Amor De Gato escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 4
Epidemia




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/182818/chapter/4

Aqueles sapatos não foram feitos para chutar pedras. E daí? Qualquer coisa que desviasse sua atenção daquela tristeza era válida. Aquilo estava se tornando mais freqüente do que ela esperava. Uma vez ou outra tudo bem, mas todas às vezes?

***

– Ai, fofucho... de novo?

– Me desculpe, Magali. Eu esperei várias semanas para abrir uma vaga para esse curso. É muito importante para mim e vou aprender novas técnicas de confeitaria.

– Eu entendo, mas será que você não anda fazendo cursos demais? A gente quase não se vê...

Ele deu de ombros.

– Não podemos ficar grudados o tempo inteiro. Eu também preciso cuidar da minha carreira. Sou eu quem vai assumir o negocio da família, tenho estar preparado.

Ela engoliu em seco, tentando disfarçar a contrariedade.

– E quando a gente vai poder sair?

– Vamos fazer o seguinte: quando surgir uma brecha, eu te ligo, tá bom?

– Tá bom...

***

‘Não podemos ficar grudados o tempo inteiro’... será que eu tenho andado muito grudenta? É... talvez sim... a mãe sempre fala que os homens não gostam de muito grude, que precisam ter o seu espaço... mas eu já dou tanto espaço para ele!” Magali nunca foi uma namorada grudenta. Ela nunca se importava quando ele queria sair com os amigos, jogar bola ou vídeo-game. Também não ficava ligando o tempo inteiro, enchendo-o de cobranças. Não, ela sempre fora muito tranqüila e sossegada.

Tão tranqüila que sequer reclamava quando ele precisava cancelar um encontro por causa de um curso ou porque precisava trabalhar até mais tarde com o pai. Aquela tinha sido a primeira vez e nem foi assim uma reclamação. Apesar disso, ele agiu como se ela fosse uma chata grudenta e sufocante. Que injustiça!

Às vezes ela bem que queria ser como a Mônica, que nunca engolia nada e nem levava desaforos para casa. Ela sim saberia o que fazer naquele caso: dar um belo sacode no namorado para lembrá-lo de que ele não estava sozinho. Essa seria o tipo de coisa que a Mônica faria, não ela. Aquilo não fazia parte da sua natureza e ela decidiu que o melhor seria apenas dar um tempo e esperar.

“Se é assim, então eu nem vou ligar mais e não vou procurar. Quando ele quiser, saberá onde e como me encontrar. Não vou sufocá-lo mais.”

Ela não era orgulhosa, mas resolveu ter um pouquinho de dignidade e não ficar correndo atrás de ninguém. Alem do mais, sua vida também não se resumia ao namorado. Havia muitas coisas interessantes para fazer e amigas para conversar.

No caminho de casa, um local familiar lhe chamou a atenção. Sim, era aquele velho muro que dava para o terreno baldio. O mesmo muro onde o Cascão praticou parkeur uma vez e tropeçou em um gato, em Felicius...

Engraçado... as pessoas passavam ali perto o tempo inteiro e nem imaginavam que havia um reino naquele lugar.

Todo o seu aborrecimento com o namorado foi esquecido e ela tentou subir em cima do muro para olhar o outro lado. O máximo que ela conseguiu foi segurar o topo do muro com as duas mãos e erguer seu corpo só o suficiente para olhar o outro lado. Sua agilidade de gata não estava boa naquele dia.

Conforme ela esperava, só havia um terreno baldio. Claro, aquele reino só podia ser revelado com magia felina. Mesmo assim, ela sabia que não poder enxergar não mudava o fato de que o Reino dos Gatos estava ali... e Felicius também. Se ela pudesse ao menos ter um vislumbre do local... só um pouquinho...

A moça tentou forçar a vista, ignorando suas mãos que doíam por terem que segurar o peso do seu corpo. Uma paisagem diferente se sobrepôs ao terreno e por instantes ela teve a impressão de ter visto o palácio. Foi muito rápido e como suas mãos não agüentavam mais segurar seu peso, ela teve que descer do muro.

“Nossa... será que eu vi mesmo ou foi só imaginação minha? Sei lá, ando vendo tanta coisa...” ela lembrou-se do gato que tinha visto na escola, de manhã. Embora parecesse tão real, de carne e osso, ninguém mais pode vê-lo. Só ela. Talvez com o Reino dos Gatos fosse a mesma coisa. “Seria tão bom se eu pudesse ver alguma coisa de verdade... só ver, né? Entrar ali nem pensar!” da ultima vez que ela tinha visto o rei, ele estava furioso e deixou bem claro que não queria saber de mais nenhum humano por ali. Entrar estava fora de questão, mas pelo que ela sabia olhar não arrancava pedaço de ninguém. O professor Rubens era prova disso.

Como não tinha mais nada para fazer ali, ela foi embora para casa esfregando as mãos para aliviar a dor. Tinha valido a pena, apesar de tudo. Teria sido melhor se ela pudesse saber como andam as coisas por lá. Certamente tudo devia estar bem. Por que não estaria?

***

O cenário era desolador. Por todos os lados, havia pessoas doentes, deitadas em camas e muitas estavam agonizando. O hospital havia ficado lotado e foi preciso adaptar outros prédios para atender a demanda de doentes. Se as coisas continuassem daquele jeito, ninguém mais naquele reino ia escapar daquela gripe felina.

As pessoas tossiam e espirravam a toda hora, sentiam dores pelo corpo inteiro e mal conseguiam comer por causa da dor que sentiam na garganta. Aquela doença deixava todos fracos, debilitados e a cada dia piorava mais.

O rei estava sentado em seu trono, muito preocupado. Ele e os demais membros da corte tinham sido colocados sob um esquema de segurança, para garantir que eles não fossem infectados pela doença. A última coisa que aquele reino precisava era perder o seu rei, já que o príncipe não estava nada bem.

Apesar de a doença ter evoluído muito mais lentamente nele do que no resto do povo gato, ainda assim seu estado estava piorando.

O médico real estava diante do rei, ajeitando seus óculos e se preparando para dar o relatório daquele dia.

– E então? Alguma novidade?

– Infelizmente não, majestade. Mesmo com os nossos melhores esforços, ainda não conseguimos encontrar uma cura para esse mal que aflige nosso reino.

– Céus... eu tinha esperança de que descobrissem alguma coisa estudando os humanos.

– Bem, na verdade descobrimos uma coisa sim, que é bem curiosa. Não sei se o senhor percebeu, mas os gatos que convivem com os humanos são imunes a essa gripe.

– Como assim? Então quer dizer que não foram os humanos que infectaram nosso povo?

– Não, majestade. Essa gripe sempre existiu entre nós. A diferença é que o vírus deve ter sofrido algum tipo de mutação que tornou essa doença ainda mais forte e letal.

– Por que os gatos que convivem com os humanos não são afetados?

– Minha teoria é de que eles são expostos a vários tipos de doenças e infecções e parece que isso fortaleceu o sistema imunológico deles.

O rei tentava acompanhar aquela explicação, com a fisionomia carregada. Que desagradável não poder sequer punir os humanos por causa daquela epidemia! Se aquilo tudo fosse culpa deles, ele não ia ter a menor piedade de ninguém.

– O nosso povo, por outro lado, sempre viveu distante e isolado dos humanos, então nosso sistema imunológico não se fortaleceu.

– E quanto ao Felicius? Ele passou um tempo com os humanos.

– Sim, e é por isso que a doença está evoluindo muito mais lentamente nele do que nas outras pessoas. Se a convivência dele entre os humanos tivesse sido mais prolongada, acredito que ele estaria imune agora.

– Mas será que essa convivência não o fortaleceu suficiente para suportar a doença?

– Digamos que sim. Com tratamento adequado, era de se esperar que com o tempo ele se curasse e adquirisse imunidade ao vírus.

– E então por que diabos ele está piorando a cada dia? – o rei falou alterando um pouco a voz. Aquelas explicações chatas e tediosas não estavam resolvendo o problema de ninguém.

O velho doutor raspou a garganta, tentando encontrar as palavras certas. O rei não estava num bom dia e irritá-lo sempre era má idéia.

– Minha experiência como medico ensinou que o estado de espírito da pessoa também influencia em seu estado de saúde. Pelo que eu pude constatar, sua alteza não está exatamente num bom estado de espírito.

Por mais irritante que fosse admitir aquilo, o rei sabia que era verdade. A depressão de Felicius parecia estar piorando seu estado já debilitado. Tudo culpa daquela garota humana que pareceu ter mexido com seu filho. Desde aquele dia, ele nunca mais foi o mesmo. Às vezes ele sentia vontade de puni-la. Só não fazia por causa do filho. Ele nunca ia perdoá-lo se algo acontecesse com aquela moça. No entanto, se seu herdeiro morresse alguém ia ter que pagar por isso.

– E não há nada que possamos fazer por ele? Você sabe que ele é meu único filho.

– Infelizmente, só podemos cuidar dele da melhor forma possível, majestade. Nada mais pode ser feito. – na verdade, ele sabia que havia algo que podia ser feito. O problema era criar coragem de sugerir tal coisa ao rei. Ele certamente seria jogado às feras se falasse alguma coisa.

***

“O cheiro dela está sumindo...” ou seria seu nariz que estava entupido por causa da gripe? Talvez fosse isso também. Que droga... a única coisa que o fazia se sentir melhor era poder sentir o cheiro dela de vez em quando e nem isso ele podia fazer mais.

Quando os humanos foram embora, ele viu os criados juntando seus pijamas e camisolas para colocarem fogo em tudo. Aqueles trapos não iam servir de nada para ninguém. Foi quando algo lhe ocorreu e antes que os criados queimassem tudo, ele revirou a pilha de roupas procurando por duas peças em especial. Uma blusa e uma calça, que ela estava usando quando chegou ao reino. Foi fácil reconhecer o cheiro dela. Os gatos não eram bons farejadores como os cães, mas ainda assim eram capazes de identificar cheiros familiares.

Desde então ele guardava aquela peça com muito cuidado, longe das vistas do pai. Então, quando a saudade apertava, ele as cheirava um pouco e relembrava o tempo em que ficaram juntos. Tão pouco tempo...

Se ele soubesse que ia ficar doente, teria dado um jeito de se aproximar dela mais uma vez, uma última vez. Quem sabe roubar um beijo? Como seria beijar a boca de um humano? Que gosto teria? A pele deles parecia ser tão fina! Seria preciso algum cuidado para não ferir os lábios dela com suas presas.

Ele também teria lhe dado um presente melhor. Será que ela guardou aquela lata? Ele queria acreditar que sim. Se ele ao menos tivesse colocado algo a mais junto com a lata, talvez uma jóia. Seu pai havia ordenado que todos os humanos fossem embora rapidamente e sua palavra era sempre lei. Não sobrou tempo para conseguir algo melhor para dar a ela.

Agora ele não podia fazer mais nada. No estado em que estava, ele mal conseguiria sair do palácio, quanto mais se aventurar no mundo dos humanos atrás dela. Se ele ainda pudesse ter alguma esperança de vê-la novamente, conseguiria reunir forças para combater aquela doença. Quem sabe, algum dia? Quando ele se tornasse rei, estaria livre do comando de seu pai e poderia ir procurá-la sem medo nenhum. Não... até lá ela já estaria casada com aquele gorducho, aí seria tarde demais. Estando casada com outro e talvez até com filhos, ela não ia querer largar tudo para ir embora com ele. Que droga!

Ele sempre tentou ser bom filho e obedecer às ordens do pai e aquilo só o estava infelicitando cada vez mais. Primeiro teve que trapacear durante os desafios, coisa que ele fez a muito contragosto. Depois o medo de ir encontrar com ela pessoalmente e contrariar o pai. Seria justo sacrificar sua felicidade daquela forma? Ele não estava fazendo nada que prejudicasse o reino.

“Não adianta mais pensar nisso. Agora é tarde, acabou.” Ele suspirou tristemente colocando a roupa de volta ao seu lugar secreto. Era tarde para ir procurá-la, tarde para desafiar seu pai, tarde para tudo. Exceto para morrer. Para isso nunca era tarde.

***

– Ai, que coisa deprimente!

– Não fale assim, o rapaz está deprimido.

– Pois saiba que ficar deprimido não resolve nada. Eu ainda prefiro a alegria do que a tristeza.

– Como você é fria...

– Não é frieza, amigo, é lógica. Esse bobão está fazendo todo esse drama e não sabe que as coisas vão acabar se ajeitando.

– Se você diz...

– Eu sempre estou certa. Agora vamos que ainda temos muito o que fazer.

Os dois desapareceram deixando-o sozinho com seus pensamentos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Amor De Gato" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.