Shura – 12 de Janeiro

Seria um cenário perfeito se o sol estivesse se pondo, vermelho-alaranjado, no horizonte. Mas ainda era manhã e o céu estava carregado de nuvens cinzentas prestes a desmoronar em uma forte chuva. Além disso, fazia muito frio. Shura estava treinando como em todos os dias do ano. Mais ou menos. Excepcionalmente nesse dia, decidira treinar em uma clareira bem afastada das arenas do Santuário.

Era doze de janeiro.

Exatamente dez anos antes ele nascera. Não era tanto tempo assim, mas de lá para cá já tinha se consagrado o Cavaleiro de Ouro de Capricórnio. Mas mesmo assim era preciso estar sempre se aperfeiçoando. Só que aquela manhã não estava rendendo bem, Shura se encontrava tão distraído que ainda não saíra do aquecimento. Percebeu que não estava sozinho apenas quando ouviu uma voz lhe dizendo:

– Impressionante!

Shura olhou ao redor e lá estava o Cavaleiro de Sagitário com uma expressão engraçada. Shura não sorria muito, mas naquele momento sorriu para o rapaz porque o admirava. Mais do que isso, ele se orgulhava de ser amigo de Aiolos, porque, além de um grandioso guerreiro, ele era uma ótima pessoa.

Então piscou confuso:

– O que é impressionante, Aiolos?

– Você estar treinando logo cedo. Hoje. – aproximou-se, pensativo. - Eu gostaria que Aiolia tivesse essa disposição quando faz aniversário, mas não há como convencê-lo.

Primeiro Shura surpreendeu-se por Aiolos lembrar que era seu aniversário. Depois se censurou. Aiolos sempre se lembrava, mesmo que Shura nunca alardeasse o fato e tentasse tratar o dia como outro qualquer.

Aiolos aproveitou-se da surpresa do garoto para se aproximar furtivamente. E de repente Shura se viu puxado pelo pescoço por um braço de Sagitário, tendo os cabelos bagunçados por ele.

– Meus parabéns, Shura!

– Obrigado.

– Dez anos?

– Sim...

– Uau! – exclamou, imitando um adulto bem mais velho - Já está virando um rapazinho! Eu me lembro de quando você era bem pequenininho...

Mesmo sabendo que era brincadeira, o rosto de Shura tornou-se róseo.

– Ehrm... Aiolos!

– Hahah! Nossa, meu irmão fica bravo quando digo essas coisas... – bagunçou novamente os cabelos de Shura e por fim o soltou. – Quais são os planos para hoje?

Shura encolheu os ombros. Nenhum. Como sempre.

– Você ainda não perdeu essa mania? Sério, o que você gostaria de fazer?

Quando Shura abriu um amplo sorriso, Aiolos podia jurar que os olhos dele brilhavam. Aqueles olhos não eram janelas abertas para sua alma, o mundo interior de Shura era inalcançável... Mas eram olhos muito bonitos, levemente puxados, com cílios longos e uma cor estranha - um verde escuro misturado com um cinza-azulado. Naquele dia pareciam da cor do céu acima deles. O Cavaleiro de Sagitário sabia exatamente o que Shura ia pedir, porque era sempre a mesma coisa. Mas gostava de ouvi-lo responder animado:

– Treina comigo, Aiolos?

Talvez Aiolos não entendesse porque treinar consigo bastava, mas para Shura era uma felicidade sem igual poder enfrentar um cavaleiro corajoso e amigo como ele. Um dia eles se enfrentariam pra valer e Shura poderia sentir orgulho por tal honra...

Orgulho, sim. Além de dor, de tristeza, de raiva de si mesmo e de ódio por toda aquela maldita situação absurda no Santuário. E depois um arrependimento sem igual. Mesmo que estivesse cumprindo sua função... Mas seu respeito nunca desapareceria e aquela honra o faria seguir em frente, certo? Cavaleiros de Athena sempre tinham que enfrentar guerras e era de se esperar que tivessem perdas...

Entretanto, no momento a vida era mais simples e eles só estavam treinando.

– Não vale pegar leve, Aiolos! – reclamou ao atingir o mais velho com um chute que o fez cair.

O cavaleiro de Sagitário riu.

– Não estou pegando leve...

*****

Depois de muitas horas de socos, chutes e hematomas, sem falar nas depressões no solo, Shura se viu deitado na grama, cansado, sentindo no rosto a garoa que começava a cair. Estava feliz. Olhou para Aiolos deitado a seu lado fitando o céu e sorriu.

– Obrigado, Aiolos!

O rapaz sorriu de volta, a expressão pensativa.

– Um dia descubro porque isso te alegra...

Shura sentou-se subitamente, encarando o companheiro com incredulidade. Não era óbvio?

– Aiolos! Você é o melhor cavaleiro que existe! Você é forte, corajoso e bom! É um modelo para todos os outros cavaleiros, inclusive eu! – Shura percebeu que seu tom de voz estava empolgado demais e, meio tímido, passou a falar baixinho – É uma honra poder enfrentá-lo... mas como você vira e mexe está fora do Santuário realizando missões e quando fica está ocupado treinando o Aiolia... é muito raro poder treinar com você...

– Ahh, falando assim eu fico sem graça... – respondeu com ar de riso e sentou-se também, bagunçando os cabelos úmidos do mais novo.

– É sério. – Shura insistiu levemente emburrado. – E eu quero ser como você!

Aiolos amenizou seu sorriso divertido e apertou levemente o ombro de Shura.

– Bem, então seja um cavaleiro leal e respeitoso à deusa Athena, Shura. Proteja-a e proteja as pessoas com as quais você se importa, isso fortalecerá seu cosmo. Tenho certeza de que se tornará um cavaleiro ainda melhor do que me considera.

As palavras tiveram efeito imediato e Shura exclamou com a alegria e convicção de quem sabe exatamente o que quer fazer:

– Vou me esforçar!

Em instantes a garoa começou a ficar mais forte e eles levantaram para ir embora.

– Que tal comer em algum lugar? – Aiolos sugeriu enquanto se apressavam – Por minha conta.

– Verdade? Você é mesmo o melhor, Aiolos!

*****

Doze de Janeiro.

O cenário era o mesmo do ano anterior, mas agora parecia perfeito. O frio e o céu nublado combinavam com a situação. Shura parou na clareira, começando o aquecimento. Quando estivesse distraído tinha certeza de que Aiolos o chamaria e poderiam treinar juntos...

Ele não apareceu. Nunca mais apareceria. Estava morto, não é? Morto! Como um maldito traidor! E por suas próprias mãos... Isso era o que recebia por sua lealdade?

Shura suspirou sob a chuva e deixou a clareira para trás. Foi um aniversário doloroso.

Fim