Possible love escrita por Sion Neblina


Capítulo 14
Entre irmãos - II parte


Notas iniciais do capítulo

Oi, genteeh!

Feliz em atualizar essa história que ficou por tanto tempo parada. Obrigada a todos que continuaram por aqui e deixaram gentis reviews no capítulo passado.

Beijo no coração de todos e boa leitura!

Sion



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Entre irmãos - II parte

Capítulo 14

Era meio de semana, Rodório estava silenciosa e as ruas tinham certa beleza triste, enquanto Shun caminhava calmamente até sua casa. Não queria correr, seu coração precisava de calma naquele momento e andar tranquilo, observando a paisagem, lhe garantia essa calma.

Da entrada da rua, ele percebeu uma luz acesa denunciando que o irmão estava em casa. Provavelmente aprontava o jantar como de costume, quando não estava no templo de virgem com seu controverso mestre. Shaka... O que será que ele queria com tudo aquilo? Por que ele atenuou a afronta? Por que ele dera suas motivações como justas se no dia anterior havia sido tão intransigente? Mas não era o momento de pensar naquilo. Precisava pensar na conversa que teria com o irmão.

Entrou em casa como de costume, anunciando que havia chegado. Contudo não recebeu nenhuma resposta, mas foi até a cozinha, vendo o irmão cortando tomates para por em algo que borbulhava no fogão.

– Precisa de ajuda? – Shun indagou. Não sabia a palavra certa para começar aquela conversa.

– Não, já estou terminando. – Ikki respondeu sem olhá-lo, continuando o que fazia.

Shun dirigiu-se ao banheiro e lavou as mãos. Estava trêmulo, preocupado e desconfortável naquele momento.

– Ikki, acho que precisamos conversar – falou, direto, ao retornar a cozinha. – Eu sei que deveria ter contado a você, me desculpe!

O mais velho parou o que fazia e encarou o irmão.

– Quando pretendia me contar, Shun? – Ele indagou, parecia calmo apesar de tudo. – Quando pretendia me contar que está de caso com aquele psicopata?

– Ele não é isso! Não mais. Ele mudou, Ikki, eu posso lhe garantir. – Shun tentou, angustiado. – Não somos mais os mesmos, irmão, lembre-se. Ele também não é mais aquele louco que colecionava cabeças dos inimigos. Todos nós passamos por dores demais e nos transformamos, eu preciso que dê uma chance a ele.

– Chance? – Ikki riu sem humor. – Shun... – o cavaleiro de fênix não sabia o que dizer naquele momento. O que poderia fazer, dizer-se contra aquilo? De que adiantaria? O irmão já não era a criança que ele protegia, já não era o garotinho que apanhava no futebol. Ele sabia que não tinha o direito de decidir com quem ele se relacionava, mas aquilo doía, a possibilidade de vê-lo aos pedaços novamente doía muito.

– Eu o decepcionei? – Shun indagou, trêmulo. – O decepcionei novamente, Ikki?

O mais velho mordeu os lábios. Não conseguia encarar o irmão, mal conseguia falar. Lembranças do passado invadiam sua mente, lembranças doloridas demais.

– Você não me decepcionou, Shun; eu só não sei como lidar com isso. Aquele homem é o cavaleiro de câncer! Sabe quem ele é? O cavaleiro de ouro de câncer! – Ele repetia como se isso fosse convencer a si mesmo de que o irmão realmente era amante daquele homem que ele e muitos desprezavam.

– O nome dele é Ângelo... – Shun murmurou, tentando evitar as lágrimas. Ikki nunca aceitaria aquilo, e ele não sabia o que fazer.

– O maldito nome dele é Máscara da morte, vê? Máscara da morte! – exclamou e riu. – Deuses, você só pode estar completamente pirado para namorar aquele lunático!

– Posso estar tão pirado quanto você ao aceitar ser discípulo do homem que quis matá-lo e não somente uma vez... – Shun disse, encarando o irmão, que voltou-se e o encarou também.

– São coisas completamente diferentes. – Ikki disse entre dentes e ergueu o dedo como quem faz uma advertência. – Não meta Shaka nessa história.

– Por que não? – O mais novo indignou-se levemente. – Se não fosse por ele não estaríamos aqui agora! Se não fosse por aquele louco...

– Não fale assim dele! – Ikki quase gritou, fazendo Shun arregalar os olhos e estremecer pelo susto. Então o mais velho recuou, passando as mãos nos cabelos como quem tenta controlar a irritação. – Ele é meu mestre, exijo que o respeite...

– Eu não o estou desrespeitando, não seria louco, já que você está tão pronto para defendê-lo, mesmo depois de ele tentar matá-lo pela terceira vez! – Shun cuspiu magoado. – Por que você pode dar tantas chances a ele e nenhuma a Ângelo?! O crime dele não foi tão mais cruel que o do seu amado mestre!

– Shaka não matou pessoas inocentes e colecionou suas cabeças! – Ikki replicou, fervendo de raiva.

– Porque isso não lhe foi pedido! Ele me mataria só porque eu queria vê-lo, Ikki, isso não faz dele um monstro também? – Shun já estava às lágrimas nesse momento. – E, pelos deuses, por que estávamos falando de Shaka? Não é ele que importa agora, somos nós dois, irmão.

Ele aproximou-se de Ikki, os olhos verdes o encarando com medo.

– Por favor, Ikki, não me deixe. Fique do meu lado mais uma vez, eu preciso de você.

Ikki nunca foi muito bom em resistir aos apelos de Shun, mas estava confuso, perturbado por diversos sentimentos que retumbavam em seu peito. Levou as duas mãos ao rosto do irmão e se inclinou para frente, beijando os cabelos dele.

– Eu nunca seria capaz de abandoná-lo, Shun. Mas eu preciso ficar sozinho por um tempo. Eu preciso entender melhor isso. Eu vou embora, vou ficar fora por um tempo.

– Não! – Shun soluçou de forma sofrida – Isso é por minha causa...

– Não. Eu já tinha decidido deixar o santuário, se não acreditar em mim, pergunte a Shaka, essa decisão foi antes de eu saber de- disso. – Volveu amargurado.

Shun sabia que aquele era o menor dos problemas do irmão. Sensível, percebia e entendia todos os dilemas íntimos de Ikki e se apiedava dele, pois sabia que era um caminho impossível de percorrer aquele.

– Você prometeu ficar comigo depois que as lutas terminassem, Ikki. Por que está partindo? – Shun não conseguia convencer-se de que o irmão falasse a verdade ou ao menos esperava que ele se abrisse consigo. Eram irmãos afinal.

– Shun, eu vou voltar, eu prometo, mas preciso ir. Eu preciso, irmão.

O mais novo limpou as lágrimas e se afastou do mais velho. Conhecia Ikki, sabia que ele possuía aquela necessidade de solidão. Até estranhava que ele estivesse há tanto tempo no santuário. Não podia obrigá-lo a ficar, sabia.

– Então vá, irmão. Mas vá dizendo que me entende, que me perdoa...

– Eu não tenho nada a perdoar, Shun. Quero apenas que seja feliz, mesmo de uma forma que eu não acredito. E se aquele psicopata o magoar de alguma forma, eu voltarei aqui e dessa vez, ele não vai simplesmente conseguir ir embora.

Shun conteve um soluço. Aquelas palavras doeram, clara advertência. Mas não queria brigar com Ikki, não queria que ele partisse chateado.

– Não quero que vá, irmão. Sabe que preciso de você aqui. – Ele disse, dolorido. – Passamos tanto tempo longe um do outro e quando finalmente temos a chance, quando finalmente podemos viver em paz... Você vai embora. Mas é sua vida...

– Você sabe que cedo ou tarde eu vou voltar, Shun. Também sabia que eu não ficaria aqui por muito tempo. Mas eu sempre voltarei quando você precisar, irmão.

– Eu sei. Eu confio em você, Ikki. Eu aceitarei isso. – Falou, enxugando os olhos.

Ikki tentou sorrir. Temia por Shun, temia pelo coração do irmão, mas no fundo temia também que ele não mais precisasse de si. Pensar que Shun era adulto, capaz, forte o suficiente para não mais precisar dele o enchia de orgulho, mas também deixava certo vazio em seu peito. Ele não era mais seu irmãozinho, agora era realmente um homem.

Eles se abraçaram novamente e depois jantaram, conversando, despedindo-se. Ikki partiria no dia seguinte, mas antes ainda iria ao santuário. Despedir-se-ia do mestre e da deusa. E seguiria seu solitário destino.

**Possible Love**

Quente. Assim era aquela noite em que o cheiro das rosas em seu jardim tornava-se sufocante. Afrodite estava no jardim observando a noite enluarada. Em seu peito vários sentimentos contraditórios gritavam, várias lembranças, lembranças de outra noite quente, de outros momentos...

Passou a mão no peito, no lugar do coração, por cima da túnica branca que usava, parecendo que assim conseguiria massagear o próprio músculo ferido.

“Admito que seja belo, Afrodite, muito belo. Mas acho que essa beleza o deixou vaidoso e cego. O que acha que o faz tão especial para que eu queira repetir o acontecido?”

Aquelas palavras queimavam seu ego e ao mesmo tempo lhe causavam certa tristeza. Não entendia o que sentia, não entendia por que Kanon passou a perturbá-lo tanto.

Mas a noite era quente. O calor atiçava seu corpo, fazia-o desejar encontros licenciosos, fazia-o querer repetir coisas que jurou jamais repetir.

Desceu as escadas lentamente, hesitante, pensando em voltar a todo o momento...

“Não se dê maior importância do que de fato tem. Você foi apenas um amante, alguém descartável como tantos outros. Foi apenas sexo, nada mais que isso, afinal, somos cavaleiros e outros sentimentos não fazem parte da nossa vida, esqueceu? Não devemos amar; não devemos nos envolver com pessoas que venham a chorar nossa morte, e isso inclui outro cavaleiro.”

Mordeu os lábios, parando na metade da escadaria, na altura da casa de libra... Pensou em voltar, mas respirou fundo e resolveu prosseguir. Precisava acabar aquilo naquela noite. Ou começar.

Desceu o lance de escada e mais um, chegando à casa de gêmeos. Os archotes acesos lançavam sombras fantasmagóricas nas paredes, deixando um clima sombrio e ao mesmo tempo sensual unido ao calor sufocante daquela noite.

Adentrou o grande salão vendo sua silhueta refletida nas pedras do piso polido. Andou devagar, olhando ao redor dentro da escuridão do templo.

– Insônia também? – a voz grave de Kanon perguntou, e o loiro viu a silhueta dele, meio ocultada nas sombras.

O cavaleiro de peixes não respondeu, mas andou até ele, devagar, bem diferente dos seus passos sempre decididos e arrogantes. Mirou os olhos verdes dele que pareciam mais profundos e vivo naquela meia escuridão. Os olhos claros do pisciano demonstravam toda sua angústia como se fosse um rio de águas transparentes onde coloridas carpas nadavam, ampliando a beleza daquelas águas.

Kanon continuou mirando-o profundamente, sem nada dizer, não precisava. Ele apenas abraçou o loiro, quando ele encostou a cabeça em seu peito, como uma criança carente, pedindo mudamente que aqueles braços fortes o confortassem, mesmo que não entendesse o que sentisse, o que quisesse. Mas entendia do que precisava.

**Possible Love**

Os pássaros cantavam quando amanheceu, e Shun andava pensativo em direção ao santuário. Estava triste com a viagem do irmão, mas a vida continuava e ele teria que dar aulas para as crianças naquele dia também.

Nem bem chegou ao santuário e elas já o cercavam, pedindo atenção, querendo ficar com ele, carregar seus livros. Era tão gratificante que logo a melancolia foi embora enquanto ele aproveitava a manhã ao lado daqueles pequenos anjos.

Na casa de câncer, Máscara da morte estava inquieto. As palavras ditas e não ditas na noite anterior ainda o incomodavam, embora ele houvesse tentado demonstrar a Shun que não. Por que precisava ser daquela forma? Por que precisavam se esconder quando não estavam fazendo nada de errado?

Durante a festa de Afrodite, alguns cavaleiros deixaram claro o amor que sentiam, mas isso foi na festa de Afrodite e Dionísio, a festa em que era permitida a embriaguez do vinho e das paixões. No dia seguinte, a ordem militar precisava ser estabelecida, e cavaleiros e amazonas que na noite quente dos Proscritos haviam se amado, beijado, consumido-se nos corpos uns dos outros, voltavam a ser simples soldados; pessoas escravizadas pela Ordem de Athena. Pessoas escravizadas pelos deverem dos sagrados.

Não havia dúvidas. Eles eram especiais. Eram sagrados. Santos. E com isso, estavam proibidos de sucumbirem aos desejos e vilezas das pessoas comuns. Não eram simples guardas, simples soldados, eram aqueles que dominavam a sagrada técnica de controlar o cosmo, uma pequena parcela de um poderoso universo dentro do próprio corpo. Sim, não eram comuns, mas ainda assim, eles eram humanos.

Se bem que às vezes, ele duvidasse que alguns dos seus companheiros fossem humanos. Shura de Capricórnio nunca sorriu, achava que ele nunca sorriu em sua vida. Só se lembrava de uma vez que o viu sorrir e ele estava... ao lado de Aioros de Sagitário. Imaginava quanta dor aquela alma grave carregava para que toda a alegria de viver fosse ceifada dele. Já não era afeito ao riso desde menino, se tornou um autômato da morte quando cavaleiro.

E a noite insone avançava pela manhã com aquela mesma inquietação. Câncer sabia o que fazer, mas não sabia se era o certo. Fazer aquilo sem falar com Shun primeiro não parecia o mais sensato, mas...

“Ora, que se dane!” Disse e deixou o templo, subindo as escadarias em direção à sala do grande mestre.

**Possible Love**

Afrodite virou-se na cama e despertou sobressaltado quando percebeu que o sol já ia alto no horizonte. Pela deusa! Havia perdido a hora e estava na casa de gêmeos.

Observou que estava sozinho no quarto, diferente da última vez que acordara ali. Suas roupas estavam novamente dobradas sobre uma cadeira e as sandálias num canto. Ergueu-se e foi até o banheiro, onde se lavou, voltando ao quarto e se vestindo, deixando o cômodo minutos depois.

Passou direto pelo salão principal subindo as escadas. Não se deu ao trabalho de procurar o cavaleiro de gêmeos; ainda não sabia que tipo de conversa ter com ele, embora, dessa vez não se sentisse tão incomodado por ter partilhado seu leito.

Atravessou as casas, pensativo, e acabou sorrindo com a ironia da vida. Ele que sempre desprezou tanto aqueles que se encontravam de maneira furtivas por aquelas escadarias estava fazendo exatamente o mesmo e ao contrário de se sentir envergonhado, sentia como se acordasse um homem diferente, um homem melhor do que fora na noite anterior. O que mudara em si?

Talvez estivesse somente sexualmente feliz. Pensou quando chegou ao templo de capricórnio e parou ao encontrar o guardião do templo sentado em seu trono como se fosse uma estátua.

Afrodite fez um cumprimento de cabeça que foi repetido por Shura.

– Bom dia, cavaleiro, posso passar por sua casa? – Indagou como praxe.

Shura o mirou sem nenhuma expressão no rosto,mas o sueco percebia que ele se perguntava mentalmente o motivo de o outro estar fora da sua casa tão cedo.

– Claro que sim, Peixes. – Ele, porém, respondeu sem expressar sua curiosidade e Afrodite seguiu para sua casa, pensando que desfrutaria de mais um dia da ociosa paz que tomara aquele santuário sem batalhas.

**Possible Love**

– Espero que entenda o meu motivo de vir aqui. – Máscara da morte disse a um Saga visivelmente surpreso com suas palavras. – Sei que muitos não acham digno fazer tal comunicação, mas... Sempre assumir as coisas que faço, das certas às mais erradas, Mestre.

Saga trocou um olhar com Saori, a quem mandara chamar assim que o cavaleiro se apresentou. A garota deusa apenas sorriu, sem interferir na conversa.

– Eu admiro muito sua coragem e sinceridade, cavaleiro. – O grande mestre começou a dizer – Contudo, há um ato que deixa expressa a recomendação de não haver envolvimento entre cavaleiros. Não quero dizer com isso que censuro tais envolvimentos, assim como não fingirei que não sei da existência de tais relações. Mas você vir aqui, me fazer um comunicado oficial de que está... namorando o cavaleiro de bronze Shun de Andrômeda, me deixa realmente... Sem saber o que fazer! – Saga riu de leve, mais nervoso que descontraído.

Io vim aqui, mestre, perché reconheço que devo satisfações dos meus atos somente ao senhor e a deusa. E não mais admitirei nenhum interrogatório de terceiros sobre minha vida particular – ergueu os olhos para mirar o mestre e a deusa respectivamente –; nem da Tropa e nem da Kripteia.

Saori engoliu em seco. Sabia que aquela advertência era mais uma ameaça, e conhecia o canceriano bem o suficiente para saber que ele não aceitaria mais nenhum tipo de interferência daqueles dois setores do santuário em sua relação com Shun.

– Máscara da morte, eu entendo como se sente e fico muito grata que tenha confiado em nós o suficiente para abrir o seu coração. – A deusa disse com carinho. – Tenha certeza que o mestre e eu vamos pensar a respeito do que faremos referente a isso e não deixaremos essas informações a crivo da Kripteia ou da Tropa, afinal é a sua vida, mesmo que seja também a vida de um santo de ouro.

– Obrigado, Athena. – Ele disse, permanecendo de joelho de frente aos dois. – O que faço agora? Devo me afastar de Andrômeda até que decidam?

– Não é necessário. – Saga se pronunciou. – Tudo deve continuar como está até que o chamemos novamente.

– Sim. – Saori concordou. – Pode se retirar, cavaleiro.

Máscara da morte se ergueu e assentindo com a cabeça, deixou o décimo terceiro templo. Saori e Saga se entreolharam entre divertidos e preocupado.

– O que faremos? – Ela indagou.

– Convocaremos Shion e Dohko – Saga adiantou-se a dizer, fazendo a deusa rir.

**Possible Love**

O servo levou até ele uma bandeja com chá gelado, e o budista assentiu com a cabeça, agradecendo, antes do rapaz se retirar. Estava quente, e ele se refugiara na biblioteca do seu templo. Ali, embora pequeno, era um lugar fresco, devido à umidade natural do andar inferior. Também não usava a armadura, não seria louco, somente a kasaya vermelha que se amarrava a cintura, passando por um dos ombros e cobrindo o corpo magro até os pés.

Abriu um livro, um dos vários que continha os textos sagrados dos Vedas, mas especificamente o rigveda, o livro dos hinos, e começou a cantar um, baixinho, aquilo o acalmava. Não que Shaka de virgem fosse um homem de perder a calma, isso nunca. Na verdade nem se considerava mesmo um homem: era um deus preso num invólucro carnal. Não era humano, mas estava condenado a carregar consigo toda a perplexidade daquela raça extremamente complexa – amor, ódio, orgulho, inveja, todos os sentimentos que fazem parte da matéria humana até que alma se expanda no universo. - Condenado a sofrer o martírio de ser mortal e estar tão próximo de uma divindade que jamais alcançará... Sagrado do céu ao inferno e do inferno ao céu... E ainda assim...

Entoou mais alto o hino escolhido, sentindo uma sombra negra aproximar-se de si. Aversão e desejo, os pais da existência samsárica. As sombras negras que cercavam todos os seres carnais e não deixariam de envolver um deus que habitava um mundo de carne e sangue.

Raiva e luxúria, essas inimigas, não têm membros nem qualidades, não têm bravura, nem inteligência.Como então foram me reduzir a tal escravidão?

Fechou os olhos, cantando mais alto ao sentir aquele cosmo se aproximar. Sabia que não escaparia a um confronto. O sâmsara, a escravidão do ser.

Ergueu-se de onde estava e subiu as escadas em direção ao salão do templo, onde ele estava parado o aguardando. Estava muito quente. Encarou os olhos escuros, aquele queixo que nunca se curvava como deveriam se curvar os queixos diante de uma divindade. Sorriu com desgosto ao pensar nisso e tentou analisar se todo o treinamento profundo engendrado para ele não fora feito para cumprir a função de dobrá-lo e não a de ensiná-lo.

Duvidou de si. Duvidou dos seus atos. E isso para um deus era uma vergonha.

— Vim me despedir. — A voz grave disse. Ele mantinha a mesma distância que ambos sempre mantiveram.

O asceta assentiu com a cabeça, em silêncio e virou-se, como quem tenciona se retirar.

— Shaka...

O nome daquele corpo. Daquele corpo que assim como todo ser carnal continuava escravo de suas emoções e desejos. A mente que tolera as aflições e as convida para sua casa, deixando-as fazer morada ali.

Virou-se e o encarou, o rosto ainda parecendo um mármore frio.

— Deseja dizer mais alguma coisa, Ikki?

Ele se aproximou lentamente, os passos firmes e destemidos que já conhecia bem. Deixou a caixa da armadura que até então estava nas suas costas no chão.

— Preciso fazer uma pergunta.

— Faça. — Abriu os olhos. Nem um passo em recuo. Ficou o encarando dentro daquele mar escuro de dores que eram os olhos do cavaleiro de bronze.

— Por que fez tudo isso? Por que quase me matou naquele treinamento cruel? Deve ter algum motivo...

— Como mestre, é meu dever transformá-lo no guerreiro perfeito. E nunca será um guerreiro perfeito enquanto estiver preso às emoções. Nunca será indestrutível, inatingível, enquanto não se libertar da prisão das emoções e do desejo, Ikki.

O moreno deixou um sorrisinho sarcástico escapar pelo canto dos lábios.

— Ao contrário de você, mestre, eu sou simplesmente humano.

— Isso não significa que não possa se libertar. Acontece que vocês, humanos — e essa última palavra foi dita com todo o desprezo que uma voz pode carregar —, são apegados a essa dor, a essas emoções que não possuem outra morada além das suas próprias mentes. Estão reduzidos a essas aflições pequenas, a esta condição abjeta de escravidão e sofrimento, destituídos de qualquer liberdade, e tais ações acabam custando toda suas vidas medíocres. Você também é um escravo, Ikki...

— Não sou.

— É, embora não saiba.

O moreno calou-se, mas continuou olhando o mestre dentro dos olhos, em desafio.

— Nem todas as emoções são ruins, Shaka. Há amizade, companheirismo, lealdade, compaixão, amor...

— Ainda assim são prisões — dessa vez o loiro deu-lhe as costas antes de responder. — Mas você é livre para buscar seu caminho, não o impedirei.

— Você não gosta de falar dessas emoções, não é? Não gosta de reconhecer a utilidade delas, não gosta de senti-las — aproximou-se mais dele, porém, sem tocá-lo, não seria tão desrespeitoso para tocar em algo sagrado, não naquele momento.

— Meu amor pelo universo e por tudo que nele existe é ilimitado, Ikki, e entre nós dois, só eu o conheço. Não confunda seu apego e paixão com amor — riu de leve, irônico. — Vocês sempre confundem as palavras.

— Talvez... Mas são sentimentos que nos fazem vivos, que fazem com que valha a pena cada dia, cada dor... Você tem razão, nunca conseguirá sentir isso. Nunca poderá entender.

Caiu o silêncio como uma cortina branca de seda entre eles, no tempo em que o asceta analisava aquelas afirmações.

— Por que não?

A pergunta pegou o cavaleiro de fênix de surpresa, e ficou ainda mais surpreso quando Shaka se virou e voltou a aproximar-se dele.

— O que o faz pensar que não sei do que estou falando? Como é arrogante, Ikki de Fênix, ousa dizer que não entendo desses efêmeros sentimentos que defende?

O moreno deixou escapar um sorriso irônico com o canto dos lábios, mirando o outro dentro daqueles profundos olhos azuis que pareciam chamas, melhor, pareciam um abismo de penitências, o túnel que levaria ao purgatório ou a total perdição. Eram olhos de um anjo, um anjo cruel e vingativo, que detestava sua humanidade forçada.

— Você não conhece a dor, Shaka. Durante toda sua vida só a observou, nunca sentiu. Não conhece os sentimentos, durante toda sua vida só refletiu sobre eles, nunca os sentiu. Não sabe o que é amor, porque amor é compaixão, a qual você mesmo disse que não tem, e não sabe o que é a paixão, porque mesmo que seu corpo seja mortal, sua alma é indiferente como a de um deus arrogante...

A respiração do loiro alterou-se minimamente, mas Ikki sentiu, sentiu o suficiente para pensar em recuar, mas não houve tempo.

Todavia, o golpe esperado foi bem diferente do que imaginava, as mãos macias do cavaleiro de ouro o segurou pelos ombros e girou seu corpo, fazendo-o ser amparado por uma parede próxima e no momento seguinte, sob o olhar chocado do leonino, o cavaleiro de virgem cobriu-lhe a boca com a sua.

Ikki ficou alguns segundos em choque com aquilo, até que sua mente se apagou para toda a situação inusitada e ele se viu correspondendo ao beijo de uma forma ensandecida que talvez tenha surpreendido o cavaleiro mais velho. Era entranho, sua boca parecia ser independente quando passou a devorar a boca extremamente macia de Shaka, levando as mãos aos cabelos dele, cabelos que sempre teve vontade de tocar, vontade por anos sobrepujada e que agora se fazia viva, irrefreável...

As línguas se provavam de forma intensa, louca. Parecia haver uma explosão de sentimentos, como se fosse um gêiser, água quente que sob extrema pressão se mantinha no subsolo, mas que quando explodia, surgia com uma força demolidora, irreprimível.

Entretanto, apesar de todo o ardor com que beijava aquela boca carnuda e saborosa, Shaka não era um homem de se descontrolar totalmente e quando Ikki desceu a mão por seu pescoço e sondou o nó da Kasaya em seu ombro, ele segurou o pescoço do cavaleiro mais jovem e o afastou, os olhos presos aos dele, os lábios de ambos abertos puxando o ar.

— Shaka...

— Não fale... — ordenou ofegante e depois respirou fundo, como se tentasse recuperar seu estado comum de espírito.

Ikki pensou em protestar contra aquela imposição de silêncio, mas quando iria abrir os lábios novamente, viu a pinta na testa de Shaka irradiar uma luminosidade, assim como seus olhos, e ele fechou os olhos, os protegendo daquela luz intensa e quando os abriu... Não lembrava-se de nada que havia acontecido nos últimos minutos.

Sabia apenas que estava ali para despedir-se do mestre. Ikki piscou meio confuso e mirou Shaka que estava a alguns metros de si. Estava meio entorpecido, como alguém que desperta de um sono ladrão no meio de um discurso enfadonho.

— Vim me despedir. — Falou, sem saber que já havia falado aquilo, momentos antes.

— Que Buda o ajude em sua busca, Ikki. — Shaka disse, tentando disfarçar seu estado real depois de todos os acontecimentos e conseguindo isso com mestria.

— Tenho uma pergunta.

— Faça.

— Por que fez tudo isso? Por que quase me matou naquele treinamento cruel? Deve ter algum motivo...

Shaka deixou um sorriso leve escapar dos seus lábios ainda um tanto ofegantes e que queimavam.

— E há. Saberá no momento certo. Faça boa viagem.

O loiro disse e deu as costas ao cavaleiro de bronze, indo para seu jardim. Necessitava de meditação, mais do que água, mais do que alimento, necessitava conversar com seu mestre.

Ikki ficou o observando por um tempo e saiu do templo em seguida. Deixou o santuário antes que a noite caísse.

**Possible Love**

Era noite, Shun estava no templo de câncer. Não queria ir para casa e dormir sozinho aquela noite. A falta de Ikki seria muito dura, sentir-se-ia muito solitário, e o namorado dissera também que gostaria de conversar consigo. Todavia, eles haviam jantado e agora viam um filme na TV sem que Ângelo houvesse aberto a boca para dizer nada a Shun. Não queria deixá-lo mais triste ou preocupado do que ele já parecia com a partida do irmão.

O italiano estava calado há um longo tempo, apenas afagando os cabelos do mais novo que não prestava em nada atenção à TV, a mente perdida demais.

— Não entendo por que ele foi embora... — Shun falou depois de um suspiro. — Apesar de tudo ele sempre esteve do meu lado. Sempre que precisei...

— Talvez ele ache que você não precise agora, Piccoli.

— Eu sempre precisarei dele, ele é meu irmão.

— E é bom? Precisar das pessoas? Não vejo vantagem nisso, Piccoli.

— Sempre precisamos de alguém, Ângelo. Esse santuário não se manteria com apenas um cavaleiro ou mesmo a deusa. Nenhum homem é uma ilha, já diria...

— Ernest Hemingway — Máscara da Morte completou com um leve sorriso. — Li há muito anos “Por quem os sinos dobram”, foi um presente.

— De quem?

— Shion. Ele achava que eu... precisava refletir sobre ser um guerreiro... Sobre a guerra.

— Ajudou?

Máscara da morte riu. — Não muito, eu continuei gostando de decapitar as pessoas mesmo lendo coisas como “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”, na verdade, eu acho que gostei especialmente dessa frase porque...

— Por quê? — Shun virou-se para encará-lo, mas os olhos do italiano pareciam distantes.

— Porque ela me dava um motivo para não me sentir culpado. Matar era como cometer suicídio e eu me suicidava em cada cabeça que arrancava...

Shun ficou um tempo o encarando, e depois se ergueu e o abraçou, sentando-se no colo do namorado.

— Isso acabou. Não precisa mais se suicidar diariamente — sorriu, afagando o rosto dele. — Acho que se compreende melhor agora...

— Será, Piccoli? — ele encarou o namorado. — Talvez nada tenha mudado. Sou o mesmo doente psicopata cortador de cabeças e quando isso for necessário...

Shun tocou os lábios dele com os dedos o silenciando. Não queria ouvir aquilo. Não acreditaria que Ângelo era aquilo que ele falava. Ele tinha um coração tão grande, podia sentir. Ele só precisava encontrá-lo.

— Eu acredito em seu coração — Shun disse e sorriu, beijando-lhe os lábios em seguida. — Por isso acho que você precisa tentar...

— Tentar o quê? — Máscara da morte franziu as sobrancelhas, confuso.

Shun segurou o queixo dele, olhando-o nos olhos.

— Desde que estou aqui, eu não o vi vestido em sua armadura.

— Não visto desde que voltei... — Câncer murmurou, pensativo.

— Por quê?

— Não foi necessário. Piccoli, vamos ver o filme? — tentou mudar de assunto, não queria falar sobre aquilo.

— Está com medo de por a armadura? — Mas Shun insistiu, fazendo-o bufar.

Io non tenho medo de nada, Cáspita! Podemos ver o filme? — falou irritado.

— Ângelo... Não é vergonhoso sentir medo, somos humanos.

Máscara da morte resmungou algo em italiano e não respondeu, fingindo prestar atenção à TV.

— “Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se fosse um promontório, assim como se fosse uma parte de seus amigos ou mesmo sua; a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.” — Shun disse e sorriu, beijando o rosto do namorado. — E o autor é John Donne, Hemingway só pegou emprestado.

O cavaleiro de câncer sorriu com aquele carinho e aquelas palavras. Puxou o namorado para seu colo e tomou-lhe os lábios num beijo cheio de amor. Não queria falar sobre problemas àquela noite, afinal Shun já tinha tantos! Queria apenas mimá-lo, cuidar dele, mas parecia que aquele menino tinha uma capacidade incrível de esquecer-se de si mesmo e se preocupar com os outros. De todo modo, deixaria os problemas adormecidos, ao menos por hora.

Continua...


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Notas finais do capítulo

Obrigada a todos que leram e comentaram.

Beijos e até o próximo!

Sion Neblina