimo de alegria. Por mais que trabalhasse, procurava sempre ter um tempo para mim.

Depois de alguns dias, estávamos em sua pequena oficina, próxima à sua casa. Ele colocava na estante um pequeno carro de brinquedo à medida que me explicava os motivos para trabalhar com coleções de coisas estragadas:

– Nada na vida é perfeito. – Ele soltou o objeto, fitando-me intensamente com os seus olhos cristalinos. – E o que é perfeito se torna sem graça.

Desviei, por um momento, os meus olhos dos seus, não conseguindo sustentar o seu olhar tão intenso. Fitei minhas mãos, mexendo-as nervosamente, sem saber o que fazer ou falar.

– Imagine se o céu fosse sempre azul com nuvens branquinhas. Qual seria a graça do mundo se não houvesse um céu sem nuvens ou noites tempestuosas? Como a natureza seria caso não existisse o equilíbrio natural? – Poetizou. – Se todos os humanos fossem brancos, também quebraria tal equilíbrio. Se todos tivéssemos braços, pernas... – voz!, completei mentalmente. Não havia notado até o momento, que ele aproximava-se vagarosamente de mim. – É por isso que eu coleciono esses brinquedos e vendo-os: todos são tão perfeitamente errados que esse fato apenas os embeleza mais. As pessoas que veem essa beleza são as que realmente valem a pena. – Concluiu com um sorriso maroto, repousando uma mão em minha cintura. – Posso?

Aquilo poderia ser loucura, mas não resisti. Por mais que ele tivesse vinte e quatro anos; e eu, apenas dezessete, procurei entregar-me àquele amor que consumia há algum tempo.

Sua outra mão dirigiu-se à minha nuca, esperando-me apenas assentir como fiz. O choque de nossos lábios colidindo foi totalmente diferente de qualquer sensação que pude sentir em toda minha vida. Senti uma corrente elétrica passar por meu corpo e estalar em minha mente. Naquele momento, soube que estava fazendo o certo: eu desejava-o, e ele queria-me, estávamos loucos um pelo outro. Paixão procurando por paixão, lábios entregando-se ali. Rápida e avidamente, colou nossas bocas, mostrando o quão sedento estava. Mordiscando o meu lábio superior, pediu passagem com a sua língua, à qual eu cedi prontamente. Não sabia o que fazer, o que tornava a situação um tanto patética. Uma menina de dezessete anos sem beijar! Hoje em dia, isso era raro.

Segui, todavia, o meu instinto; movendo as minhas mãos em direção às suas madeixas e puxando-as com tal empolgação.Assim que nossas línguas tocaram-se, o mundo pareceu girar. A falta de ar, que eu sempre pensara ser um empecilho, era tão ignorada quanto a pele de minha cintura, na qual ficariam marcas.

Havia descoberto, com o tempo, que o beijo dele poderia ser romântico, gentil, ávido, desejoso e quase erótico também. Com ele, experimentei coisas que nunca pensara ser possível, como alguns esportes radicais.

Mas, nesse momento, eu encontro-me caminhando ao altar, sozinha. Meu pai, infelizmente, eu não encontrei; no entanto, achei o homem que me espera no final desse tapete vermelho, posto na Igreja.

Toco o meu medalhão, o mesmo que depositei sobre a areia da praia, e ele abre. Uma foto minha e de meu pai ali se encontra, e, antes que eu comece a chorar, visualizo minha mãe, viva e esperando-me, novamente.

O buquê de flores em minhas mãos é colorido – vai desde rosas brancas comuns a tulipas. Imaginei que ele gostaria de uma coisa diferente, e, como deixou claro, repetição de uma mesma coisa não é com ele.

Meu vestido, entretanto, é branco, sendo justo no busto e caindo em grandes camadas.

Minha mãe assiste a tudo emocionada, sem nunca ter imaginado que a sua filhinha, que tanto sofreu, poderia encontrar um homem como este.

Assim que chego até os padrinhos e o meu amor, o padre começa o seu discurso. Procuro ouvi-lo por inteiro, mas as lágrimas assolam-me nesse momento. Felizmente, o choro de tristeza, raiva e dor fora substituído pelo de alegria, emoção e êxtase.

– ...Aceita-o como seu legítimo esposo? – Desperto de meus devaneios com o padre dirigindo-se a mim; que, com a voz embargada de emoção, digo sem dar-me conta:

– Aceito. – E é ali, na casa de Deus, que aquilo soa como a coisa mais simples do mundo por ser tão certa e perfeita quanto o céu.



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Notas finais do capítulo

Oiii! E aí? Gostou? Odiou? Reviews? :X
Espero que tenha gostado. :) Beijos ♥



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