The Dawn of Evangelion escrita por Goldfield


Capítulo 22
Lamentações




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Humanidade
“Auf wiedersehen”
É hora de dizer adeus
A festa acabou
E o riso morre
Um Anjo chora

Humanidade
É um “au revoir” para sua insanidade
Você vendeu sua alma para alimentar sua vaidade
Suas fantasias e mentiras

(“Humanity”, Scorpions, 2007)

Lamentações

Antártida, 2000

A noite havia chegado ao Pólo Sul, anunciando o início do inverno.

         Ainda mais agasalhada do que antes para resistir à baixíssima temperatura, Misato encontrava-se na superfície, longe do calor e relativo conforto disponíveis nas instalações no subsolo. O motivo era bem simples: queria admirar o fenômeno luminoso que vinha se manifestando no céu desde que o sol se fora, composto por ondas coloridas e brilhantes que tornavam lindo o firmamento – como se um extenso lençol translúcido quisesse cobrir a Terra das estrelas. Aquilo se mostrava a coisa mais fascinante que a garota testemunhara desde o início da expedição; ali passando horas a admirá-la, ignorando o clima hostil.

         - Aurora polar, ou, já que estamos na Antártida, aurora austral – a voz do pai veio de trás de si. – Resultado do contato de partículas solares com a alta atmosfera do planeta.

         A explicação científica não retirou do evento seu encanto, Misato permanecendo com a cabeça voltada para o alto enquanto os reflexos tremeluziam em tons de verde e azul.

         - Está tudo bem, querida? – o doutor tornou a se manifestar, soando um pouco preocupado.

         A filha então se virou para ele, forçando um sorriso que não tinha tanta vontade de abrir.

         - Sim, papai. Está tudo bem.

         Um instante de silêncio transcorreu antes que o cientista afirmasse:

         - Não podemos ficar aqui por mais muito tempo. Quando o inverno chegar para valer, as escavações terão de ser interrompidas. Além do mais, você já está perdendo aulas na escola. Quero que volte o quanto antes.

         - Acho que tudo isto é bem mais instrutivo do que ficar sentada atrás de uma carteira, pai... – alegou a menina, direcionando novamente os olhos para o céu.

         Hideaki afagou-lhe a cabeça – gesto de carinho um tanto desajeitado que vinha tentando transformar num hábito – e murmurou:

         - Dizem que a noite é mais escura antes do amanhecer... No caso do Pólo Sul, são seis meses de escuridão.

         - Não é uma escuridão completa – a adolescente discordou apontando para cima. – Há essas luzes. Elas guiam o caminho dos viajantes.

         - Elas são incertas. Brilham toda vez de maneira diferente. É mais sábio a um ser humano se orientar pelo próprio coração.

         - E onde o seu coração diz que o senhor deveria estar agora?

         Tocado pela pergunta, Katsuragi abaixou-se e abraçou com força a filha pelas costas, os dois compartilhando calor em meio ao vento gélido que zunia em seus ouvidos.

         - Aqui, com você – replicou, ocultando o rosto num dos ombros da garota. – Não há outro lugar onde eu queira estar.

         E assim permaneceram, unidos, por um bom tempo.

*  *  *

As lâmpadas na cavidade subterrânea eram tantas e tão fortes, que o local parecia ser banhado pela própria luz do dia. Os homens da Gehirn haviam construído verdadeiro complexo de pesquisas na caverna, com diversas plataformas, colunas, guindastes, cabines e laboratórios circundando a área mais baixa onde Adão era mantido. Após os últimos dias de preparação, o gigante havia sido escavado por completo do gelo, sua pele agora totalmente à mostra e todos os membros soltos – embora mantivesse sua posição prostrada sobre o solo, como se possuísse vergonha em se levantar. Seu aspecto, livre da neve, era a de um imenso ser humanóide branco, a estrutura de seu organismo sendo em quase tudo idêntica à do Homo sapiens, desde o formato do tronco – embora a cintura fosse um tanto mais fina – até detalhes como a quantidade de dedos nas mãos e pés. Uma das diferenças mais marcantes era talvez o rosto, de feições quase inexistentes – a cabeça possuindo em sua área frontal apenas um par de proeminências que os pesquisadores julgaram serem pálpebras fechadas, ocultando olhos. Boca, nariz ou ouvidos não puderam ser identificados.

         Assim como o ser titânico, o artefato que o atravessava fora também desenterrado – a grande e comprida lança escarlate brotando do gelo por baixo do Anjo e perfurando-o no peito, sua extremidade superior se bifurcando e as pontas surgindo pelas costas da criatura. Os cientistas haviam dado ordens claras para que o objeto não fosse ainda retirado de Adão; o procedimento correto para isso estando prestes a ser iniciado naquela manhã, com a supervisão do doutor Stewart.

         A tentativa de reproduzir um processo de Contato com o ser que originara os Anjos.

         De pé junto ao parapeito de uma plataforma, Hideaki Katsuragi e sua filha, lado a lado, assistiam ao experimento. O doutor não estava de todo certo que Misato ficaria segura se encontrando ali, mas procurava ser um bom pai – e isso incluía cumprir a promessa de compartilhar com ela o que vivia. Ainda que incluísse riscos.

         - Pai, o que eles vão fazer? – a garota indagou, atenta à movimentação da equipe.

         - Verificar se o gigante vive – ele respondeu com semblante inegavelmente preocupado. – Tentar acordá-lo.

         Imensos robôs T-RIDEN-T, controlados remotamente por cientistas, eram posicionados ao redor de Adão para que o manuseassem. Do alto de uma passarela que fornecia visão quase completa do local, Stewart, com uma prancheta em mãos, vistoriava cada tarefa. Dado o nível de precisão exigido pela experiência, nada poderia sair errado.

         Apesar de sua competência, notava-se claramente que o supervisor procedia receoso...

         Assim que as últimas máquinas viram-se prontas, os operadores puseram-se apenas a aguardar as próximas ordens do superior. Stewart, por sua vez, aguardava Lorenz. Não iniciaria experimento algum sem seu aval. Dada a importância do que fariam, ele estranhava muito o comandante não se encontrar ali, havendo tampouco sinal de Rokubungi, desde a noite anterior.

         A situação, na verdade, criava terrível analogia...

         Chernobyl. Quatorze anos antes.

         Mostrava-se amargo digerir a verdade, mas esta se apresentava igualmente clara. O maldito Keel Lorenz debandara com seu novo braço direito, deixando-os ali para morrer. Sim, o alemão sabia desde o início que aquilo não poderia dar certo.

         Segurando o parapeito da passarela, o cientista curvou-se para frente, ofegando como se fosse vomitar ou, na pior das hipóteses, jogar-se. Apesar de tudo, tinha de se acalmar. Perder a razão sempre havia sido o primeiro passo para a derrota dos inimigos da SEELE.

         - Senhor, aguardamos instruções – informou um trabalhador no controle de um dos robôs, olhando para cima.

         Stewart engoliu seco e respondeu:

         - Não faremos nada enquanto o senhor Lorenz não aparecer. Caso ele tenha se evadido da área, a experiência estará cancelada.

         Os membros da equipe se entreolharam, confusos. Por certo não esperavam aquele racha entre os líderes da operação. Até mesmo Misato sentiu o clima tenso, abraçando-se ao espesso casaco do pai.

         No alto da passarela, o pesquisador-chefe aos poucos se tranqüilizava, os ombros relaxando e o peito deixando de pulsar. Ele detinha comando sobre aqueles operários, afinal de contas. Não fariam nada se não quisesse. Lorenz errara ao imaginar que Stewart o obedeceria cegamente após deixar a Antártida de forma tão suspeita...

         Até que um apito ecoou pela caverna.

         Os trabalhadores procuraram por um momento a origem do som, logo identificada como proveniente do painel de controle de um dos T-RIDEN-Ts. O operador, a uma certa distância, assumiu expressão perplexa ao perceber que o robô não mais respondia a nenhum de seus comandos.

         Mais um silvo se fez ouvir, seguido de um terceiro... E logo, para espanto de todos, as máquinas, com suas engrenagens rangendo, passaram a se movimentar sozinhas, desobedecendo aos controladores humanos e agindo como se possuíssem vida própria.

         - O sistema foi sabotado! – revelou um dos cientistas, aturdido. – O equipamento está recebendo sinais externos às instalações!

         Stewart tornou a se curvar, colando a testa à barra superior do parapeito. Seus braços tremiam, ainda segurando a estrutura de proteção com a impressão de que desejavam arrancá-la.

         Lorenz!

         Sirenes e luzes de alerta foram acionadas por toda a caverna, banhando-a inteira em vermelho. Um outro cientista exclamou, diante de um computador:

         - O sistema foi completamente invadido!

         Permanecendo abraçado ao beiral, Stewart caiu de joelhos.

         Ainda que não compreendessem o que realmente acontecia, pesquisadores e operários começaram a correr para fora do local, ganhando os túneis desesperadamente em direção à superfície. Em torno do Anjo, os robôs continuavam se mexendo. Cumprindo as ordens vindas de fora.

         Em meio ao caos, Hideaki abaixou-se, abraçando a filha com força e escondendo-lhe o rosto no peito. Não desejava que ela visse o que ocorreria ali, acontecesse o que acontecesse.

         Os T-RIDEN-Ts esticaram seus braços metálicos, erguendo-os até acima do corpo deitado de Adão. Suas extremidades em forma de pinça, em seguida, prenderam-se às duas pontas da lança vermelha perfurando-o. Puxaram-na para cima sem dificuldade, ainda que de forma lenta... e, dois ou três minutos mais tarde, o objeto estava solto, erguido alguns metros acima do ser titânico como um troféu ostentado pelos robôs.

         Todos contemplaram a cena boquiabertos, o tempo parecendo parar e o rarefeito ar do subsolo se extinguir quando a tarefa foi concluída.

         A caverna inteira, logo depois, estremeceu.

         De início, a manifestação lembrou um leve terremoto – Misato, nos braços do pai, lembrando-se de casa e assim se acalmando ligeiramente, mesmo com o fenômeno causando terror na maioria ali presente. Gritos foram escutados, ao mesmo tempo em que o abalo se ampliava. E eles viram – inclusive Katsuragi, queixo apoiado num dos ombros de sua pequena. O gigante escavado do gelo gradualmente se levantava.

         Moveu primeiro uma perna, nela apoiando seu peso com dificuldade – o membro oscilando como se não fosse capaz de sustentar aquela massa colossal. Tendo o joelho flexionado, arrastou então a outra, movimento simultâneo ao lento erguer do tronco. O ser alvo, remetendo a uma imensa estátua de neve dotada de consciência, logo se colocou de pé, braços esticados e cabeça tão alta que por pouco não tocava o teto do lugar. Os robôs abriram espaço para o Anjo, levando com eles a Lança de Longinus. Ela tremia entre as presas de aço de seus portadores, emitindo um zunido e demonstrando vivo ímpeto de se libertar.

         Na passarela, Stewart caiu de costas, permanecendo deitado a observar Adão com um braço sobre a face. No chão, os humanos que ali haviam ficado assistiam extasiados aos primeiros passos do gigante, dominados por um misto de fascínio e pavor.

         A cabeça inexpressiva da criatura inclinou-se levemente para baixo... e suas pálpebras se abriram, exibindo um par de olhos negros como a noite, sem pupilas. Eles observaram os pequenos Homo sapiens aos seus pés por algum tempo, num momento de mútuo reconhecimento. Uma apresentação silenciosa que aguardara bilhões de anos.

         E Adão brilhou.

         Brilhou como o sol. Como mil estrelas de uma só vez. Uma claridade branca ofuscante, capaz talvez até de cegar. O corpo do Anjo foi todo tomado de luz própria, com exceção dos olhos e uma cavidade em seu peito, onde a lança estivera cravada. A mesma, porém, logo se fechou; o organismo se regenerando de forma perfeita. Resplandecente, resplendoroso. Um ser que era o próprio Fruto da Vida, eterno e sem falhas.

         - Um gigante de luz... – murmurou um embasbacado Katsuragi, mantendo a trêmula Misato junto a si, alheia a tudo. – Adão é um gigante de luz...

         A comprovação da teoria da Super Solenóide estava ali mesmo, diante dele, encarando-o. Existia e tinha vida. Porém, por mais que se sentisse maravilhado frente àquela visão... Hideaki repudiou-a. Não se achava capaz de aceitá-la. Não mais.

         - Maldito seja... – resmungou em voz baixa para que apenas a filha ouvisse, como se temesse ser punido por sacrilégio.

         Apesar do pânico, a menina ouviu... e aquelas palavras entraram em seu coração.

         Súbito, os T-RIDEN-Ts voltaram a se mover. Convergiam para Adão, cercando-o. Os braços mecânicos brandindo Longinus mudaram de posição: apontavam-na agora para o alto. Para o tórax do Anjo.

         - Os robôs estão iniciando a segunda fase do experimento... – algum pesquisador falou. – Vão tentar imobilizá-lo novamente para reduzi-lo a estado embrionário!

         Uma máquina até então afastada aproximou-se, trazendo algo num suporte que carregava. Era uma espécie de sonda, que se afunilava numa das extremidades até terminar numa ponta comprida e fina como uma agulha. Stewart sabia bem o que era aquilo. O dispositivo para injeção de amostras no corpo de Adão. Trazia, dentro de si, o DNA colhido do Sudário de Turim.

         Zonzo e engatinhando sobre a passarela, o cientista não pôde evitar rir da situação. A condição exigida pela Igreja, anos antes, durante o acordo feito na Capela Sistina. Se o fim do mundo era inevitável, o Vaticano queria retirá-lo das mãos da SEELE, moldando-o para que correspondesse ao Apocalipse bíblico. No fim, a questão, por mais absurdo que parecesse, não era evitar o fim, mas quem o controlaria. A Igreja buscara isso desejando que o suposto DNA do Messias fosse usado por Lorenz no experimento de Contato quando encontrassem Adão. Os cardeais buscavam assim desencadear a Segunda Vinda, o retorno de Cristo à Terra previsto no Apocalipse, com a presença do Salvador suplantando o pecado original de Adão, renascendo através do Anjo. Uma idéia brilhante... mas dada por Lorenz ao Vaticano, afinal de contas. Se o próprio alemão a propusera, era porque sabia que isso não atrapalharia os planos da SEELE. Conseguira pôr um fim às desavenças entre os dois grupos, garantir aprovação legal para a criação dos seres que idealizara e, se é que isso tinha importância, proporcionar a si mesmo uma consciência tranqüila.

         Os últimos preparativos para o Contato com Adão eram finalizados. E todos eles morreriam para a concretização de tal objetivo. A Antártida não resistiria à energia liberada. O continente provavelmente seria por completo consumido; e o aumento do nível do mar, acompanhado das violentas mudanças climáticas, dizimariam boa parte da população do mundo. Uma situação de total desordem se alastraria pelo globo em poucos dias, gerando a necessidade de reconstrução, de reinício. Tudo que a SEELE poderia desejar. Assumindo comando do processo, levaria a cabo a etapa seguinte de seu plano e terminaria de estabelecer as últimas condições necessárias para a vinda dos demais Anjos e o Terceiro Segredo.

         Tudo à custa deles. Keel Lorenz pensara em cada mínimo aspecto do esquema, talvez com décadas de antecedência. E Stewart, confiante demais, acabara se deixando enganar pelo superior, não conseguindo prever todos os seus passos.

         Resignado, entregou-se, deitado sobre a superfície de metal, a contemplar aquele Mistério. Sorria. Não poderia ser tão ruim, afinal, morrer diante do esplendor de um ser divino...

         Os robôs giraram a Lança de Longinus, voltando para baixo a extremidade bifurcada e erguendo o cabo terminando somente numa ponta. Foi justamente nesta que acoplaram a sonda recém-trazida, fazendo assim com que o artefato fosse dotado de uma afiada agulha, que inseriria a amostra de sangue em si contida no Anjo tão logo o espetasse.

         O Gigante de Luz, enquanto isso, aparentava entrar em apoteose. Abriu os braços lentamente, estendendo-os horizontalmente, um para cada lado de seu tronco. Flutuava alguns metros acima do solo, aproximando-se do teto da caverna. Logo lascas e pedaços de gelo começaram a cair. Ela não agüentaria muito tempo.

         E, antes que qualquer um dos humanos pudesse pestanejar, uma das máquinas, como um centurião metálico, atirou Longinus contra o peito de Adão.

         A extremidade com a sonda atingiu-o no lado, sendo enterrada em seu corpo luminoso.

         Seguiu-se fortíssima explosão.

         A onda de impacto zuniu de tal forma que quase destroçou seus ouvidos. Outro tremor veio, muito mais intenso que os anteriores. Os gritos dos cientistas recomeçaram, e desta vez a estrutura das instalações começou a ruir, abafando-os. Stewart foi a primeira vítima, esmagado por uma série de pilares e grades quando sua passarela desabou. Os robôs entraram em curto, desintegrando-se entre faíscas. Buracos abriam-se pelo chão, sugando homens e equipamento para fendas sombrias. As paredes desfaziam-se em água como cubos de gelo sob o sol. O vento varria o local, arrastando corpos e veículos mais fácil que papel. Nada daquilo agüentaria.

         A solução mais sensata seria tentar correr pela vida, do mesmo modo como alguns faziam – ainda que sem frutos. Hideaki, entretanto, permaneceu imóvel onde estava, abraçando Misato, tentando protegê-la. Seu mero corpo poderia não bastar... mas não exporia a filha a tudo aquilo! Não podia! Era seu dever como pai... tinha de resguardar quem amava.

         Uma lágrima escorreu por seu rosto. Ele finalmente compreendia...

         - Calma, querida... – sussurrou para ela. – Fique calma...

         A garota continuava trêmula, mas Katsuragi pôde notar um leve assentimento com a cabeça. Ergueu, então, os olhos... ousando encarar o foco da explosão.

         O ar da caverna tornara-se amarelo, algo como um gás de tom mostarda preenchendo-a. Cheirava fortemente a sangue. Pedaços de máquinas, fragmentos de plataformas e membros decepados voavam com o vento, passando a centímetros dos dois. Um terrível uivo propagava-se pelos arredores, congelando a espinha do cientista mais que o próprio frio. O subsolo não tinha mais teto, o céu da Antártida podendo ser avistado logo acima... em tom alaranjado vivo, queimando como fogo. E, onde estivera Adão... ele testemunhou algo que jamais imaginara.

         De uma intensa coluna de luz – que de início ofuscou-lhe os olhos, mas à qual logo se acostumou – brotou uma silhueta. Era esguia, quiçá raquítica – humana – e andava com evidente dificuldade, mancando. Algum sobrevivente da equipe? Hideaki estreitou as pupilas. O vulto se aproximou mais, e ele pôde fitá-lo com mais detalhes...

         O ser humanóide no início andava totalmente curvado, com os braços esticados tocando o chão – e usando freqüentemente as mãos como apoio. Seguia aos tropeços, erguendo-se de novo a cada queda... até que sua coluna endireitou-se e, embora ainda caminhasse um tanto corcunda, suas mãos não mais roçavam o solo. Prosseguia agora de modo mais firme, passos mais precisos, o tronco continuando a se levantar e as pernas se tornando maior fonte de apoio – a criatura se consolidando como bípede. O corpo, ao mesmo tempo, crescia em dimensões. E, quando chegou perto o bastante de Katsuragi, este pôde identificá-la já com a postura ereta de um humano, deslocando-se com naturalidade. Visualizou um garoto não mais velho que Misato, nu, de cabelos cinzentos arrepiados. Ele passou tranqüilamente ao lado de Hideaki, aparentando ignorá-lo... até que voltou de súbito a face, abriu-lhe um sorriso... e seguiu seu percurso, sumindo na névoa dourada.

         Pouco depois do desaparecimento da intrigante figura, outro tremor se fez sentir, engolindo metade da caverna – que simplesmente despencou para baixo, exibindo atrás de si o continente a se desfazer rapidamente no oceano. Despertado tanto pela aparição do menino quanto pela situação do lugar, Katsuragi viu que teria de fazer algo mais para proteger a filha. Permanecer ali com ela, imóvel, não a salvaria.

         E lembrou-se...

         As cápsulas ARK!

         Havia dispositivos de emergência, capazes de resistir até a condições extremas como aquelas. Teria, todavia, de agir contra todas as possibilidades. Convicto, ergueu a adolescente nos braços, pondo-se de pé. Por pouco não caiu, empurrado pelo vento, mas suas pernas o mantiveram firme. Olhou ao redor. O equipamento em questão fora mantido numa das galerias superiores, se bem se lembrava...

         Correu. Em seu colo, Misato mal notava o que acontecia, quase desmaiada. Assim seria melhor, contanto que permanecesse viva. O pai acelerou o máximo que conseguiu, desviando-se de inúmeros obstáculos pelo caminho e tomando cuidado para não tombar com os abalos. Erguendo a cabeça, tentava ignorar os cadáveres. A muito custo atingiu os restos do túnel levando ao nível superior, a passagem felizmente se encontrando desobstruída.

         Chegou à galeria. Mas não teve uma visão que o aliviasse...

         Diante de si, não muito longe das ditas cápsulas, estavam os tanques de combustível para os robôs e veículos. Em chamas.

         Tomado pelo desespero e sem opção, tentou passar correndo antes que o pior acontecesse...

         Na metade do caminho, prendendo a filha junto ao seu corpo, sentiu o calor às suas costas... e o impacto dos estilhaços.

         O primeiro fragmento enterrou-se no meio de suas costas, algum objeto metálico cortante – que, apesar de não tê-lo matado de imediato, perfurara órgãos vitais suficientes para lhe dar não mais que alguns minutos de existência. O outro se cravou numa de suas pernas, causando muita dor – porém não o impossibilitando de andar. O último, por fim, passou milagrosamente sob uma de suas axilas, sem feri-lo... mas acabando por se chocar com a menina em seus braços, abrindo-lhe extenso corte do abdômen até o peito.

         - Misato!

         A adolescente entrou em choque, agasalho banhado em sangue, com o líquido quente vertendo sobre as mãos frias do pai. Ele não desistiu. Quase se arrastou até os dispositivos de resgate, espalhados pelo chão e mais alguns passos dali. Um corpo decapitado de pesquisador era visto de bruços sobre um deles, não tendo conseguido abri-lo a tempo. Hideaki se esquecera das malditas trancas eletrônicas. Por sorte lembrava o código de acesso, que inseriu rapidamente no painel numérico de uma delas. A estrutura metálica reforçada se abriu, liberando vapor de seu interior. O corpo de Misato desfalecera.

         Com o máximo de cuidado, Katsuragi deitou-a dentro da cavidade do dispositivo. Quando terminou de apoiá-la no interior, uma gota de sangue, vinda de sua boca, pingou sobre o rosto da filha. Ela abriu de leve os olhos, fitando-o de forma distante.

         - Pai...

         Ele respirou fundo. Quase terminado. Só precisaria lacrar a cápsula, mas... antes havia algo mais que tinha de fazer.

         Usando as poucas forças que lhe restavam, retirou de seu pescoço a correntinha com a cruz grega, relíquia pessoal, colocando-a com dificuldade em torno da garganta da filha. Símbolo da Salvação. Mas, apesar dos quatro lados iguais, não seriam salvos todos ali. Apenas ela; que levaria consigo, por isso, aquele emblema...

         Findo o gesto, Hideaki pressionou um botão para fechar o dispositivo. E, quase de imediato, o chão sob este rachou e cedeu, lançando-o ao mar centenas de metros abaixo – por muito pouco não levando junto o doutor.

         Ela estaria segura.

         Com raios trovejando pelo céu e as extensas plataformas de gelo derretendo rapidamente, o cientista, mantendo-se à beira do penhasco recém-formado, voltou-se para trás. Pairavam agora, nos céus, duas imensas asas douradas, feitas de energia, representando a liberação do poder de Adão. O espetáculo, apesar de devastador e mortífero, não deixava de ser belo... A típica contradição presente nos seres divinos, trazendo consigo júbilo e destruição ao mesmo tempo.

         - Como um Anjo cruel... – murmurou para si mesmo, caindo de joelhos devido aos ferimentos.

         Virando-se de novo para frente, encarou o oceano, agora tingido de rubro. Levada pelas ondas, a cápsula com Misato se afastava daquele inferno, conduzida a um futuro onde talvez existisse esperança... Onde talvez existisse paz.

         A única sobrevivente daquela tragédia.

         - Vá jovem... e torne-se a lenda!

*  *  *

Batidas.

         Subitamente, seu mundo, de dor e escuridão, passara a batidas. Fortes, como se o céu acima de si fosse desabar. Sentiu medo, mais do que antes. Sentiu-se invadida. Que fariam consigo? Que poderiam querer?

         O desespero, no entanto, deu lugar à tranqüilidade quando ouviu vozes. Ainda que abafadas, falavam uma língua da qual se recordava. Uma língua que marcara uma viagem feita no passado, e da qual aprendera várias palavras. Ainda que não fosse uma lembrança das mais felizes, era algo familiar. Algo a que poderia se agarrar.

         Que coisa é essa?

         Acho que veio do mar!

         Como assim?

         Será que tem alguém dentro?

         Mais batidas, fortes. Céu amassando. Parecia até que ruiria...

         E então luz. Luz forte, à qual estava desabituada. Seus olhos arderam, e mal teve força para tampá-los. As vozes continuaram, não mais abafadas. Mãos a tatearam. Ergueram-na. Mas não mais sentiu medo. Pelo contrário. Achava-se arrebatada por Anjos.

         É uma menina! Olhem só!

         Está machucada! Vejam o tamanho do corte na barriga!

         É japonesa! Olhinhos puxados, coitada...

         Vamos levá-la até os médicos, rápido!

         Misato aos poucos pôde distinguir melhor seus arredores. O céu era límpido e azul, com nuvens brancas – embora por uma direção se aproximasse uma extensa coluna de nuvens negras em que brilhavam raios, o verdadeiro fim do mundo se avizinhando. Lembrou-se da paisagem... a cidade do Rio de Janeiro, que visitara quando mais nova. Mas estava diferente. Triste.

         Após ser levada para lá e para cá desordenadamente, viu-se no alto de uma colina – a qual, para seu desagrado, não era o Pão de Açúcar que tanto quisera conhecer quando mais nova. O panorama de prédios junto à praia que conhecera não existia mais – o oceano tendo invadido tudo até o sopé dos montes, alagando as ruas que outrora achara tão bonitas. E, predominando no cenário, a estátua do Cristo, de braços abertos... mas agora com um deles faltando, cortado na altura do ombro, o que a tornava incompleta, ferida...

         Não mais capaz de protegê-la, como um dia julgara.

         Enquanto os homens de branco a examinavam, depois de passarem por macas e mais macas sobre a grama onde pessoas olhavam com os olhos arregalados para o céu, Misato seguia ouvindo as vozes:

         Passou aproximadamente uma semana dentro daquela cápsula. Sabe-se lá de onde veio, mas salvou-se. O ferimento só não se agravou por conta das condições curativas internas do equipamento. Foi arrastada pelo mar até aqui.

         Pobrezinha, deve estar com fome!

         Uma voz abafada manifestou-se entre as demais. Devia vir da caixa com imagens que a garota gostava de assistir quando em casa.

         Uma explosão equivalente a uma bomba nuclear de cinqüenta megatons sobre a Antártida... Meteoro acima da velocidade da luz, impossível de ser detectado a tempo... Tsunamis pelo mundo todo... Países Baixos, ilhas do Pacífico e cidades costeiras não existem mais... Clima da Terra alterado de maneira irreversível... Tensão na fronteira entre Índia e Paquistão... Últimas informações dizem que terroristas do Exército Vermelho Japonês destruíram a capital Tóquio com bombas N²... Potências do mundo se enfrentam por água e alimentos...

         E prosseguia o coro não-abafado, dos homens de branco...

         Ela está em estado catatônico. Não fala.

         Precisará de tratamento.

         Deve ser mantida sob constante observação.

         A eles, uniram-se homens de preto. Como num jogo de xadrez.

         Gehirn. Estamos levando a menina sob custódia.

         Nós poderemos tratá-la.

         A garota pode ser a chave para se entender exatamente o que ocorreu na Antártida.

         Ela só queria que eles se calassem...

         Que se calassem.

*  *  *

- Gendou?

         A resposta levou alguns segundos:

         - Diga, senhor Lorenz.

         - Acha que, usando este terminal, consegue acessar remotamente o sistema central de informações da Gehirn, assim como fez com os dispositivos na Antártida?

         - Acredito que sim.

         O ruído de dedos batendo sobre um teclado propagou-se pela sala silenciosa. Pouco depois, a voz grave de Rokubungi replicou:

         - Já estou dentro, senhor.

         - Proceda como combinamos. Sabe o que fazer.

         - Hai.

         Em meio à penumbra do recinto, a tela ligada do computador exibia os comandos efetuados pelo japonês conforme eram inseridos:

         GEHIRN – Deus está no Céu, protejamos sua Criação

Efetuar busca;

         Procurar pelo(s) termo(s): “Metatron”, “Majestic-12”, “Família Soryu”, “Família Langley”, “Família Rokubungi”.

         Processando...

         10%

         37%

         64%

         91%

         Busca concluída. 453 arquivos encontrados com referência aos termos pesquisados;

         Selecionar ação: “Abrir em lista”, “Abrir individualmente”, “Organizar”, “Mover”, “Deletar”.

         DELETAR: Deseja mesmo excluir os 453 arquivos selecionados? (S/N)

         Deletando...

         3%

         7%

         11%

         A barra de progresso aumentava no monitor conforme o material era apagado do banco de dados. Não precisariam mais dele, e excluí-lo evitaria possíveis problemas futuros. Sentado pensativo ao fundo da sala, Lorenz refletia a respeito do que deveria ou não revelar ao novo braço direito. A informação mais marcante era por certo o fato de ele e a doutora Kyoko Zeppelin Soryu serem meio-irmãos, ambos filhos da falecida Minna Soryu – porém não achava prudente expor tal parentesco. Com o tempo, talvez, pudesse contar somente a Gendou, embora possuísse sérias ressalvas a respeito...

         - Está um inferno lá fora, porém em breve a situação ficará mais controlada – afirmou, forçando a si mesmo a pensar em outra coisa. – Já possuímos poder suficiente na ONU e quaisquer ações pacificadoras ao redor do mundo abrirão maior caminho para a SEELE.

         - O que pretendem fazer com a Gehirn? – Rokubungi inquiriu em tom amargo. – Manter a fachada de preservar o meio ambiente não me parece muito útil num mundo como este está se tornando...

         - De fato. Precisaremos extinguir a Gehirn e criar uma organização mais ampla em seu lugar, de preferência com prerrogativas militares. Pensarei a respeito. Mas desde já, considere-se comandante.

         Gendou pigarreou.

         - E quanto a Adão?

         - Enviar uma expedição agora para recuperar a forma embrionária seria suspeito demais. Teremos de esperar a poeira baixar. Um ano ou mais. Ninguém visitará aquele mar de sangue que se tornou a Antártida enquanto isso, garanto. Portanto não há motivo para pressa. Quanto ao receptáculo, já está em nosso poder. A família Nagisa, conhecida dos Ikari, perdeu os três filhos com o tsunami que varreu Hokkaido. Estou certo de que eles adorarão adotar um órfão, criando-o enquanto a hora certa não chegar...

         - Lembre-se de que também precisaremos de novas instalações para estudar Adão e reproduzir sua estrutura genética...

         - As obras no GeoFront estão aceleradas. Com as tragédias pelo globo, quase todo o dinheiro que a ONU arrecadar com justificativas humanitárias será revertido para a construção. Poderemos nos transferir para lá em breve. Quero manter, porém, a velha Área 51 em Nevada como unidade secundária, e esta base alemã como unidade terciária. Com várias instalações trabalhando ao mesmo tempo, poderemos gerar os constructos mais rápido.

         Breve silêncio. Foi rompido pelo oriental, que perguntou:

         - Precisa de mim para algo mais, senhor?

         - No momento não. Está dispensado. Pretende retornar ao Japão?

         - Sim. Eu e Yui nos casaremos o quanto antes. O senhor Ikari não demonstrou objeções.

         - É um momento um tanto crítico para um casamento, mas considero-o um de nossos passos rumo ao futuro... – Lorenz afirmou num tom sonhador. – Aproveite as bodas como puder, Gendou. Quando voltar, precisarei tanto de sua ajuda quanto a de sua mulher.

         - Retornarei com ela em um mês. Não há com o que se alarmar.

         - Espero que não me decepcione. Siga os passos de seu pai, e receberá as graças que merece. Agora vá, pois quando voltar... daremos início oficial ao Projeto Evangelion.

*  *  *

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