A Esperança Dos Renegados escrita por Aldneo


Capítulo 26
CAPÍTULO IV: O Jantar




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No meio da madrugada, Deborah acorda, dolorida e nauseada, em um lugar desconhecido, um quarto fechado, por sobre uma cama (que mais pareceria uma maca) que nunca tinha visto. Um lençol lhe cobria até a altura dos ombros e ela sentia ter permanecido inconsciente por um período de tempo considerável.

 

Ainda zonza, a garota tenta se levantar e se põe sentada na cama, o lençol a descobre parcialmente, sendo o momento que ela percebe estar sem a parte superior de suas roupas. Em um reflexo, ela rapidamente puxa o lençol para cobrir os seios, esta reação acabaria por servir para ela despertar mais rápido e, também, para perceber o curativo em seu ombro direito, onde fora mordida. Uma dor fraca ainda vinha do ferimento, principalmente quanto ela se mexia.

 

Ela se levanta da cama, percebendo estar também descalça quando seus pés tocam o chão liso e limpo do local. Fazia muito tempo em que seus pés descalços não tocavam o chão, e este não se mostrara tão frio quanto o esperado, ainda que a sensação, pela falta de costume, era um tanto incômoda, mas nada que realmente lhe importasse naquele momento. Enquanto se levanta, ela enrola o lençol em torno do corpo para se manter coberta, e passa a olhar ao redor, procurando suas coisas, embora, de fato, tudo o que havia naquele local era a maca em que estava, uma outra vazia paralela a ela e uma pequena mesinha entre as duas, sobre a qual não havia nada. Não encontrando nada que lhe fosse familiar, ela sai daquele “quarto”, cuja porta conduzia a um corredor, um corredor completamente fechado, sem qualquer janela, cuja iluminação provinha de lâmpadas fluorescentes tubulares, dispostas em uma linha no teto, o que, de fato, deixava o corredor bem iluminado, contrastando com o quarto escuro em que ela despertara (embora neste, era apenas o caso da luz estar apagada e ele não ter percebido o interruptor ao lado da porta).

 

A medida em que ela seguia cautelosamente o corredor, um suave e doce aroma podia ser percebido no ar, o qual trazia um gosto agradável, embora desconhecido, a sua boca. O corredor possuía uma curva, e pouco após esta curva uma nova porta, a qual se encontrava entreaberta. A garota se aproxima da porta e, cuidadosamente, temendo ser percebida, adentra ao interior do novo cômodo, também bem iluminado por lâmpadas fluorescentes. Ali, ela vê, entre alguns balcões de inox, um homem de costas, mexendo em algum aparato, que ela não conseguia ver, por estar do outro lado dele. O homem já aparentava certa idade, com cabelos agrisalhados, e um pouco calvo, percebia-se a pele bem branca, pálida, típica de alguém que sai pouco ao sol, ele vestia um jaleco verde-azulado com uma espécie de avental por cima, o qual um dia teria sido branco, porém agora já se apresentava um pouco amarelado. No momento em que a garota começara a adentrar o local, com ela estando ainda à porta, o homem se vira, os dois se encaram num relance, a surpresa inesperada os fazem emitir certa expressão de susto e darem um paço atrás. A garota, instintivamente, se esconde por detrás do umbral da porta e o velho deixa cair o béquer, que segurava com uma tenaz metálica, que, ao atingir o chão, se despedaça e derrama o líquido transparente e um pouco esverdeado que continha, o cheiro adocicado que antes se sentira no corredor, agora passara a inebriar completamente o local. Após retomar o fôlego, o homem se dirige a garota, tentando um tom amigável:

 

— “Desculpe, jovem, mas você me assustou um pouco, não esperava vê-la aqui... Mas é bom ver que já se recuperou... Estava preparando um chá para o seu desjejum, mas, bem, agora ele está escorrendo pelo chão...”

 

Por detrás do batente da porta, encostada com as costas na parede, Deborah acha a voz estranhamente familiar, ao que leva alguns segundos até reconhecer que aquela voz, apesar de um pouco distinta por não estar mais sendo distorcida pelos filtros da máscara de gás, era do homem que anteriormente a salvara dos infectados. - “Ah, onde estão meus modos!” - homem recomeça a falar - “Desculpe, jovem, eu não me apresentei, sou o Dr. Yosef Attick... bem, creio que formalidades já não importam, não é? Então, sou apenas Yosef, perdoe minha falta de jeito, é que, não recebo visitas há muito tempo...” Enquanto ele ainda falava, a garota toma coragem e volta a adentrar o cômodo, que era, na verdade, uma espécie de cozinha. - “Ah..” - a garota, demonstrando também não saber ao certo como reacionar, lhe responde a conversa - “Bem, olá... meu nome é Deborah, ah... acho que tenho que lhe agradecer por mais cedo... Mas, gostaria de saber, onde estão minhas coisas...” O homem sorri, meio constrangido, e lhe responde, gesticulando com as mãos com certo nervossísmo: - “Oh, me desculpe... bem, é que você estava ferida, então precisei lhe despir para fazer o curativo... não se preocupe, eu não... é... bem, como suas roupas estavam ensanguentadas, eu as levei para lavar. Elas estão secando na estufa agora.”

 

Yosef, então, a guia até a estufa, que não ficava muito longe da cozinha, apenas um curto corredor as distanciava. A estufa em si era uma área grande, com diversas prateleiras, que lembravam um pouco degraus, em ambas laterais, onde haviam dezenas de terrários com diferentes plantas, com sistemas de regamento e iluminados por lâmpadas grolux (que imitam luz solar). “Nossa” - Deborah diz ao observar o local - “quantas plantas... já vi algumas em alguns lugares... mas aqui há tantas...”, ao que velho sorri ao ver a admiração da jovem. Enquanto Deborah caminhava pela estufa, olhando as diferentes plantas nas prateleiras e arrastando o lençol, que enrolara no corpo, pelo chão enquanto andava, Yosef seguia até uma corda, que improvisara como varal, no fundo da estufa, e apanha as roupas dela. Ele as leva para a garota, que se distraíra sentindo com os dedos a textura de uma planta que crescia em um dos terrários, identificado por uma etiqueta como “Lactuca sativa” (que não seria nada além de uma simples alface). Yosef lhe entrega as roupas, e um silencio um pouco inquietante toma o local, ao que, após alguns segundos, o doutor, percebe e lhe diz: - “Ah, sim, você precisa se trocar não é... Bem, acha que consegue voltar ao quarto em que estava? Lá poderá se trocar com privacidade, e eu... é... voltarei para a cozinha. Você deve estar com fome, prepararei algo para você.” A garota agradece, enquanto segue de volta ao quarto em que despertara, deixando o velho doutor na cozinha, que ficava no caminho. Após se vestir, Deborah se senta na maca em que antes acordara e se põe a refletir sobre o que estaria acontecendo, até que, após algum tempo, o doutor vem até a porta do quarto, chamando-a.

 

— “Espero que goste de peixe com vegetais, por que... bem, são as únicas coisas que tenho aqui...”, Yosef diz com um sorriso, enquanto põe um prato na mesa, em frente ao lugar a que Deborah estava sentada. A garota, sem saber ao certo o que acabara de lhe ser servido, mas sentindo um cheiro apetitoso, apenas exclama um “Parece ótimo”, devolvendo o sorriso, embora o dela se mostrasse um pouco mais forçado. Ainda que um pouco receosa, a garota pega um bocado com o talher e o leva até a boca. Um aroma desconhecido, uma espécie estranha de um leve misto de amargo e doce, chega a suas narinas antes dela abocanhar o bocado. Ela põe a comida na boca e mastiga devagar, logo chega a seu paladar o gosto suave da macia carne píscea temperada com ervas e acompanhada de verduras e legumes cozidos. Para alguém que havia crescido comendo carne de artrópode e hifas de fungo, aquele gosto era sublimemente divino. Os olhos da garota brilham, ela não consegue segurar um “Isso tá uma delícia!” acompanhado de um largo sorriso antes de se voltar ao prato e se deliciar com a refeição. Yosef sorri com a cena, enquanto comenta jocosamente: - “É bom ter alguém que aprecie minha culinária, levo muito tempo cozinhando apenas para mim mesmo, temi ter perdido o jeito.” Diversas garfadas depois, enquanto ingeria mais uma folhagem, Deborah comenta: - “Estranho, a ultima planta que me arrisquei a tentar comer, tinha um gosto não lembrava nem o mais remotamente isto aqui...” Ao que o velho sorri, enquanto começara a lhe explicando: - “Bem, nem todas as plantas são comestíveis, apenas certas variedades... E bem, considerando as que existem ai fora, o solo infectado não é propício para o crescimento vegetal, as poucas espécies que sobreviveram nestes ambientes são extremamente resistentes, ou sofreram mutações para se adaptar, geralmente isto não as tornam muito salubres...” O homem para de falar quando percebe a garota lhe olhando fixamente, ele a indaga se teria alguma pergunta, ao que ela, após alguns instantes de silêncio e um pouco constrangida, responde: - “Bem... será que eu posso... comer mais?” A mesa em que os dois se assentava torna a se encher de risos, enquanto ele responde positivamente, pegando o prato vazio (e completamente limpo, diga-se de passagem) da garota e o levando para enchê-lo novamente.

 

Após a refeição, os dois retornam a estufa. “Todas estas plantas são de comer?”, a garota questiona de forma ingênua, enquanto lhe é respondido: - “Diferentes plantas tem diferentes propriedades e são usadas para diferentes fins. Muitas aqui eu cultivo para fins alimentícios, porém outras eu utilizo no laboratório. Esta atrás de você, por exemplo,” - ele aponta para um terrário próximo a ela, que continha uma planta perene, de folhas pequenas e macias e flores amarelas - “é uma Allamanda, é uma planta tóxica, não serve para comer, mas a utilizo no laboratório. Lembra-se das granadas de gás que usei nos infectados? Um dos princípios ativos daquele gás eu extraí desta planta. Com aquele gás você sentiu náuseas, não foi? Pois bem, é um dos efeitos das toxinas da Allamanda”. “É, tais granadas poderiam vir a ser úteis”, a garota comenta, ao que o velho homem lhe oferece algumas altruístamente. Após ele lhe falar de algumas tantas plantas da estufa, os dois se dirigem ao laboratório. Chegando alí, ele tentaria lhe explicar alguns princípios de química avançada, de como se extraia insumos e estrados de suas plantas (o que, naquele momento, estava bem além das capacidades da garota entender). Após escutar algumas incompreensíveis explicações, ela acaba soltando uma questão que estava segurando já a algum tempo: “Me desculpe perguntar, mas, o que alguém como você está fazendo num lugar como este... e sozinho?”


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